Arnaldo Jabor*
Não são as décadas que nos transformam; são os fatos.
Eles cavam buracos no tempo e criam caminhos que não podemos prever. Há
épocas lentas, há épocas sangrentas, épocas eufóricas e ingênuas, há
épocas que parecem ataques epiléticos da história.
Antigamente, achávamos que os fatos nos levariam a um futuro
harmônico, que a vida era uma linha reta que ia desde os macacos até o
paraíso cristão ou socialista ou, recentemente, ao fim da história.
Hoje vivemos em um labirinto de boas e más notícias, uma teia do
homem aranha, um deserto do Iraque de ideias, um vazio de estupidez
islâmica, um tempo de terrores como nos pesadelos de ficção científica.
Antes, sonhávamos com o futuro; hoje, temos pavor de que ele chegue.
Na década de 60, ainda se comemorava a paz depois da guerra mundial,
com euforia democrática movida pela prosperidade do capitalismo.
O mundo era dos jovens, era o oásis do pós-guerra. Havia o Vietnã,
guerra fria, mas o clima das cabeças era de alegria. As saias curtas, as
pernas de fora, as pílulas anticoncepcionais fazendo o sexo livre, a
revolução gráfica desenhando uma vida ideal junto com a publicidade,
havia um clima de ousadia, de fé, com a crença de que era simples fazer
revoluções, de que o socialismo seria alegre e dançante em Cuba, de que
os Beatles e os Rolling Stones nos libertariam para sempre da caretice.
Mas, aos poucos, entendemos que o buraco do mundo era mais embaixo, que
não bastavam palavras de ordem para vencer o conservadorismo.
Os líderes do sonho começaram a morrer. Guevara saiu de Cuba em busca
da utopia e foi denunciado pelos próprios camponeses na Bolívia e
morreu como um Cristo desmoralizado na selva.
As boas-novas sempre vinham anuladas por um desastre qualquer. A
chegada do homem à Lua aconteceu ao mesmo tempo em que Sharon Tate,
mulher de Polanski, grávida, foi morta a punhaladas por um bando de
hippies enlouquecidos. A paz, o amor e a flor foram virando rancor,
medo, ódio.
Aqui, a guerrilha urbana conseguiu seu maior feito - o rapto do
embaixador americano Elbrick -, um gol de placa igual ao milésimo gol de
Pelé no dia 19 de novembro de 69, junto também com a chegada do Médici
ao poder, com sua cara de vampiro deprimido, enquanto o Marighella
morria em São Paulo, enquanto os Beatles se separavam com a declaração
de John Lennon de que o sonho tinha acabado.
Tudo ao mesmo tempo.
Aí, nada mais parou de acontecer no chamado "milagre brasileiro"; a
burguesia enchendo a barriga de dinheiro em São Paulo e a violência
militar e guerrilheira rolando solta; porrada e grana, enquanto a
Transamazônica destruía a floresta, enquanto Leila Diniz morria num
deserto da Índia, na queda de um Boeing japonês.
E assim fomos seguindo, com o progressivo fechamento da esperança,
com os fatos ficando menores, mais episódicos, com as tragédias virando
chanchadas e as alegrias murchando em melancolia. Era como se a grande
História estivesse impedida e só as pequenas bobagens pudessem
acontecer, prenunciando um futuro de inanidades, de irrelevâncias.
Nos anos 70, no Brasil, veio o misticismo laico da contracultura e as
desgraças psiquiátricas causadas pela ditadura, enquanto um desastre de
avião nos Andes provocava um banquete canibal na neve, Allende caía
morto e subia o assassino Pinochet.
O fato mais importante foi a crise de petróleo em 73, com a Opep
inaugurando a guerra fria entre o Oriente e o Ocidente, a mãe dos
homens-bomba que até hoje nos assolam.
E assim fomos indo. Lembro-me do Tancredo no hospital e do sorriso
deslumbrado dos médicos de Brasília, amparando o presidente como um
boneco de ventríloquo para a opinião pública. "Vai morrer!" -
arrepiei-me. O jaquetão do Sarney, deslumbrado e contristado, me
arrepiou. A foto sorridente de Collor, na capa da Veja, com o título
Caçador de Marajás, me deu pavor. Depois FHC e Lula (Se FHC não tivesse
vencido, onde estaríamos hoje?).
E agora, que arrepio é este que sinto?
Estamos assistindo a uma nítida deterioração das instituições, quando
ninguém teme mais nada, pois todos descobriram que delitos e corrupção
"não têm bronca", não têm "pobrema". Como disse Lula uma vez:
"Dossiê?... Ah, o povo pensa que é doce de batata..."
Este governo está desmoralizando os fatos. Os acontecimentos não
acontecem, se diluem, morrem. Dilma anuncia medidas modernizantes,
aeroportos, estradas de ferro, hidrovias, infraestrutura - mas tudo
morre na praia; a burocracia sindicalista não permite.
Até aquele Paulinho da Força (com vários processos) consegue paralisar a reforma portuária... É espantoso.
Estive há pouco na Europa. Todos os países estão desesperados por
problemas insolúveis. Espanha com 25 por cento de desempregados, a
Itália com um ridículo palhaço levado a sério, a Holanda (até ela) está
sem caixa, a América sob chantagem da direita, a Coreia um país
psicótico sob um gordo louco, a primavera árabe morta e por aí vai...
Na imprensa mundial o Brasil é tratado como uma ex-esperança, atual
vexame. Até o drama de Chipre vai nos beneficiar com ingresso de
capitais. Estamos jogando fora a imensa sorte que temos, por causa de
imbecis com dogmas vergonhosos que não existem mais. Estamos antes do
muro de Berlim. Esses canalhas desprezam a sociedade e acham que o
Estado tem de nos tutelar.
Mas, até quando esse "chove-não-molha" vai aguentar?
Por que a besta do Brasil não prospera, por que continua atrás dos
Brics, atrás da América Latina, por que até a Petrobrás caiu para a
metade, saqueada pela porcada magra sindicalista? Por quê? Temos grana
entrando, temos um governo com maioria total no Legislativo, sem
oposição, sem nada. Por que não vamos para frente? Por quê, porra? Os
diagnósticos são iguais no mundo todo: uma presidente rachada ao meio
por fissuras ideológicas e dominada pela fome eleitoral do PT, a fim de
virar um partido mexicano como o PRI. Os europeus têm inveja e desprezo
por nós, porque eles querem sair da crise e não conseguem e nós temos
tudo para nos salvar e não queremos...
Algo muito ruim cozinha em banho-maria nosso progresso. Há alguma coisa "não-acontecendo" no Brasil que me dá arrepios.
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* Cineasta. Escritor. Cronista do Estadão.
Fonte: http://www.estadao.com.br/02/04/2013
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