Edu Almeida*
Comecei a ler mais um livro sobre o artista suíço Alberto Giacometti. Já
é o quinto ou sexto, nem sei dizer. Sua obra inspira, em especial
porque é também sua própria vida, seus amigos e familiares, o ateliê e
as questões de forma e expressão que ele remoeu dia após dia, até seu
falecimento em 1966. Identifico-me com Giacometti. Não porque somos
parecidos, mas justamente pela diferença que existe entre nós. Eu admiro
sua obsessão, a profundidade de suas investigações estéticas e seu
desprendimento em relação à obra pronta. Eu queria ser um pouco assim,
transformar minha leviandade em projeto, concretizar as flutuações,
abrir mão dos compromissos e me enfiar de cabeça na poética para nunca
mais ser arrancado de lá. Claro que não poderei jamais fazer isso. Não
sou Alberto Giacometti, não vivo como ele vivia, não penso como ele
pensava nem nada disso. Tampouco tenho um projeto tão bem estruturado,
tão consistente. O que me agrada na comparação é simplesmente descobrir o
que não sou naquilo que ele foi, e do mesmo modo descobrir a mim mesmo
nas lacunas que Giacometti deixou por preencher.
O velho debate a respeito do que a arte é leva-nos a um número infinito de respostas, nenhuma delas conclusiva. Podemos elencar uma série de coisas que não parecem arte para, quem sabe, encontrar a resposta no que restará. Duvido que funcione, seria fácil demais, porém ainda assim é uma estratégia de ação. Arte, para mim, é tudo o que chamamos de arte e tudo o que os homens um dia chamaram de arte, entre outras possibilidades. A exclusão é um risco, enquanto a inclusão não ameaça; basta deixar a poética livre para se manifestar. Vejo arte em todas as pessoas, em todas as coisas e em todos os lugares, seja na forma de obra ou na de potência. Mas existe um porém a esse respeito que soa plausível: a obra requer o outro para ser arte. Quer dizer, não existe arte sem que haja alguém para vê-la, ouvi-la, lê-la etc. Ela não existe para si; esse é o limite da sua dita autonomia. Pintura não exibida, música não tocada, livro não publicado... longe das pessoas, as obras não conseguem se manifestar e permanecem inertes em si mesmas, na materialidade banal do mundo.
O velho debate a respeito do que a arte é leva-nos a um número infinito de respostas, nenhuma delas conclusiva. Podemos elencar uma série de coisas que não parecem arte para, quem sabe, encontrar a resposta no que restará. Duvido que funcione, seria fácil demais, porém ainda assim é uma estratégia de ação. Arte, para mim, é tudo o que chamamos de arte e tudo o que os homens um dia chamaram de arte, entre outras possibilidades. A exclusão é um risco, enquanto a inclusão não ameaça; basta deixar a poética livre para se manifestar. Vejo arte em todas as pessoas, em todas as coisas e em todos os lugares, seja na forma de obra ou na de potência. Mas existe um porém a esse respeito que soa plausível: a obra requer o outro para ser arte. Quer dizer, não existe arte sem que haja alguém para vê-la, ouvi-la, lê-la etc. Ela não existe para si; esse é o limite da sua dita autonomia. Pintura não exibida, música não tocada, livro não publicado... longe das pessoas, as obras não conseguem se manifestar e permanecem inertes em si mesmas, na materialidade banal do mundo.
“Quando o outro reflete a minha imagem
espelhada, é às vezes ali
onde eu melhor me vejo”, (...)
“é na diferença sensível existente entre o eu e
o outro que se
afirma a identidade”.
- cita o psicanalista João A. Frayze-Pereira. -
O que chama atenção nas criações de Giacometti é esse cruzamento de olhares. Sua obsessão por retratar uma pessoa da maneira como a via produziu séries de obras feitas e refeitas umas sobre as outras, criadas, destruídas e recriadas novamente. Os relatos do crítico James Lord reunidos no livro Um Retrato de Giacometti nos apresentam esse método angustiante, é uma leitura que recomendo a todos que se interessam por processo criativo e trabalho de arte. O livro fala de um retrato encomendado ao artista, cuja produção não demoraria mais do que uma tarde, mas que se estendeu ao longo de meses e meses, até esgotar a paciência do retratado. Porque, na medida em que o pintor o conhecia melhor, mudava a imagem que fazia dele, mudava a percepção do sujeito, a qual se refletia na impressão pictórica. Giacometti queria pintar a verdade fundamental de seus modelos, um idealismo inalcançável tornado insuficiência e sofrimento. Terminava a sessão feliz com o resultado, a missão quase cumprida, bastariam uns poucos retoques. Só que na manhã seguinte tanto ele quanto o outro estavam diferentes, então a tela era apagada e recomeçada; de novo, de novo e de novo.
Nessas obras, os retratados olham para nós, que nos colocamos diante da tela. Nós devolvemos o olhar. Mas o que vemos, na verdade, é o olhar do artista sobre o assunto; sua expressão manifestada na expressividade daquelas figuras. Descobrimos, desse modo, o próprio Giacometti por meio das obras que deixou. Suas pinturas e esculturas são também retratos do próprio artista. Ele está contido nelas de maneira tão intensa que o termo “contido” não é justo — o artista se expande para além da superfície da obra. Vemos claramente suas questões estéticas, suas crises e suas vontades.
Percebo também a mim mesmo. Não no que Giacometti pintou, mas nos espaços em branco, no que não há de mim na obra, no que não está dado. Descubro minha identidade pela diferença, olhando o que não sou, imaginando como gostaria de ser. Converso com Giacometti por meio de suas criações; descubro a arte como um campo necessariamente intersubjetivo. O outro não é o meu limite, como se costuma dizer, mas a experiência que me faz existir como eu mesmo, consciente de mim. Um corpo reflexivo que olha e é olhado, que toca e é tocado. “Quando o outro reflete a minha imagem espelhada, é às vezes ali onde eu melhor me vejo”, cita o psicanalista João A. Frayze-Pereira. E completa: “é na diferença sensível existente entre o eu e o outro que se afirma a identidade”.
Leio mais uma vez sobre Alberto Giacometti. A obra é sempre aprendizado. Entre as linhas, nas fissuras abertas por sua vida e arte, descubro a mim mesmo, leio a história do meu próprio ser, que também se faz e refaz a cada dia pelo gesto poético de existir, de estar no mundo, de me colocar à disposição da alteridade. Descubro minha vocação no que falta ao mundo, e o mundo em tudo aquilo que falta a mim. É por conta disso que ele é tão grande, tão rico, tão entusiástico e misterioso.
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* Edu Almeida, é publicitário, crítico e historiador da arte. Escreve ficções, pinta e gosta de fotografia. Email: edualmeida@artefazparte.com Fonte: Correio Popular on line, 04/04/2013
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