segunda-feira, 1 de abril de 2013

O gozo da pulsão de morte

Luiz Felipe Ponde*
 
 

O que está em jogo é torturar quem não parece estar enquadrado no jogo da pureza moral 
Pense na Dinamarca. País perfeito, que, junto de Suécia, Noruega e Islândia (um dos lugares mais fascinantes em que já estive justamente porque é no fim do mundo e ninguém normal vai para lá), forma o paraíso na Terra para essa gente do "queremos um mundo melhor". 

A chave para entender esses belos países não é o que gente mal informada acha que é, a saber, seu altíssimo grau de civilização e "consciência social" (em mil anos, termos como esse soarão como hoje soa "raça ariana superior"), mas, sim, seu altíssimo grau de prazer em reprimir tudo que não seja norma e de torturar todos que parecerem estar fora dela (dito de modo psicanalítico, um enorme gozo da pulsão de morte a serviço da repressão e humilhação moral). 

O luteranismo puritano do passado escandinavo se transformou na repressão terrível em nome de "sua santidade" o politicamente correto, seja ele ecológico, social, sexual, cultural, ou que diabo for. 

O que está em jogo é torturar quem não parece estar enquadrado no jogo da pureza moral. O cinema de Ingmar Bergman, Lars von Trier e Thomas Vinterberg, por exemplo, é um testemunho claro desse gozo mórbido pela hipocrisia do amor à norma. 

Mas seria injusto passar a conta para os escandinavos. Nós todos gozamos em torturar quem cai na desgraça de ser um herege. O ódio nos move mais do que o amor, e, antes de tudo, odeio o racista mais do que amo sua vítima de racismo. 

Adoramos humilhar, perseguir, destruir homens e mulheres, porque supostamente feriram códigos. Mas a maioria de nós não está nem aí para os códigos. Gosta, sim, de ver o desgraçado reduzido a lixo. 

Somos inquisidores natos, prontos a babar em cima da primeira vítima que surgir, principalmente a "moçadinha" por um mundo melhor. 

Por isso, na Idade Média levavam as crianças para o programa de domingo, que era ver infelizes arderem. E você, caro leitor, que talvez se ache o máximo, provavelmente levaria o seu filho também para cuspir no herege. Quer ver: o que você acha do pastor Feliciano? Ou de algum machista nojento? Ou de padre pedófilo? Merecem um xingamento básico? Quem sabe, ovo podre? Bruxa e gay hoje não são mais hereges, são parte do status quo "cabecinha". 

Por falar em Vinterberg, veja o maravilhoso "A Caça", com o excelente Mads Mikkelsen (o mesmo do "Amante da Rainha") no papel principal de um professor de jardim de infância injustamente acusado de pedofilia por uma aluna. 

O filme deveria ser passado nas escolas de magistratura, nas faculdades de psicologia, pedagogia, serviço social e outros quebrantos. 

Tudo nele é sofisticado e a serviço de desmascarar o inquisidor que existe em nós. O erro da "moçadinha" para um mundo melhor é não entender que, para descobrir o inquisidor babão em si mesmo, a chave não é pensar em "vítimas oficiais de preconceito", mas sim em quem você odeia por razões que você considera justas. 

A questão do filme não é negar o horror da pedofilia (vamos esclarecer antes que algum inquisidor comece a babar em cima de mim), mas, sim, mostrar como funciona nossa velha natureza humana em seus novos objetos de gozo mórbido moral. 

A menina, Klara, tendo sido "recusada" em seu amor pelo professor Lucas (Mikkelsen) -ela o beija na boca-, vinga-se dizendo para a diretora da escola (esse ser quase sempre pronto para abraçar qualquer moda, mesmo as modas de horror como a pedofilia) que ele tinha mostrado seu órgão sexual para ela. 

Daí, claro, segue-se o "normal": um especialista acaba por dar a bênção "científica" para a acusação de pedofilia contra o inocente Lucas. Ele segue a cartilha de que as crianças nunca mentem e quando negam o suposto abuso é porque estão envergonhadas. De repente, todas as crianças dizem terem sido abusadas. 

Por isso, de nada adianta o arrependimento de Klara, que tenta negar o que disse mil vezes (e ela o faz várias vezes, mas nenhum adulto acredita nela). Todos "cospem" em Lucas: amigos e suas mulheres, colegas de trabalho, ex-mulher, quitandeiros. 

Teste sua alma de inquisidor: o que você faria se acusassem o professor de sua filhinha de pedofilia? 
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* Filósofo. Prof. Universitário. Escritor. 
Fonte: Folha on line, 01/04/2013
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