sexta-feira, 10 de maio de 2013

Papa Francisco: «Foi assim que aprendemos a cozinhar»

Foto
Da infância à vocação religiosa, da alegria ao celibato, da culpa à morte: excertos de uma entrevista que o cardeal Jorge Bergoglio, então arcebispo de Buenos Aires, concedeu a dois jornalistas antes do conclave que o viria a tornar o sucessor de Bento XVI ("Papa Francisco", de Francesca Ambrogetti e Sergio Rubin, ed. Paulinas).

Foi assim que aprendemos a cozinhar

Brincava com os seus pais?
Sim, à bisca e outros jogos de cartas. Como o meu pai jogava basquete no clube San Lorenzo, às vezes levava-nos. Com a minha mãe ouvíamos aos sábados às duas da tarde as óperas que a Rádio do Estado (hoje Rádio Nacional) passava. Mandava-nos sentar em volta do aparelho e, antes que a ópera começasse, explicava-nos de que se tratava. Quando estava para começar alguma ária importante, dizia-nos: «Oiçam bem, que vai cantar uma canção muito linda.» A verdade é que estarmos com a minha mãe, os três irmãos mais velhos, aos sábados às duas da tarde, a ter prazer com a arte, era uma beleza.

Portavam-se bem? Não é uma coisa fácil para um rapazinho concentrar-se numa ópera...
Sim... bom. Às vezes a meio começávamos a dispersar-nos, mas ela mantinha-nos a atenção, porque na continuação seguia com as suas explicações. No «Otelo», avisava-nos: «Oiçam bem, agora ele mata-a.» São essas as coisas que recordo da minha infância: a presença dos avós, como eu disse, cuja figura se foi apagando na sociedade e que agora, devido à crise económica, volta a aparecer, porque eles são necessários para cuidar das crianças. E, sobre tudo, lembro-me do meu pai e da minha mãe a conviverem connosco, a brincar... a cozinhar...
Foto

A cozinhar?
Eu explico: a minha mãe ficou paralítica depois do quinto parto, embora com o tempo se tenha recomposto. Mas, nesse lapso, quando chegávamos do colégio encontrávamo-la sentada a descascar batatas e com todos os outros ingredientes preparados. Então, ela dizia-nos como é que tínhamos de misturá-los, porque nós não fazíamos ideia: «Agora, ponham isto e mais isto na panela e aquilo na frigideira...», explicava-nos. Foi assim que aprendemos a cozinhar. Todos sabemos fazer, pelo menos, bifes à milanesa.

A minha vocação religiosa

Porque é que escolheu ser sacerdote jesuíta?
Na realidade, não sabia muito bem para que lado tombar. O que estava claro era a minha vocação religiosa. No fim, depois de passar pelo seminário arquidiocesano de Buenos Aires, entrei para a Companhia de Jesus atraído pela sua condição de força avançada da Igreja, falando em linguagem castrense, desenvolvida com obediência e disciplina. E por estar orientada para a tarefa missionária.

Como é que a sua família reagiu quando lhes disse que queria ser sacerdote?
Primeiro, disse ao meu pai e ele achou muito bem. Mais ainda: sentiu-se feliz. Só me perguntou se eu estava realmente seguro da decisão. Foi ele que depois disse à minha mãe que, como boa mãe, tinha começado já a pressentir. Mas a reação dela foi diferente. «Não sei, eu não te vejo... Tens de esperar um pouco... És o mais velho... Continua a trabalhar... Termina a faculdade», disse ela. A verdade é que reagiu mal.
Foto
O que é que aconteceu depois?
Quando entrei para o seminário, a minha mãe não me acompanhou, não quis ir. Durante anos não aceitou a minha decisão. Não estávamos zangados. Só que eu ia a casa, mas ela não ia ao seminário. [...]
No noviciado, em Córdoba, vinha visitar-me. Atenção!: ela era uma mulher religiosa, praticante, mas considerava que tudo tinha acontecido demasiado depressa... Mas era coerente: lembro-me de a ver de joelhos diante de mim ao finalizar a cerimónia da ordenação sacerdotal pedindo-me a bênção.

Quanto acredita ter havido de decisão sua e quanto de «escolha de Deus»?
A vocação religiosa é um chamamento de Deus a um coração que está à espera dele consciente ou inconscientemente. A mim sempre me impressionou uma leitura do breviário que diz que Jesus olhou para Mateus numa atitude que, traduzida, seria algo assim como «olhou-o com misericórdia e elegeu-o». Essa foi, precisamente, a maneira como eu senti que Deus olhou para mim durante aquela confissão [que o haveria de levar ao sacerdócio].

Um santo triste é um triste santo

O senhor não pode negar que a Igreja considerou o martírio, nos seus dois milénios, como caminho para a santidade.
Devemos fazer um esclarecimento: falar de mártires significa falar de pessoas que deram testemunho até ao final, até à morte. Dizer que a minha vida «é um martírio» deveria significar que «a minha vida é um testemunho». Mas atualmente esta ideia é associada ao cruento. Não obstante, no troço final da vida de algumas testemunhas, a palavra passou a ser sinónimo de dar a vida pela fé.
O termo, se a ex pressão me for permitida, foi «apoucado». A vida cristã é dar testemunho com alegria, como Jesus fazia. Santa Teresa dizia que um santo triste é um triste santo.
Foto
Dar testemunho de alegria, mesmo quando a Igreja convida à penitência e ao sacrifício como forma de expiação?
Claro que sim. Pode-se fazer jejum e outras formas de privação e ir progredindo espiritualmente sem perder a paz e a alegria. Mas cuidado, também não posso cair na heresia do pelagianismo, numa forma de autossuficiência, segundo a qual eu me santifico se fizer penitência e, então, tudo passa a ser penitência. No caso da dor, o problema é que, em certas oportunidades, é mal conduzida. De qualquer modo, não sou muito amigo das teorizações diante de pessoas que atravessam momentos duros.
Faz-me lembrar a passagem evangélica da samaritana que tinha tido cinco fracassos matrimoniais e não os podia assumir. E que, quando se encontra com Jesus e lhe começa a falar de teologia, o Senhor fá-la descer à terra, acompanha-a no seu problema, põe-na a encarar a verdade e não deixa que ela se aliene com uma reflexão teológica.

Estou sempre a colocar mais perguntas

Como é que examina a sua vida e o seu ministério diante de Deus?
Não quero vangloriar-me, mas a verdade é que sou um pecador a quem a misericórdia de Deus amou de uma maneira privilegiada. Desde novo, a vida colocou-me em cargos de responsabilidade – recém-ordenado sacerdote fui designado mestre de noviços, e dois anos e meio de pois, provincial – e tive de ir aprendendo com o caminho, com os meus erros porque, isso sim, cometi erros aos montes. Erros e pecados. Seria falso da minha parte dizer que hoje em dia peço perdão pelos pecados e pelas ofensas que possa ter cometido. Hoje peço perdão pelos pecados e pelas ofensas que efetivamente cometi.
Foto

O que é que reprova mais em si?
O que mais me dói é não ter sido muitas vezes equânime. Na oração da manhã, no momento dos pedidos, peço para ser compreensivo e equânime e depois continuo a pedir mais uma série de coisas que têm a ver com as evasões no meu caminhar.

Alguém pode pensar que um crente que chega a cardeal tem as coisas muito claras...
Não é verdade. Não tenho todas as respostas. Nem sequer todas as perguntas. Estou sempre colocar mais perguntas a mim próprio, surgem sempre perguntas novas. Mas perante as diferentes situações é que vamos elaborando as respostas e também esperando por elas.
Confesso que, em geral, pelo meu temperamento, a primeira resposta que me surge é errada. Perante uma situação, a primeira coisa que me ocorre é o que não é para fazer. É curioso, mas acontece-me assim. Por isso aprendi a desconfiar da primeira reação.

O catolicismo e a noção de culpa

Há psicólogos que dizem que a Igreja joga muito com a culpa, e também sacerdotes que chamam a atenção para a perda do sentido do pecado.
Para mim o sentir-se pecador é uma das coisas mais bonitas que pode acontecer a uma pessoa, se a levar até às suas últimas consequências. Eu explico: Santo Agostinho, ao falar da redenção, ao ver o pecado de Adão e Eva e ao ver a paixão e ressurreição de Jesus, comenta: Feliz pecado que nos mereceu uma tal redenção. Cantamos isto na noite de Páscoa: «Feliz culpa, feliz pecado.» Quando uma pessoa toma consciência de que é pecador e que é salvo por Jesus, confessa esta verdade a si mesmo e descobre a pérola escondida, o tesouro enterrado. Descobre como é grande a vida: que há alguém que o ama profundamente, que deu a sua vida por ele.
Foto
Isto é, segundo o seu raciocínio, a perda do sentido do pecado dificulta o encontro com Deus?
Há pessoas que se julgam justas, que de algum modo aceitam a catequese, a fé cristã, mas não têm a experiência de ter sido salvas. Uma coisa é contarem-nos que um rapaz estava a afogar-se no rio e uma pessoa atirou-se para o salvar, outra coisa é vermos isso e outra ainda é sermos nós a afogar-nos e vir outro atirar-se para nos salvar. [...] Costumo dizer que a única glória que temos, como sublinha São Paulo, é sermos pecadores.

Afinal, acaba por ser uma vantagem para o crente... (Risos)
Bom, não esqueçamos que o não crente também pode beneficiar com as suas falhas. Se um agnóstico ou um ateu for consciente da debilidade da sua existência e souber que agiu mal, também sente dor por isso e quer superar essa situação, engrandece-se. Portanto, essa falha serve-lhe como trampolim para o seu crescimento. O presidente da câmara de uma grande cidade europeia contava uma vez que ele todas as noites acabava o seu dia com um exame de consciência. [...] O que estava mal servia-lhe para ser melhor.

Esta perspetiva, no mínimo, permite enfrentar de outra maneira o tema da «culpa» no catolicismo.
Certamente. Por isso, para mim o pecado não é uma nódoa que tenho de limpar. O que devo fazer é pedir perdão e reconciliar-me, não ir à lavandaria do japonês ali ao virar da esquina. De qualquer modo, devo ir ao encontro de Jesus que deu a sua vida por mim. É uma conceção do pecado muito diferente.
Foto

Desemprego, crise e modelos alternativos

E os que querem trabalhar e não podem?
O que acontece é que o desempregado, nas suas horas de solidão, sente-se infeliz, por que «não ganha a vida». Por isso, é muito importante que os governos dos diferentes países, através dos ministérios competentes, fomentem uma cultura do trabalho e não da dádiva. É verdade que em momentos de crise há que recorrer à dádiva para sair da emergência, como aquela que nós, argentinos, vivemos em 2001. Mas depois é preciso ir fomentando fontes de trabalho porque, e não me canso de o repetir, o trabalha outorga dignidade.

Mas a escassez de trabalho implica um desafio enorme. Alguns até falam do «fim do trabalho»...
Vamos lá ver... na medida em que menos pessoas trabalham, menos pessoas consomem. O homem intervém cada vez menos na produção, mas ao mesmo tempo é ele quem vai comprar os produtos. Parece que isto se perdeu um pouco de vista. Acho que não se está a explorar os trabalhos alternativos.

Na outra ponta está o problema do excesso de trabalho... Será necessário recuperar o sentido do ócio?
O seu sentido mais reto. O ócio tem duas aceções: como desocupação e como gratificação. Juntamente com a cultura do trabalho, deve-se ter uma cultura do ócio como gratificação. Dizendo de outra maneira: uma pessoa que trabalha deve ter tempo para descansar, para estar em família, para ter prazer, ler, ouvir música, praticar um desporto. Mas isto está a ser destruído, em boa medida, com a supressão do descanso dominical. Há cada vez mais pessoas a trabalhar aos domingos como consequência da competitividade colocada pela sociedade de consumo. Nesses casos, vamos para o outro ex tremo: o trabalho acaba por desumanizar. [...] Está viciada a intenção pela qual estou a trabalhar...
Foto

E, obviamente, a vida familiar ressente-se...
Por isso, uma das coisas que eu pergunto sempre, na confissão, aos pais jovens é se brincam com os seus filhos. Às vezes ficam surpreendidos porque não esperam uma pergunta como esta e admitem que nunca a tinham colocado. Muitos deles vão trabalhar quando os seus filhos ainda não acordaram e voltam quando eles já estão a dormir. E nos fins-de-semana, vencidos pelo cansaço, não cuidam deles como deveria ser. O ócio saudável pressupõe que a mãe e o pai brinquem com os seus filhos.

Sem risco, não se pode avançar e, só com riscos, também não

Como é que, por exemplo, a escola pode encontrar o ponto de equilíbrio?
Vamos falar do aluno e tornar isso extensivo à escola. Costumo dizer que para educar é preciso ter em conta duas realidades: o quadro de segurança e a zona de risco. Não se pode educar apenas com base em quadros de segurança, nem apenas com base em zonas de risco; tem de haver uma proporção, não digo equilíbrio, mas sim proporção. A educação pressupõe um desequilíbrio. Uma pessoa começa a caminhar quando nota o que lhe falta, por que se não lhe faltar qualquer coisa não caminha.

Qual seria, então, o são desequilíbrio educativo?
É preciso caminhar com um pé no quadro de segurança, ou seja, em tudo o que vem adquirido, no que foi incorporado pelo aluno, aquilo onde está seguro e se sente confortável. E com o outro pé, tentar zonas de risco, que têm de ser proporcionais ao quadro de segurança, à idiossincrasia da pessoa, ao meioso cial. [...] Sem risco, não se pode avançar e, só com riscos, também não.
Foto
Isso tem relação com aquilo a que o senhor chama «a cultura do naufrágio»?
Em parte, sim, porque o náufrago enfrenta o desafio de sobreviver com criatividade. Ou espera que o venham resgatar ou ele próprio começa o seu próprio resgate. Na ilha onde chega tem de começar a construir uma palhota para a qual pode utilizar as tábuas do barco afundado e, também, elementos novos que encontra no lugar. O desafio de assumir o passado, ainda que já não flutue, e de utilizar as ferramentas que o presente oferece tendo em vista o futuro.

Celibato e dificuldades do clero

A Igreja irá ou não rever alguma vez o celibato?
Para já, devo dizer que não gosto de fazer de adivinho. Mas, supondo que a Igreja decidisse rever esta norma, creio que não o faria por causa da escassez de sacerdotes. Também não penso que fosse uma norma para todos os que quisessem abraçar o sacerdócio. Se, por hipótese, alguma vez o fizesse, seria por uma questão cultural, como é o caso do Oriente, onde se ordenam homens casados. [...] É essa a minha convicção.

Mas essa hipótese poderá pôr-se?
Neste momento continuo de acordo com o que disse Bento XVI: o celibato mantém-se, e estou convencido disso. Ora bem, como é que a sua permanência repercute na quantidade de vocações? Não tenho a certeza de que a sua eliminação vá provocar um aumento das vocações ao ponto de atenuar a sua escassez. Por outro lado, ouvi dizer uma vez a um sacerdote que a eliminação do celibato lhe permitiria não estar sozinho e ter uma mulher, mas que com isso também estaria a comprar uma sogra... (Risos)
Foto

A morte está todos os dias no meu pensamento

A propósito, o senhor pensa na sua própria morte?
Há uns tempos que é uma companheira quotidiana.

Porquê?
Passei dos 70 anos e o fio que resta no carreto não é muito. Não vou viver outros 70 e começo a considerar que tenho de deixar tudo. Mas vivo isso como uma coisa normal. Não estou triste. Uma pessoa fica com vontade de ser justo com todos em todas as situações, de, no final, fazer – digamos – caligrafia inglesa. Nunca me ocorreu fazer um testamento. Mas a morte está todos os dias no meu pensamento.
Foto
 ---------------------
In Papa Francisco - Conversas com Jorge Bergoglio, ed. Paulinas
Fotografias: Audiência geral de 8.5.2013, Praça de São Pedro, Vaticano. News.va
09.05.13

Fonte:  http://www.snpcultura.org/foi_assim_que_aprendemos_a_cozinhar.html

Nenhum comentário:

Postar um comentário