Homo Sentimentalis
Aqui Kundera indaga sobre o amor, distinguindo o
amor-sentimento do amor-relação. A personagem Bettina é o paradigma de
um amor autossuficiente, sem retribuição do outro, sem partilha: o amor
é apenas uma ideia que se persegue e não a pessoa em si. O sentimento é
apenas imitação que degenera em histeria sentimentalista? “Devemos
definir o homo sentimentalis não como uma pessoa que experimenta
sentimentos, mas como uma pessoa que os erigiu em valores. Porque
“o sentimento, por definição, surge em nós sem disso nos apercebamos
[...] A partir do momento em que queremos experimentá-lo, o sentimento
já não é sentimento, mas a imitação de sentimento, sua exibição”. E como desvelar o amor que se esconde por detrás do sentimento? “Talvez
seja necessário despojarmo-nos de muitas coisas e tornar a vestir as
vestes da inocência para que o amor nos possa ser revelado" (António
Alçada Batista, O riso de Deus).
O Acaso
O vazio da ocasionalidade das relações humanas é uma
constante. As relações entre pessoas que nada têm em comum mas mesmo
assim constroem uma falsa relação, em nome de uma ideia vaga de amor. A
esperança de entrar no mundo próprio do outro desvanece-se quando se
compreende que o ambiente onde cada uma das personagens se situa é
totalmente oposto e inconciliável. “Nunca descobrimos como e em
quê irritamos os outros, em que é que lhes somos simpáticos e em que
lhes parecemos ridículos; a nossa própria imagem é para nós o maior dos
mistérios”. Uma vida assim vivida não pode deixar de ser fruto do acaso porque é feita sempre a partir daquilo que o outro possa fazer. “Será
pensável o amor sem uma perseguição angustiada da nossa própria imagem
no pensamento da pessoa amada? Quando deixamos de nos preocupar com a
maneira como o outro nos vê, deixamos de o amar”. Tema este recorrente na escrita de Kundera (Insustentável leveza do Ser).
É o desconhecido que marca as relações que se
estabelecem entre os humanos e os acontecimentos que as envolvem. No
tipo de relações em que predomina o domínio sobre o outro, o mundo, a
vida, o ser vai perdendo o seu encanto. Despersonaliza-se. Deixa de
haver razões para existir e o suicídio (exemplo de Laura) aparece como a
solução mais plausível. É o desejo da imortalidade que transforma as
pessoas em suicidas. A única solução é deixar-se embalar pelo acaso,
pela quietude, pela passividade, pela eternidade do tempo. Uma vida
assim vivida considera o outro como um estranho, sem hospitalidade, nem
solidariedade. “O mundo perde a pouco e pouco a sua transparência,
torna-se opaco, faz-se ininteligível, precipita-se no desconhecido,
enquanto o homem traído pelo mundo se evade para o seu foro íntimo, a
sua nostalgia, os seus sonhos, a sua revolta e, atordoado pela voz
dolorosa que sobe dentro dele, deixa de saber ouvir as vozes que de
fora o interpelam”. Um progressivo autofechamento que conduz
progressivamente à morte, ao caos interior e à destruição da vida
presente e futura.
O Mostrador e a Celebração
Nada é tão inútil como o desejo narcisista de esperar
uma imortalidade vazia de sentido. Esta só se encontra na expressão
máxima da Arte e do Belo. “A vocação da poesia não é deslumbrar-nos
com uma ideia surpreendente, mas fazer com que um instante do ser se
torne inesquecível e digno de uma insustentável nostalgia”. A
frivolidade dos sentimentos, do amor, do não-gosto, do vazio relacional
trazam consigo a dor, o caos e a indeferença perante o que é o
verdadeiro amor. Kundera associa a este amor a importância do rosto do
outro como algo que dá significado às relações.“Quando amamos alguém, amamos o seu rosto e tornamo-lo assim diferente dos outros”.
O desejo de imortalidade, que de certo modo atinge a
todos, só é percetível quando encaramos a morte como uma possibilidade
bem real. “Até certo momento, a morte é uma coisa demasiado
distante para nos ocuparmos dela. É não-vista, é não-visível. É a
primeira fase da vida, a mais feliz”. Ao eternizar as nossas ações
nesta vida, porque vivemos com medo desse futuro que não conhecemos,
tornamo-nos seres superficiais e acabados. O desejo de imortalidade
resulta do tédio e da motonia com que a vida é encarada. “Só temos uma vida! É preciso assumi-la! Apesar de tudo, devemos deixar qualquer coisa atrás de nós”. Ou como diz Bonhoeffer: “nós vivemos no penúltimo e acreditamos no último” (Cartas da prisão) ou ainda segundo a genialidade de Agostinho “o teu hoje é a eternidade” (Confissões XI). Quando sorrimos somos humanos e o humano é o que fica de nós como digno de ser testemunhado, agora e na posteridade!
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João Paulo Costa
Imagens: Auguste Rodin
© SNPC | 19.06.12
Imagens: Auguste Rodin
© SNPC | 19.06.12
Fonte: http://www.snpcultura.org/a_imortalidade_risivel_2.html
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