O criminalista, antes contrário à redução da maioridade penal, mudou de opinião – mas diz que antes é preciso resolver outros problemas, como o dos presídios
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Antônio Cláudio Mariz de Oliveira, de 67 anos, é um dos mais
experientes advogados criminalistas do Brasil. Foi presidente da Ordem
dos Advogados do Brasil (OAB-SP) e é conselheiro do Instituto de Defesa
do Direito de Defesa (IDDD). Atuou em casos importantes, como o
Collorgate e o mensalão. Nunca escondeu sua simpatia política pelos
partidos de esquerda – na ditadura, apoiou o MDB. Mesmo quando esteve à
frente da Secretaria da Segurança Pública do Estado de São Paulo,
entre 1990 e 1991, não abandonou suas convicções de defensor dos
direitos humanos – entre elas, a inimputabilidade dos menores de 18 anos
garantida pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). Agora,
diante de um cenário que ele classifica como uma “violência
de caráter patológico”, Mariz de Oliveira mudou: “Hoje, me sinto
impossibilitado com minha consciência de continuar com esse discurso”.
ÉPOCA – Até uma década atrás, o alto grau de violência da sociedade brasileira era atribuído quase totalmente às desigualdades sociais. O senhor concorda com isso?
Antônio Cláudio Mariz de Oliveira – Esta violência urbana, do assaltante, do estuprador, teve sua raiz no social, impulsionada pelo consumismo que tomou conta do país. Hoje, as questões sociais e algumas de caráter econômico, como a ampliação do crédito, estão se desprendendo do crime, ou o crime está se desprendendo delas. Temos uma criminalidade extremamente preocupante, a violência sem causa. Isso demonstra um desamor, um desrespeito à vida humana. Mesmo sob a ótica do criminoso, a violência não apresenta nenhuma razão de ser. O assaltante despoja você de todos os seus bens e depois dá um tiro na cara. O professor morre porque deu nota baixa ao aluno. Estamos diante de uma violência de caráter patológico.
ÉPOCA – Qual a causa?
Mariz de Oliveira – Não sei. Mas sei dizer o que não deve ser a resposta: o combate a esse tipo de violência não pode se limitar à cadeia. A punição não resolverá o problema. Estamos enxugando gelo há 50 anos, pedindo mais polícia na rua, pedindo pena de morte e aplaudindo veladamente os grupos de extermínio. Ou passamos a ter um discurso voltado para a descoberta das causas da criminalidade, causas de caráter social, ético, moral, sociológico, psiquiátrico, ou viveremos cada vez mais reféns da insegurança subjetiva, do temor do crime. O medo é o terror gerado por toda uma cultura da insegurança.
ÉPOCA – Como o senhor acompanha o debate em torno da redução da maioridade penal, relançado agora pelo governo Geraldo Alckmin (PSDB-SP)?
Mariz de Oliveira – Sempre fui contra, a vida inteira, veementemente contra. Hoje, tenho mudado de opinião. Primeiro, porque a infância e a adolescência não são mais as mesmas de 30 anos atrás. Não há mais ingenuidade, aquele elevado grau de pureza. Por causa dos avanços tecnológicos, a sociedade é mais liberal, os pais tratam os filhos de maneira mais democrática. Isso dá às crianças um acesso prematuro a informações de todas as espécies. Por outro lado, embora possamos teorizar em torno da inimputabilidade do menor, isso tudo perde sentido diante do fato concreto. Como posso usar esse discurso de que o menor não está devidamente formado, de que ele não sabe o que faz, diante de um rapaz de 16 anos que dá um tiro na cabeça de outra pessoa? Hoje, me sinto impossibilitado com a minha consciência de continuar com esse discurso. Mas, simplesmente, diminuir a idade (penal) não resolverá nada. O sistema penitenciário é fator de aumento do grau de criminalidade.
ÉPOCA – Qual a solução?
Mariz de Oliveira – A proposta do governador Alckmin não é ruim: aumentar o tempo de internação, que deve variar de acordo com a gravidade do crime e periculosidade de quem o comete, possibilitando ao juiz graduar, e não mais ficar limitado a três anos, como hoje. Mas, depois de prender, é preciso investir na liberdade, fazer com o menor preso o que não foi feito quando ele estava em liberdade, suprir as carências na saúde, educação e cultura.
ÉPOCA – Os presídios brasileiros têm condições de fazer isso?
Mariz de Oliveira – Não, teríamos de investir, de criar escola presídio, indústria presídio.
ÉPOCA – É possível dizer que os diferentes governos de diferentes partidos falharam no combate ao crime?
Mariz de Oliveira – Atribuo essa falha ao discurso sem foco e enganoso de que apenas cadeia resolve. A prisão como única resposta é uma falácia. Essas leis criadas em momento de pânico servem apenas para enganar a população. Isso que a classe política faz é criminoso. Qual é a raiz do crime de colarinho-branco? É falta de ética. E não discutimos isso. Pedem apenas a prisão do outro para que possam continuar a praticar seus crimes, continuar levando vantagem. O Brasil sempre foi um país com desvios de conduta, com esse jeitinho de contornar as normas. Se um menino aprende com o pai a comprar produtos piratas, na idade adulta não terá muito clara a noção do ilícito. O próprio sistema tributário brasileiro é um fator criminógeno, porque a alta carga é incompatível com a renda de 90% da população. Ela paga sem sequer saber o que paga e para onde vai esse dinheiro. Quem não pode pagar sonega para sobreviver.
ÉPOCA – O Brasil ficou famoso como país da impunidade, que não coloca criminosos na cadeia. O senhor acredita nisso?
Mariz de Oliveira – Isso é uma falácia. O que é a impunidade? Você tem ideia de quantos autores de crimes não são descobertos? As pessoas dizem assim: “Aumentaremos as penas, porque o sujeito sabendo que pegará 25 anos de cadeia não cometerá crimes”. Mentira. Nada intimida o criminoso, porque ele não só não tem medo da punição, como tem quase certeza de que não será descoberto. Quem descobrirá? Mato uma pessoa no meio da rua e vou embora, pronto. Os sistemas de repressão têm falhas. Há uma estrutura de Polícia Militar e Polícia Civil que não funciona.
ÉPOCA – O senhor é favorável à unificação das polícias?
Mariz de Oliveira – Sim, com a desmilitarização da Polícia Militar. A missão dela não deve ser o combate de guerra, mas a proteção ao cidadão. Fui secretário da Segurança de São Paulo e posso dizer: não há 5 mil policiais na rua. Eles não vão para a rua.
ÉPOCA – O senhor foi advogado do jornalista Pimenta Neves, que matou a namorada, Sandra Gomide, em 2000 e só foi preso em 2011. Esse caso foi apontado como um exemplo de impunidade.
Mariz de Oliveira – O crime e o processo em si já foram uma punição para ele. O fato de ele ter sido preso somente depois de dez anos não diz nada, não significou nenhum embaraço à sociedade. Ele em liberdade não matou mais gente.
ÉPOCA – O julgamento do mensalão foi bom para o Brasil na sua visão? Mariz de Oliveira – Durante um tempo, ficará essa visão de que se fez justiça. Mas não sei se isso durará muito tempo, porque não se fez justiça por inteiro. Ela foi parcial e para satisfazer anseios sociais. Fui advogado do PC (Paulo César Farias, morto em 1996), durante o Collorgate (processo que levou ao impeachment de Fernando Collor, em 1992), e posso dizer que, desde então, o Brasil não mudou. Continuam existindo a necessidade de obter recursos para campanhas, as sobras, as empresas que dão dinheiro, mas não querem dizer que deram, a montagem dos apoios aos governos. É tudo igualzinho até hoje.
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Reportagem por ALBERTO BOMBIG
Fonte:http://revistaepoca.globo.com//tempo/noticia/2013/05/mariz-de-oliveira-vivemos-era-da-violencia-sem-causa.html
ÉPOCA – Até uma década atrás, o alto grau de violência da sociedade brasileira era atribuído quase totalmente às desigualdades sociais. O senhor concorda com isso?
Antônio Cláudio Mariz de Oliveira – Esta violência urbana, do assaltante, do estuprador, teve sua raiz no social, impulsionada pelo consumismo que tomou conta do país. Hoje, as questões sociais e algumas de caráter econômico, como a ampliação do crédito, estão se desprendendo do crime, ou o crime está se desprendendo delas. Temos uma criminalidade extremamente preocupante, a violência sem causa. Isso demonstra um desamor, um desrespeito à vida humana. Mesmo sob a ótica do criminoso, a violência não apresenta nenhuma razão de ser. O assaltante despoja você de todos os seus bens e depois dá um tiro na cara. O professor morre porque deu nota baixa ao aluno. Estamos diante de uma violência de caráter patológico.
ÉPOCA – Qual a causa?
Mariz de Oliveira – Não sei. Mas sei dizer o que não deve ser a resposta: o combate a esse tipo de violência não pode se limitar à cadeia. A punição não resolverá o problema. Estamos enxugando gelo há 50 anos, pedindo mais polícia na rua, pedindo pena de morte e aplaudindo veladamente os grupos de extermínio. Ou passamos a ter um discurso voltado para a descoberta das causas da criminalidade, causas de caráter social, ético, moral, sociológico, psiquiátrico, ou viveremos cada vez mais reféns da insegurança subjetiva, do temor do crime. O medo é o terror gerado por toda uma cultura da insegurança.
ÉPOCA – Como o senhor acompanha o debate em torno da redução da maioridade penal, relançado agora pelo governo Geraldo Alckmin (PSDB-SP)?
Mariz de Oliveira – Sempre fui contra, a vida inteira, veementemente contra. Hoje, tenho mudado de opinião. Primeiro, porque a infância e a adolescência não são mais as mesmas de 30 anos atrás. Não há mais ingenuidade, aquele elevado grau de pureza. Por causa dos avanços tecnológicos, a sociedade é mais liberal, os pais tratam os filhos de maneira mais democrática. Isso dá às crianças um acesso prematuro a informações de todas as espécies. Por outro lado, embora possamos teorizar em torno da inimputabilidade do menor, isso tudo perde sentido diante do fato concreto. Como posso usar esse discurso de que o menor não está devidamente formado, de que ele não sabe o que faz, diante de um rapaz de 16 anos que dá um tiro na cabeça de outra pessoa? Hoje, me sinto impossibilitado com a minha consciência de continuar com esse discurso. Mas, simplesmente, diminuir a idade (penal) não resolverá nada. O sistema penitenciário é fator de aumento do grau de criminalidade.
ÉPOCA – Qual a solução?
Mariz de Oliveira – A proposta do governador Alckmin não é ruim: aumentar o tempo de internação, que deve variar de acordo com a gravidade do crime e periculosidade de quem o comete, possibilitando ao juiz graduar, e não mais ficar limitado a três anos, como hoje. Mas, depois de prender, é preciso investir na liberdade, fazer com o menor preso o que não foi feito quando ele estava em liberdade, suprir as carências na saúde, educação e cultura.
ÉPOCA – Os presídios brasileiros têm condições de fazer isso?
Mariz de Oliveira – Não, teríamos de investir, de criar escola presídio, indústria presídio.
ÉPOCA – É possível dizer que os diferentes governos de diferentes partidos falharam no combate ao crime?
Mariz de Oliveira – Atribuo essa falha ao discurso sem foco e enganoso de que apenas cadeia resolve. A prisão como única resposta é uma falácia. Essas leis criadas em momento de pânico servem apenas para enganar a população. Isso que a classe política faz é criminoso. Qual é a raiz do crime de colarinho-branco? É falta de ética. E não discutimos isso. Pedem apenas a prisão do outro para que possam continuar a praticar seus crimes, continuar levando vantagem. O Brasil sempre foi um país com desvios de conduta, com esse jeitinho de contornar as normas. Se um menino aprende com o pai a comprar produtos piratas, na idade adulta não terá muito clara a noção do ilícito. O próprio sistema tributário brasileiro é um fator criminógeno, porque a alta carga é incompatível com a renda de 90% da população. Ela paga sem sequer saber o que paga e para onde vai esse dinheiro. Quem não pode pagar sonega para sobreviver.
ÉPOCA – O Brasil ficou famoso como país da impunidade, que não coloca criminosos na cadeia. O senhor acredita nisso?
Mariz de Oliveira – Isso é uma falácia. O que é a impunidade? Você tem ideia de quantos autores de crimes não são descobertos? As pessoas dizem assim: “Aumentaremos as penas, porque o sujeito sabendo que pegará 25 anos de cadeia não cometerá crimes”. Mentira. Nada intimida o criminoso, porque ele não só não tem medo da punição, como tem quase certeza de que não será descoberto. Quem descobrirá? Mato uma pessoa no meio da rua e vou embora, pronto. Os sistemas de repressão têm falhas. Há uma estrutura de Polícia Militar e Polícia Civil que não funciona.
ÉPOCA – O senhor é favorável à unificação das polícias?
Mariz de Oliveira – Sim, com a desmilitarização da Polícia Militar. A missão dela não deve ser o combate de guerra, mas a proteção ao cidadão. Fui secretário da Segurança de São Paulo e posso dizer: não há 5 mil policiais na rua. Eles não vão para a rua.
ÉPOCA – O senhor foi advogado do jornalista Pimenta Neves, que matou a namorada, Sandra Gomide, em 2000 e só foi preso em 2011. Esse caso foi apontado como um exemplo de impunidade.
Mariz de Oliveira – O crime e o processo em si já foram uma punição para ele. O fato de ele ter sido preso somente depois de dez anos não diz nada, não significou nenhum embaraço à sociedade. Ele em liberdade não matou mais gente.
ÉPOCA – O julgamento do mensalão foi bom para o Brasil na sua visão? Mariz de Oliveira – Durante um tempo, ficará essa visão de que se fez justiça. Mas não sei se isso durará muito tempo, porque não se fez justiça por inteiro. Ela foi parcial e para satisfazer anseios sociais. Fui advogado do PC (Paulo César Farias, morto em 1996), durante o Collorgate (processo que levou ao impeachment de Fernando Collor, em 1992), e posso dizer que, desde então, o Brasil não mudou. Continuam existindo a necessidade de obter recursos para campanhas, as sobras, as empresas que dão dinheiro, mas não querem dizer que deram, a montagem dos apoios aos governos. É tudo igualzinho até hoje.
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Reportagem por ALBERTO BOMBIG
Fonte:http://revistaepoca.globo.com//tempo/noticia/2013/05/mariz-de-oliveira-vivemos-era-da-violencia-sem-causa.html
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