Michel Aires de Souza*
A educação perdeu sua função de produzir
indivíduos autônomos, críticos e conscientes, que pudessem transformar a
sociedade, a cultura e a si mesmos. A escola de hoje procura acomodar
os indivíduos ao mundo existente e não produz mais o espírito crítico,
que dúvida, investiga, cria e produz. Com o neoliberalismo a educação
tornou-se um instrumento para se produzir mercadorias. As novas
exigências no mundo do trabalho demandam um trabalhador que invista nele
mesmo, que seja polivalente, multifuncional, flexível, competente.
Desse ponto de vista, o indivíduo surge para a educação como um ser
genérico, um ser anônimo que só pode ser construído como objeto, ou
seja, como mercadoria.
Com o fim do Estado de bem-estar
social (Walfare State) e o desenvolvimento do Estado Neoliberal, grosso
modo, diminui-se o papel do Estado na economia e reduziram-se o
investimento e alcance das políticas públicas. A partir daí o
trabalhador foi abandonado ao mercado, se viu inserido em um novo mundo
globalizado. Nessas condições teve que encarar sozinho o desemprego, o
subemprego, a exigência de muitas qualificações e a grande concorrência
do mercado de trabalho. Ele passou a depender de si para se qualificar,
adquirir competências, adquirir conhecimento e conhecer as novas
tecnologias da informação. Hoje tornou-se difícil manter-se empregado
num ambiente em permanente transformação. A crise na Europa demonstra
isso. Há países onde a taxa de desemprego é de 25% da população ativa.
Com o Estado mínimo os indivíduos foram abandonados a sua própria sorte.
A responsabilidade pelo “ganha pão” e pela qualificação profissional
não é mais responsabilidade do Estado. Hoje o mundo globalizado espera
que os indivíduos se virem sozinhos, sem as antigas proteções sociais.
Isso significa que todos devem se esforçar e adquirir múltiplas
competências e habilidade para não ficarem desempregados.
A educação, por sua vez, que
sempre foi entendida como instrumento de humanização, tornou-se em
nossa época um instrumento de reificação. Os conhecimentos e os bens
culturais transformaram-se em mercadorias do desejo, transcendem o mundo
dos fatos, ganhando significados de tal forma que não consumimos mais
saber, mas consumimos signos de prestígio. A cultura produzida e
disseminada pela educação são mercadorias que agregam valor à
subjetividade dos indivíduos. A formação educacional torna-se atraente
na medida em que cria símbolos de poder, status e pertencimento. Os
indivíduos buscam conhecimentos para se venderem como objetos no mercado
de trabalho. Eles buscam ser significantes, vendem sua imagem e
procuram se tornar atrativos como mercadorias.
No mundo neoliberal os
conhecimentos aprendidos nos estabelecimentos de ensino tornam-se bens
simbólicos. Buscar novas qualidades e competências, agregar valor à
profissão, falar inglês, francês, fazer várias faculdades, adquirir
títulos, conhecer arte e informática são o apanágio de um mundo que
mercantilizou o indivíduo.Nesta
sociedade os trabalhadores devem obter cursos ou serviços para que se
tornem cada vez melhores como mercadorias. Eles devem se equipar com um
ou outro produto fornecido pelo mercado se quiserem ter a capacidade de
alcançar e manter seu trabalho ou posição social. Para Bauman (2008) o
ser humano rejeita sua própria incompletude e procura superar essa
solidão de ser invisível num mar de mercadorias. “Os membros da
sociedade de consumidores são eles próprios mercadorias de consumo, e é a
qualidade de ser uma mercadoria de consumo que os torna membros
autênticos dessa sociedade” (BAUMAN, 2008, p.76).
A moda, as roupas, os produtos
cosméticos, os produtos de beleza, os produtos de consumo, de modo
geral, também agregam valor à autoimagem. Somos aquilo que consumimos.
Cada um busca no mercado os produtos que melhor se adaptam a sua
personalidade. Zygmunt Bauman em seu livro “Vida para o Consumo”
(Consuming Life) mostra-nos que, “na sociedade do consumo, ninguém pode
se tornar sujeito sem primeiro virar mercadoria, e ninguém pode manter
segura sua subjetividade sem reanimar, ressuscitar e recarregar de
maneira perpétua as capacidades esperadas e exigidas de uma mercadoria
vendável” (BAUMAN, 2008, p. 20).
A ditadura da beleza, o culto ao
corpo belo e saudável, as plásticas, a moda, as propagandas que
incentivam a autossuperação, o esforço, o autosacrifício são signos que
refletem as novas condições materiais de existência do mundo neoliberal.
O indivíduo deve se adaptar a essa nova realidade onde tudo é moda e é
consumido como moda, inclusive os indivíduos. Lipovetskky (2009)
denominou-o de mundo do efêmero, o reino da frivolidade, das novidades e
da fantasia.
Com o neoliberalismo a busca
desenfreada pelo dinheiro, a competição, o consumo compulsivo, a busca
de reconhecimento simbólico, a labuta do dia-a-dia não permitem ao homem
determinar sua própria vida como projeto, como determinação
consciente. Vivemos no mundo do “curto-prazo”, não há mais
“longo-prazo”. Segundo Sennet (2009) o capitalismo afetaria o caráter
pessoal dos indivíduos, uma vez que não oferece condições para a
construção de uma narrativa linear da vida sustentada na experiência.
Para o trabalhador, no mundo globalizado, as relações de trabalho e os
laços de afinidade não se processariam em longo prazo, mas a curto
prazo. Por estas razões as relações humanas se tornaram efêmeras e
reificadas.
Com o advento do neoliberalismo
os homens se tornaram seres genéricos, anônimos e só podem se
constituir como sujeitos, na medida em que se tornem mercadorias. O
que se tornou relevante em nossa época é a luta simbólica por
reconhecimento social. Hoje o status social está mais ligado a ocupação,
depende do esforço de cada um. Os indivíduos devem adquirir
conhecimentos, saberes, competências, habilidades e um conjunto de
referenciais culturais, teóricos e linguísticos para fins de
diferenciação simbólica, tornando-se sujeitos reconhecidos pelo
mercado. Vivemos numa sociedade que valoriza o desempenho, o esforço
pessoal, o sacrifício e a labuta. A vontade de vencer, a ambição
tornaram-se características de um mundo que reificou e mercantilizou o
indivíduo. A liberdade e a autonomia tornam-se ficções da consciência
naturalizada pelas formas de domínio social prevalecentes. A existência
surge como consequência de relações de força, de poder, determinada
pela mão invisível do mercado e das instituições.
A mercantilização do indivíduo
pela educação é uma característica do mundo neoliberal e somente surgiu
impulsionada pelas novas exigências do mercado de trabalho. Ela não
existiu em períodos anteriores, porque nunca se valorizou tanto a
subjetividade no mercado de trabalho como hoje. Com as novas demandas
do mercado de trabalho e as novas tecnologias os indivíduos tiveram
que agregar novos conhecimentos a sua formação. Eles foram obrigados a
educar a si mesmos. Com a maior complexidade dos processos de trabalho,
os indivíduos tiveram que se tornar mais criativos, inteligentes e
críticos. Eles adquiriram conhecimentos, competências e habilidades
diversificadas.
Nunca na história da
civilização a educação compreendeu o indivíduo como uma mercadoria,
muito pelo contrário, a educação sempre fora um meio para desenvolver o
livre pensamento, a autonomia e o espírito crítico. Com a
institucionalização do ensino no inicio do século XIX, a educação
tornou-se obrigatória e sancionada por leis, tendo por objetivo
consolidar a sociedade democrática burguesa. O grande objetivo era
universalizar o ensino e fomentar o esclarecimento, superando a
ignorância e a opressão do Antigo Regime. A educação estava voltada à
transmissão dos conhecimentos adquiridos pela humanidade e deveria
aperfeiçoar o ser humano em toda a sua plenitude. É o que se denominou
de pedagogia tradicional. A escola tinha por objetivo possibilitar a
cada um aperfeiçoar sua indústria, ter consciência de seus direitos e
deveres, assegurar seu bem-estar e poder participar ativamente da
sociedade.
No Brasil o ensino tradicional
foi característico da época da monarquia constitucional e da Velha
República oligárquica. A educação era fortemente influenciada pelos
valores positivistas. O currículo valorizava o estudos das ciências, tal
como classificara August Comte. O ensino era um privilégio de
poucos. Os filhos de fazendeiros e dos comerciantes urbanos foram os
mais privilegiados. A elite via na educação um modo de ascensão social. O
grande objetivo da escola neste momento histórico era preencher os
quadros da política e da administração pública.
Já na segunda metade do século XX o
Brasil começou um período de grande industrialização e urbanização e de
grandes mudanças sociais, onde a burguesia comercial e industrial
começou a ter enorme influência no poder. O que essa burguesia almejava
era criar mão de obra especializada para as grandes indústrias. Esse
desejo se concretizou efetivamente durante o período militar
(1964-1985). O Estado começo a valorizar uma formação profissionalizante
e tecnicista. Buscava-se adequar a educação as mudanças dos últimos
anos, que tornaram o país mais industrial e tecnológico. A educação
visava criar indivíduos qualificados para o trabalho. Nessa época o
espírito reflexivo, autônomo e crítico foi banido das escolas. A
educação passou a valorizar o behaviorismo, uma vez que o ensino deveria
ser um instrumento de condicionamento buscando reforçar o
estímulo-resposta, adaptando os indivíduos aos novos processos de
trabalho.
A educação nunca foi um
instrumento de mercantilização. Foi somente na década de 90 que se
começou a valorizar a subjetividade do trabalhador. A partir disso, os
indivíduos se tornaram as peças centrais no mercado de trabalho. Com
as novas tecnologias exigiu-se maior inteligência e criatividade no
ambiente de trabalho. Os trabalhadores começaram a ser importantes e
essenciais para maior competitividade das empresas. Dessa forma, a
educação tornou-se um instrumento de diferenciação simbólica. A busca
pela formação de qualidade foi essencial para os indivíduos conseguirem
um lugar de destaque no mercado de trabalho.
Como podemos notar, o
neoliberalismo transformou a educação em um instrumento de produção de
mercadorias. O que as instituições de ensino valorizam e tornam sua
ideologia é a competição, o mérito e o esforço individual. O que
experimentamos hoje é a comoditização dos indivíduos. Cada um deve
procurar ser melhor como pode. Cada um deve buscar na educação as
competências e qualificações necessárias para se inserir no mercado de
trabalho. As diferenças entre os indivíduos são determinadas pela
posição que ocupam. Hoje existe uma luta acirrada pela ocupação social.
Algumas funções conferem prestígio, dinheiro, fama, glória e poder. Isso
significa que cada um deve adquirir, por meio da educação, as
competências, comportamentos, recursos e valores, que são necessários a
determinada posição social. Os indivíduos se esforçam para serem
competentes, e somente a educação pode fornecer os recursos necessários
para isso.
Como consequência do
neoliberalismo, a educação perdeu sua função primordial, que era educar
para a autonomia intelectual, para o esclarecimento e para a
participação política. O indivíduo perdeu a capacidade de reflexão e
julgamento da realidade, perdeu a capacidade de avaliar e interpretar
sua existência e viver de forma autônoma. O “projeto da Modernidade”
identificado por Jurgen Habermas como um conjunto de tendências
defendidas pelos pensadores iluministas pregava a crença no
desenvolvimento da ciência, a moralidade na condução da vida, o
universalismo da razão, a busca de novas formas de organização social e a
autonomia da arte. O objetivo era usar o progresso e o acúmulo de
conhecimentos da humanidade de forma livre, criativa e autônoma para a
emancipação e para enriquecimento dos seres humanos. A ideia de uma
educação emancipatória e humanista deveria retomar esse projeto.
A experiência tem demonstrado que
os países que conseguiram resolver as desigualdades educacionais também
conseguiram resolver as desigualdades socias e tornaram-se mais
democráticos. A educação produz autonomia de pensamento e, em
conseqüência disso, produz a opinião, o livre julgamento e a
participação política, que são os fundamentos da democracia. Na
sociedade democrática supõe-se como John Locke que a consciência
individual é a sede final do julgamento e, portanto, o último tribunal
de apelação. A educação reforça essa consciência e o livre pensamento. O
indivíduo abandona sua minoridade e torna-se capaz de fazer uso do seu
entendimento sem a direção de outrem. É só por meio da informação e
aprendizagem que surge o esclarecimento e este só se efetiva se o
indivíduo tiver a liberdade de fazer uso público de sua razão. Esse deve
ser objetivo da educação.
Bibliografia
BAUMAN, Zygmunt, Vida para consumo: a transformação das pessoas em mercadorias. Tradução de Carlos Alberto Medeiros. Rio de janeiro: Zahar, 2008.
HABERMAS, J. O discurso filosófico da modernidade. São Paulo: Martins Fontes, 2002.
LIPOVETSKY, Guilles. O Império do efêmero: a moda e seu destino nas sociedades modernas. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.
SENNET, Richard. A corrosão do caráter: as consequências pessoais do trabalho no novo capitalismo. Rio de Janeiro: Record, 2009.
-------------------
* Possuo graduação em Filosofia pela UNESP - Universidade Estadual
Paulista; mestrado em Filosofia pela UFSCAR - Universidade Federal de
São Carlos; e especialização docente em sociologia pela USP -
Universidade de São Paulo. Minhas áreas de interesse são filosofia
contemporânea, sociologia, educação e pós-modernidade.
Fonte: http://filosofonet.wordpress.com/2014/05/17/educacao-e-neoliberalismo-a-transformacao-dos-individuos-em-mercadoria/
Nenhum comentário:
Postar um comentário