A permanência do pastor Marco
Feliciano no cargo de presidente da Comissão de Direitos Humanos da
Câmara desgasta a imagem do mundo evangélico no País, provoca
constrangimentos e rejeições. A atitude mais lúcida diante do impasse
seria a renúncia imediata.
Quem faz essas afirmações é o também
pastor evangélico Ricardo Gondim, teólogo, mestre em ciências das
religião e líder da Igreja Betesda. Na entrevista abaixo, ele também
critica as declarações feitas por Feliciano de que a África e seus
habitantes seriam amaldiçoados por Deus. Tal tipo de teologia, segundo
Gondim, é racista e fundamentalista na sua essência.
Gondim, que tem 58 anos, passou pelas igrejas Presbiteriana e
Assembleia de Deus, antes de se vincular à Betesda, que em hebraico
significa “lugar da misericórdia de Deus”. No ano passado ele rompeu com
parte do movimento evangélico, após ter sido atacado e chamado de
herege, por suas críticas à chamada “teologia da prosperidade”. Ele tem
dito que o Deus da Bíblia não deve ser visto como um sádico que se
compraz em amaldiçoar os homens, mas sim como parceiro deles.
O pastor também defende o direito dos gays ao casamento civil: “Numa sociedade que se pretende laica, é assim que deve ser.”
Como pastor, de que maneira analisa a polêmica que envolve Marco Feliciano e a Comissão de Direitos Humanos?
Fico muito constrangido com o que está ocorrendo.
Acha que as críticas a ele são dirigidas a todo os evangélicos? Ele fala em cristofobia.
O Marco Feliciano se apresenta como representante não só do mundo
evangélico, mas de todo o protestantismo. Na verdade, ele pouco
representa das tendências protestantes. Foi eleito por um segmento muito
alienado politicamente. Candidatos como ele são eleitos, geralmente,
para se tornarem os representantes de sua igreja no parlamento. Eles se
preocupam mais com os interesses da igreja do que com as questões que
dizem respeito a todo o País.
A que atribui o antagonismo com grupos que defendem os direitos humanos?
Ele se antagonizou com o Brasil porque expressou pelo Twitter e,
depois, num culto, opiniões sobre a questão dos negros. Disse que são
descendentes da parte amaldiçoada dos filhos de Noé, os filhos de Cam. É
interessante observar ele não criou nada ao fazer tais afirmações. Essa
teologia é muito antiga, muito anterior a ele, persistindo até hoje em
alguns poucos segmentos fundamentalistas. Ela tem origem entre os
colonialistas, que dividiam o mundo em três áreas – o ocidente, o
oriente e o sul. Nesta última teriam ficado os possíveis descendentes do
personagem bíblico, os amaldiçoados. O Feliciano lucra em cima dessa
teologia, fatura em cima dela, mas não acrescenta nem desenvolve nada. É
apenas o porta-voz de um grupo que, no atual contexto religioso, ainda
replica argumentos usados por países colonialistas para a dominação e
exploração dos mais pobres, especialmente na África. Isso é muito
triste.
Diria que é uma teologia superada, fora de uso?
Não. Ainda é usada por setores de direita, ultraconservadores. Em
2010, o tele-evangelista americano Pat Robertson, dono de um canal de
televisão, disse que a grande tragédia provocada pelo terremoto no Haiti
naquele ano era decorrente de um pacto que os haitianos haviam feito
com o diabo, quando lutavam para se livrarem do jugo da França e se
tornarem independentes. Em outras palavras, em 1804 eles venderam a alma
ao demônio, que veio cobrar a dívida agora, dois séculos depois. A
manifestação de Robertson foi uma asneira, uma estupidez que provocou
manifestações de repúdio em amplos setores da sociedade americana. Mas
ele não estava falando sozinho. Ainda existem segmentos, dos quais Marco
Feliciano faz parte, que repetem esse tipo de coisa, que defendem a
relação entre causa e efeito, a maldição das pessoas pela divindade que
tudo ordena e orquestra, como se nossas escolhas, decisões e
articulações sociais não interferissem nos resultados. Trata-se de um
simplismo cruel e inútil.
É o que pregam nas igrejas?
Sim. Enquanto o Marco Feliciano dizia essas coisas num círculo
religioso restrito, era bem recebido pelos seus pares. Tem uma expressão
que define isso da seguinte maneira: “Quando você prega para o coral, é
bem aceito por ele.” Ao se tornar um homem público, porém, o discurso
dele transbordou, extravasou o espaço religioso e se tornou passível de
crítica pela sociedade civil.
É possível afirmar que o discurso dele é racista?
É racista na sua essência. Nasceu do racismo, dos interesses
coloniais de menosprezar e demonizar o negro para justificar a sua
exploração.
Esse discurso não parece mais próprio dos Estados Unidos, onde a integração racial ainda incomoda alguns setores?
Não se deve esquecer que as lideranças evangélicas no Brasil estão se orientando basicamente por autores norte-americanos.
Há pouco mais de meio século,
quando se debatia o casamento interracial no Estados Unidos, grupos
conservadores diziam que era proibido pela Bíblia.
Na época em que morei nos Estados Unidos e viajei pelo sul daquele
país, fiquei impressionado com a forma como o movimento evangélico ainda
está dividido, segregado do ponto de vista racial. Negros e brancos
ainda congregam em igrejas diferentes. Certa vez acompanhei um pastor
que havia ido a um hospital visitar uma pessoa muito doente. Durante a
visita, ele disse ao doente que há muito tempo não o via na igreja e que
estava interessado em saber o motivo daquele afastamento. Ele respondeu
que não ia mais porque a igreja estava sendo frequentada por negros. O
pastor quis amenizar, dizendo que os negros também são filhos de deus,
mas o doente retrucou na hora que negros não têm alma. Ainda perdura ali
a ideia de que o negro é um cidadão menor.
Como analisa essa ideia de maldição sobre um continente inteiro?
Além de inoportuno, é um discurso de um simplismo político absurdo,
inadmissível para um deputado. Ele desconsidera que o continente
africano, apesar de retalhado e dividido politicamente pelos países
colonialistas, ainda abriga milhares de nações, etnias, dialetos,
culturas. Quais delas são as amaldiçoadas? De qual povo ele está
falando? Qual etnia? Eles não constituem um bloco único como quer o
deputado.
Na sua avaliação, não existe mesmo a possibilidade de o deputado estar sendo atacado pelo fato de ser evangélico?
As declarações dele são inaceitáveis independentemente do fato de ser
evangélico. Qualquer pessoa que dissesse o que ele disse enfrentaria
problemas. Isso não quer dizer que a associação que se faz entre
Feliciano e o mundo evangélico seja ilegítima, porque, como já disse,
existem segmentos que repetem e ensinam essa teologia. Nas vezes em que
me manifesto sobre isso, sempre aparecem pessoas me questionando: mas
isso não está escrito na Bíblia? Não é uma verdade bíblica?
Não acha estranho esse tipo de teologia ter seguidores no Brasil?
Acho. Mas não se pode esquecer que aqui também temos os skinheads. O
único país do mundo que não poderia ter ações desse grupo é o Brasil,
mas nós temos.
E quanto às restrições do deputado aos gays?
O Congresso deve tratar a questão como uma demanda civil. A
comunidade gay aspira por relacionamentos juridicamente estáveis e, na
minha opinião, as demandas civis de qualquer grupo precisam ser
contempladas pela sociedade e seus órgãos de representação. Um exemplo:
foi aprovada agora uma série de leis trabalhistas que valorizam o
trabalho das domésticas – o que era uma demanda justa. Todas as demandas
justas precisam ser contempladas sem a necessidade de moralização
exacerbada do debate. Não existem grupos que estão acima de todos os
outros.
Acha que o Supremo Tribunal Federal acertou quando reconheceu os direitos dos gays?
Sim. O Supremo foi de uma felicidade extrema quando olhou para a
questão homossexual de forma isenta, livre de qualquer pressão, tanto da
Igreja Católica como de grupos protestantes e evangélicos. Numa
sociedade que se pretende laica, é assim que deve ser. O Sérgio Buarque
de Holanda já disse que o Estado não é um desdobramento maior da família
ou de grupos de interesses. O Estado tem que se distinguir, tem que
legislar à parte, porque não se trata de uma família grande. Se não for
dessa maneira, o Brasil cai no patriarcalismo, fica sob o controle de
oligarquias patriarcais, que irão legislar a partir de seus interesses,
para que eles prevaleçam sobre todos. A questão gay deve ser contemplada
pela sociedade civil como a reivindicação de um grupo que busca
tratamento igual perante a lei.
Feliciano deve renunciar ou permanecer no cargo?
Deve renunciar logo. A teimosia dele em permanecer no cargo vai
trazer prejuízos enormes para o grupo que pretende representar. O
desgaste para o mundo evangélico já é patente. Existe o risco de
rejeição ao grupo. Se ele realmente se vê como representante do mundo
evangélico no parlamento, a renúncia seria a atitude mais lúcida diante
do atual estado de coisas.
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Fonte: http://blogs.estadao.com.br/roldao-arruda/pregacao-de-feliciano-e-racista-afirma-pastor-e-teologo/
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