Existe algo que pode morrer em um matrimônio cristão, e a Igreja deve
reconhecer isso se quiser permanecer fiel à tradição. Um paradoxo
necessário se quisermos estar na história como crentes.
O que pode morrer, às vezes? O vínculo, o que une os dois cônjuges a
partir do momento em que celebram a sua união. O que não morre, nunca? A
graça de Deus, que permanece indisponível. Indisponível, justamente,
não indissolúvel.
O teólogo Andrea Grillo (foto) entra no debate levantado pela palestra de Kasper no consistório de fevereiro, que gerou muita discussão com um texto tão breve quanto denso (Indissolubile? Contributo al dibattito sui divorziati risposati,
editora Cittadella) em que reúne a proposta do cardeal alemão – que, é
preciso lembrar, por sua vez, é um teólogo de primeira grandeza – e vai
mais longe, sugerindo um pleno reconhecimento eclesial das segundas
núpcias, onde Kasper se detém em uma "via penitencial".
Além de ser competente, Grillo conhece os truques da comunicação. No título já está tudo, dizem os especialistas. E assim, então, um "Indissolúvel?" que evoca imediatamente o célebre "Infalível?" de Küng. Mesmo que, especifique, a intenção de fundo é diferente: "Enquanto naquele texto Küng
contestava fortemente o dogma da infalibilidade, neste caso a
interrogação não diz respeito à substância da doutrina da
indissolubilidade, mas sim à sua formulação teórica e à sua tradução
disciplinar".
Substância e revestimento
Porque, desde as primeiras frases, Grillo deixa as
coisas claras: é tudo mérito do Concílio e de quem o desejou se hoje
estamos aqui falando de segundas uniões reconhecidas pela Igreja – que
não a mesma coisa que fazer do divórcio um sacramento, mas sim dar
cumprimento a um caminho que começa com a Dignitatis humanae e chega à Evangelii gaudium, de Francesco, passando pela Familiaris consortio, de João Paulo II.
A diferença entre "substância da antiga doutrina do depositum fidei" e a "formulação do seu revestimento" é decisiva, lembra Grillo, sobretudo em um âmbito como o familiar em que a Igreja ainda parece ter voz. A "virada pastoral" do Vaticano II deu à Igreja a oportunidade de afinar a sua doutrina, de redescobrir, em suma, a vivacidade do dogma.
Porém, resiste uma "raiz antimoderna que uma parte da cultura
eclesial continua alimentando cegamente". Mas "uma doutrina matrimonial
angelicada, que conhece apenas ser ou não ser (validade ou invalidade),
que não concebe o devir e a história não gera santos, mas sim injustiças
(e sofrimentos) maiores".
Segundo Grillo, a teoria clássica da
indissolubilidade não é mais viável, porque só tem duas respostas: "Ou
negando a primeira união (mediante a verificação da sua nulidade do
matrimônio) ou influindo na segunda união (ou mediante o pedido de
retorno à primeira união ou, em caso de irreversibilidade, mediante o
pedido de viver a segunda união 'como irmão e irmã')".
Soluções decepcionantes, irrealistas: a nulidade já se tornou uma
ficção jurídica, uma acomodação teórico para uma realidade incontrolável
("Eu falei com o papa sobre isso, e ele me disse que acredita que 50%
dos matrimônios não são válidos", disse Kasper há poucos dias à revista norte-americana Commonweal). As segundas núpcias em abstinência perpétua é uma solução despudorada.
Grillo, ao contrário, sugere "uma perspectiva mais
pudica, acerca da existência do vínculo, aceitando que ele também, assim
como os cônjuges, pode morrer", porque, em mais de um caso, ele "não
depende diretamente de uma decisão dos cônjuges".
Transformação da intimidade
Certamente, para reconhecer isso é preciso levantar as antenas,
perceber – antes ainda de teorizar – o que está acontecendo hoje no
coração das pessoas, a "transformação da intimidade, um fenômeno que
modificou e desenvolveu profundamente a experiência dos sujeitos
tardo-moderno e que não pode ser liquidada simplesmente como um tema
sobre o qual se possam aplicar as refutações, embora necessárias, mas
muitas vezes autorreferenciais, de uma teologia apologética". Em suma,
jogar na defesa não é mais suficiente. Ao contrário, faz com que
certamente se perca.
Portanto, o teólogo do Pontificio Ateneo Sant'Anselmo, um dos estudantes mais brilhantes do beneditino Elmar Salmann, faz a sua proposta (inspirada, como ele mesmo ressalta, no trabalho de outro teólogo, Basilio Petrà,
que recupera a práxis ortodoxa): "A Igreja poderia admitir – em
circunstâncias determinadas e não como uma lei geral – que o
reconhecimento da nova união não precisaria se fundamentar na
'inexistência original' da união anterior, mas poderia constatar a
'morte do vínculo' e, assim, descerrar o horizonte de um 'novo início'
possível, vivível e reconhecível, até mesmo no plano da oficialidade
católica. Em substância, se trataria de unir 'radical' e 'pudico'. De
deixar intacto o radical impulso profético à unidade, pedido pelo
Evangelho, mas conjugando-o com um sadio e pudico relativismo, devido à
história e pedido também pelo bom senso".
Relatório-Kasper
Grillo é um polemista de raça, acompanhou o debate do jornal Il Foglio sobre o relatório-Kasper
e respondeu primeiro no seu blog e depois nesse livro em que mistura – e
corre o risco de – gêneros diferentes, teologia e jornalismo, polêmica
mesquinha e controvérsia alta.
Contra Kasper, que invoca "uma mudança de paradigma", lançaram-se muitos e de diversas maneiras. Grillo dá amplo espaço (até mesmo demais) para as objeções de Roberto de Mattei e de Juan José Pérez-Soba. O primeiro – "que bem seria um historiador", nota Grillo – se refugia no mundo das ideias de uma doutrina monolítica repudiada pelo Vaticano II, o Concílio nunca digerido pelos extremistas católicos próximos de Lefebvre.
De Mattei acusa Kasper de querer "contornar" o magistério perene em matéria de família e matrimônio? Grillo
rebate que "esse é, de fato, o 'lugar comum' preferido pelos
tradicionalistas: assim como eles precisam de uma 'missa de sempre', de
um 'padre de sempre', de uma 'irmã de sempre', de uma 'Igreja de sempre'
e de um 'papa de sempre', assim também eles invocam os direitos de uma
'família de sempre', para fechar todas essas estátuas em um museu
diocesano e poder 'visitá-las' e 'contemplá-las' ao seu bel prazer, mas
só como coisas mortas!".
Mas, diante de uma pretensão semelhante, "as estátuas de museu,
inevitavelmente, se rebelam, por mais que se busque culpabilizá-las pela
vida que levam: as supostas estátuas não permanecem rígidas e imóveis
nos esqueminhas que projetamos sobre elas".
É uma pretensão sem história, ou seja, anacrônica: "Assim como para
os papas do início do século XIX, a fé só pode ser salva condenando a
pretensa liberdade do homem, assim também, para De Mattei, o matrimônio só pode se salvar condenando o divórcio".
No entanto, continua Grillo, "esse estilo
oitocentista já estava em dificuldades em relação à sociedade de dois
séculos atrás. Pensar em aplicá-lo à nossa cultura é realmente um
empreendimento desesperado".
Vendo bem, desesperado também é o sofisma de Pérez-Soba: "Às vezes, negar a misericórdia é o único modo de defendê-la das suas adulterações", tipo a de Kasper. O erro fundamental do teólogo do Pontifício Instituto João Paulo II, segundo o seu colega do Sant'Anselmo,
é o de querer "identificar indissolubilidade e misericórdia, monogamia e
monoteísmo", acabando por perder a parte invisível da misericórdia, ou
seja, a profundidade e a riqueza trinitária"; ao contrário, "o
temperamento trinitário do monoteísmo é o horizonte em que o mal menor é
a solução mais conveniente quando o bem máximo gera um mal maior".
Grillo defende Kasper eficazmente
dos seus inúmeros detratores ("Mas são muitos mais os pastores que o
apoiam em silêncio, sem se expor", confidencia-nos durante um bate-papo
quando folheamos juntos o seu trabalho), mas não se contenta com a
solução proposta pelo cardeal alemão, porque "a reconciliação e a
comunhão, que o divorciado em segunda união poderia receber por essa
forma de abertura da disciplina eclesial, teria como sujeitos
interessados Deus, a Igreja, a comunidade dos irmãos, mas não o novo
parceiro. Ao sujeito que se dispõe a abraçar esse itinerário
penitencial, seria reconhecida uma nova possibilidade de comunhão com
Deus Pai, com Cristo, seu Filho, com a Igreja, mas não com o segundo
marido ou a segunda mulher!".
Inclusão e reconhecimento
Em suma, falta uma tomada de posição pública da comunidade em relação ao novo casal, que é exatamente o que Grillo pede. Além disso, se até o rochoso Wojtyla, na Familiaris consortio,
declarou que os divorciados em segunda união não são excomungados,
portanto, não perderam a comunhão eclesial, deve-se encontrar o modo
mais humano – e, portanto, cristão – de tornar visível essa inclusão.
Porém, indico eu a Grillo, o assunto dos divorciados
em segunda união que pedem a comunhão é uma questão de poucos. Embora
talvez seja a fatídica pedrinha que vai emperrar toda a máquina
eclesial... "Certamente – responde o teólogo – trata-se e se tratará de
um fenômeno bastante marginal em relação ao grande rio da vida familiar
cristã. Mas o modo de compreender as famílias felizes também depende do
estilo com que a Igreja se dispõe a acolher as famílias infelizes. O
próprio fato de não reconhecê-las como família ou de falar delas com a
categoria fundamental de adultério é hoje uma forma de má educação
eclesial. E descobrimos, talvez até com surpresa, que há alguns teólogos
e alguns cardeais bastante mal-educados. Talvez isso dependa, como Kasper
lembra com razão, do fato de que falar como célibes de questões que
dizem respeito aos casados se assemelha, às vezes, a uma intervenção
certamente desinteressada, mas totalmente desprovida de experiência
verdadeira. As palavras que se usam para descrever as coisas não são
adequadas e fazem mais danos. Às vezes, respeitar o sagrado silêncio
seria um desempenho ministerial muito mais sábio."
Alguns poderiam trazer à tona a teoria do plano inclinado: falamos de
segunda união, mas por que não, então, de terceira, de quarta...? "É a
atitude típica daqueles que consideram a lei só como uma pedagogia. Para
eles, o plano inclinado inicia com a liberdade de consciência. Mas quem
a nega, no fundo, não é cristão, não confia em Deus."
Sim, mas está escrito: o homem não separe o que Deus uniu. "Com essa
frase, Jesus não quer que o homem disponha da relação. Mas ele não diz
nada a propósito de um vínculo que acaba. Aceitar o fim pode ser muito
mais sábio do que se obstinar em um relacionamento que acabou", responde
Grillo.
O que morre e o que não morre
Em suma, trata-se de captar o que morre e o que não morre, superando uma concepção metafísica de Deus mesmo. "A frase é de Dante
e diz o mistério do Deus trinitário: 'O que não morre e o que pode
morrer não é senão esplendor daquela ideia que dá à luz, amando, o nosso
Senhor'. Aqui, Dante sabe que a contingência das coisas, mesmo a morte
do vínculo, é esplendor de graça. Mais do que o fim do esquema
ontológico, de um Deus demasiadamente uno e demasiadamente pouco trino,
aqui somos nós que o compreendemos melhor. Não é Deus que muda, é a
nossa compreensão que avança, graças à história que muda e nos faz
compreender que a unidade é comunhão, e é mais complexa e rica do que
acreditávamos. E, certamente, não basta uma ontologia fixista para
garantir a comunhão."
Mas a morte do vínculo não é um pouco a morte da própria graça, no
sentido de um Deus comprometido e, portanto, mortal? "A morte do vínculo
é uma das experiências de morte", diz Grillo. "Diante
da morte, de qualquer morte, Deus é sempre posto em questão. Por que
deveríamos nos admirar do fato de que Deus se compromete também com essa
morte? Preferiríamos um Deus burocrata, que valida ou revoga a
realidade simplesmente por um pronunciamento judiciário?"
A esse propósito, dada a crise do direito canônico, que de fato não
tem mais força vinculativa na vida da Igreja, e o peso do aparato
eclesiástico, Grillo acredita que a sua proposta seja
de fato viável? "Parece- me uma passagem obrigatória para a nossa
tradição latina", responde. "A solução exclusivamente penitencial pode
fazer muito sentido no Oriente. Entre nós, poderia ser
facilmente mal interpretada, enquanto uma passagem oficial teria o valor
de atestar uma condição mudada e de excluir a validade simultânea de
dois vínculos diferentes para a mesma pessoa."
Ainda sobre o tema das tradições religiosas diferentes, há alguns dias, o vaticanista Sandro Magister, comentando uma pesquisa internacional do Pew Research Center de Washington
sobre temas de moral como aborto, homossexualidade, divórcio,
anticoncepcionais etc., observou a clara separação "entre a opinião
majoritária de algumas áreas europeias e norte-americanas, onde reinam a
indiferença em relação ao aborto, a dissolução do matrimônio e a
ideologia de gênero, e a sensibilidade oposta de outras imensas áreas do
mundo, especialmente na África e na Ásia,
onde também estão presentes sérios problemas de outro tipo, dos
casamentos arranjados à poligamia". Para concluir que, "se, como prega
incansavelmente o Papa Francisco, a missão da Igreja é
não se fechar nos seus velhos perímetros geográficas e culturais, mas
sim se abrir às periferias do mundo, é evidente que não pode ser a
catolicidade da Alemanha – como está acontecendo um pouco – o parâmetro
universal da mudança da doutrina e da práxis da Igreja em matéria de
família, de comunhão aos divorciados em segunda união e de núpcias entre
pessoas do mesmo sexo".
Em suma, segundo Magister, seria bom que Bergoglio não desse ouvidos a Kasper, porque ele é a expressão de um cristianismo minoritário e diluído. Grillo
não concorda: "Parece-me uma conclusão ingênua que surpreende em um
jornalista muitas vezes tão atento. Os problemas que o Papa Francisco
enfrenta são diferentes daqueles que Magister imagina. Bergoglio não
quer declarações sobre os valores inegociáveis, que é a lógica da
pesquisa citada, mas sim ir ao encontro dos sofrimentos dos sujeitos,
onde quer que se encontrem. Se nós falássemos a um alemão ou a um
brasileiro, que sofre na situação de divorciado em segunda união que não
é acolhido, sobre os valores dos africanos, não faríamos um serviço à
periferia, mas sim à nossa hipocrisia. As respostas a uma pesquisa não
são as prioridades da misericórdia eclesial".
Na conclusão da sua obra, Grillo cita a profecia do cardeal Martini
na sua última entrevista, pouco antes de morrer, que soa muito
semelhante aos pronunciamentos do seu companheiro jesuíta que se tornou
papa: "Levamos os sacramentos às pessoas que precisam de uma nova força?
Eu penso em todos os divorciados e nos casais em segunda união, nas
famílias ampliadas. Eles precisam de uma proteção especial. A Igreja
sustenta a indissolubilidade do matrimônio. É uma graça quando um
matrimônio e uma família conseguem isso (...). A atitude que temos com
relação às famílias ampliadas irá determinar a aproximação à Igreja da
geração dos filhos. (...) O amor é graça. O amor é dom. A questão sobre
se os divorciados podem comungar deveria ser invertida. Como a Igreja
pode chegar a ajudar com a força dos sacramentos aqueles que têm
situações familiares complexas?".
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A reportagem é de Marco Burini, publicada no jornal Il Foglio, 13-05-2014. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Fonte: IHU online, 23/05/2014
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