Luiz Felipe Ponde*
O que está em jogo é torturar quem não parece estar enquadrado no jogo da pureza moral
Pense na Dinamarca. País perfeito, que, junto de Suécia, Noruega e
Islândia (um dos lugares mais fascinantes em que já estive justamente
porque é no fim do mundo e ninguém normal vai para lá), forma o paraíso
na Terra para essa gente do "queremos um mundo melhor".
A chave para entender esses belos países não é o que gente mal informada
acha que é, a saber, seu altíssimo grau de civilização e "consciência
social" (em mil anos, termos como esse soarão como hoje soa "raça ariana
superior"), mas, sim, seu altíssimo grau de prazer em reprimir tudo que
não seja norma e de torturar todos que parecerem estar fora dela (dito
de modo psicanalítico, um enorme gozo da pulsão de morte a serviço da
repressão e humilhação moral).
O luteranismo puritano do passado escandinavo se transformou na
repressão terrível em nome de "sua santidade" o politicamente correto,
seja ele ecológico, social, sexual, cultural, ou que diabo for.
O que está em jogo é torturar quem não parece estar enquadrado no jogo
da pureza moral. O cinema de Ingmar Bergman, Lars von Trier e Thomas
Vinterberg, por exemplo, é um testemunho claro desse gozo mórbido pela
hipocrisia do amor à norma.
Mas seria injusto passar a conta para os escandinavos. Nós todos gozamos
em torturar quem cai na desgraça de ser um herege. O ódio nos move mais
do que o amor, e, antes de tudo, odeio o racista mais do que amo sua
vítima de racismo.
Adoramos humilhar, perseguir, destruir homens e mulheres, porque
supostamente feriram códigos. Mas a maioria de nós não está nem aí para
os códigos. Gosta, sim, de ver o desgraçado reduzido a lixo.
Somos inquisidores natos, prontos a babar em cima da primeira vítima que
surgir, principalmente a "moçadinha" por um mundo melhor.
Por isso, na Idade Média levavam as crianças para o programa de domingo,
que era ver infelizes arderem. E você, caro leitor, que talvez se ache o
máximo, provavelmente levaria o seu filho também para cuspir no herege.
Quer ver: o que você acha do pastor Feliciano? Ou de algum machista
nojento? Ou de padre pedófilo? Merecem um xingamento básico? Quem sabe,
ovo podre? Bruxa e gay hoje não são mais hereges, são parte do status
quo "cabecinha".
Por falar em Vinterberg, veja o maravilhoso "A Caça", com o excelente
Mads Mikkelsen (o mesmo do "Amante da Rainha") no papel principal de um
professor de jardim de infância injustamente acusado de pedofilia por
uma aluna.
O filme deveria ser passado nas escolas de magistratura, nas faculdades
de psicologia, pedagogia, serviço social e outros quebrantos.
Tudo nele é sofisticado e a serviço de desmascarar o inquisidor que
existe em nós. O erro da "moçadinha" para um mundo melhor é não entender
que, para descobrir o inquisidor babão em si mesmo, a chave não é
pensar em "vítimas oficiais de preconceito", mas sim em quem você odeia
por razões que você considera justas.
A questão do filme não é negar o horror da pedofilia (vamos esclarecer
antes que algum inquisidor comece a babar em cima de mim), mas, sim,
mostrar como funciona nossa velha natureza humana em seus novos objetos
de gozo mórbido moral.
A menina, Klara, tendo sido "recusada" em seu amor pelo professor Lucas
(Mikkelsen) -ela o beija na boca-, vinga-se dizendo para a diretora da
escola (esse ser quase sempre pronto para abraçar qualquer moda, mesmo
as modas de horror como a pedofilia) que ele tinha mostrado seu órgão
sexual para ela.
Daí, claro, segue-se o "normal": um especialista acaba por dar a bênção
"científica" para a acusação de pedofilia contra o inocente Lucas. Ele
segue a cartilha de que as crianças nunca mentem e quando negam o
suposto abuso é porque estão envergonhadas. De repente, todas as
crianças dizem terem sido abusadas.
Por isso, de nada adianta o arrependimento de Klara, que tenta negar o
que disse mil vezes (e ela o faz várias vezes, mas nenhum adulto
acredita nela). Todos "cospem" em Lucas: amigos e suas mulheres, colegas
de trabalho, ex-mulher, quitandeiros.
Teste sua alma de inquisidor: o que você faria se acusassem o professor de sua filhinha de pedofilia?
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* Filósofo. Prof. Universitário. Escritor.
Fonte: Folha on line, 01/04/2013
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