segunda-feira, 19 de maio de 2014

Educação e Neoliberalismo: a transformação dos indivíduos em mercadoria.

 Michel Aires de Souza*
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A educação perdeu sua função de produzir indivíduos autônomos, críticos e conscientes, que pudessem transformar a sociedade, a cultura e a si mesmos.   A escola de hoje procura acomodar os indivíduos ao mundo existente e não produz mais o espírito crítico, que dúvida, investiga, cria e produz.   Com o neoliberalismo a educação tornou-se um instrumento para se produzir mercadorias. As novas exigências no mundo do trabalho demandam um trabalhador que invista nele mesmo, que seja polivalente, multifuncional, flexível, competente. Desse ponto de vista, o indivíduo surge para a educação como um ser genérico, um ser anônimo que só pode ser construído como objeto, ou seja, como mercadoria.

        Com o fim do Estado de bem-estar social (Walfare State) e o desenvolvimento do Estado Neoliberal, grosso modo, diminui-se o papel do Estado na economia e reduziram-se o investimento e alcance das políticas públicas. A partir daí o trabalhador foi abandonado ao mercado, se viu inserido em um novo mundo globalizado. Nessas condições teve que encarar sozinho o desemprego, o subemprego, a exigência de muitas qualificações e a grande concorrência do mercado de trabalho. Ele passou a depender de si para se qualificar, adquirir competências, adquirir conhecimento e conhecer as novas tecnologias da informação.  Hoje tornou-se difícil manter-se empregado num ambiente em permanente transformação. A crise na Europa demonstra isso. Há países onde a taxa de desemprego é de 25% da população ativa.  Com o Estado mínimo os indivíduos foram abandonados a sua própria sorte. A responsabilidade pelo “ganha pão” e pela qualificação profissional não é mais responsabilidade do Estado.  Hoje o mundo globalizado espera que os indivíduos se virem sozinhos, sem as antigas proteções sociais. Isso significa que todos devem se esforçar e adquirir múltiplas competências e habilidade para não ficarem desempregados.

             A educação, por sua vez, que sempre foi entendida como instrumento de humanização, tornou-se em nossa época um instrumento de reificação.   Os conhecimentos e os bens culturais transformaram-se em mercadorias do desejo, transcendem o mundo dos fatos, ganhando significados de tal forma que não consumimos mais saber, mas consumimos signos de prestígio.  A cultura produzida e disseminada pela educação são mercadorias que agregam valor à subjetividade dos indivíduos.  A formação educacional torna-se atraente na medida em que cria símbolos de poder, status e pertencimento. Os indivíduos buscam conhecimentos para se venderem como objetos no mercado de trabalho. Eles buscam ser significantes, vendem sua imagem e procuram se tornar atrativos como mercadorias.

         No mundo neoliberal os conhecimentos aprendidos nos estabelecimentos de ensino tornam-se bens simbólicos. Buscar novas qualidades e competências, agregar valor à profissão, falar inglês, francês, fazer várias faculdades, adquirir títulos, conhecer arte e informática são o apanágio de um mundo que mercantilizou o indivíduo.Nesta sociedade os trabalhadores devem obter cursos ou serviços para que se tornem cada vez melhores como mercadorias. Eles devem se equipar com um ou outro produto fornecido pelo mercado se quiserem ter a capacidade de alcançar e manter seu trabalho ou posição social. Para Bauman (2008) o ser humano rejeita sua própria incompletude e procura superar essa solidão de ser invisível num mar de mercadorias. “Os membros da sociedade de consumidores são eles próprios mercadorias de consumo, e é a qualidade de ser uma mercadoria de consumo que os torna membros autênticos dessa sociedade” (BAUMAN, 2008, p.76).

          A moda, as roupas, os produtos cosméticos, os produtos de beleza, os produtos de consumo, de modo geral, também agregam valor à autoimagem. Somos aquilo que consumimos.  Cada um busca no mercado os produtos que melhor se adaptam a sua personalidade. Zygmunt Bauman em seu livro “Vida para o Consumo” (Consuming Life) mostra-nos que, “na sociedade do consumo, ninguém pode se tornar sujeito sem primeiro virar mercadoria, e ninguém pode manter segura sua subjetividade sem reanimar, ressuscitar e recarregar de maneira perpétua as capacidades esperadas e exigidas de uma mercadoria vendável” (BAUMAN, 2008, p. 20).

        A ditadura da beleza, o culto ao corpo belo e saudável, as plásticas, a moda, as propagandas que incentivam a autossuperação, o esforço, o autosacrifício são signos que refletem as novas condições materiais de existência do mundo neoliberal. O indivíduo deve se adaptar a essa nova realidade onde tudo é moda e é consumido como moda, inclusive os indivíduos. Lipovetskky (2009) denominou-o de mundo do efêmero, o reino da frivolidade, das novidades e da fantasia.

          Com o neoliberalismo a busca desenfreada pelo dinheiro, a competição, o consumo compulsivo, a busca de reconhecimento simbólico, a labuta do dia-a-dia não permitem ao homem determinar sua própria vida como projeto, como determinação consciente.  Vivemos no mundo do “curto-prazo”, não há mais “longo-prazo”.  Segundo Sennet (2009) o capitalismo afetaria o caráter pessoal dos indivíduos, uma vez que não oferece condições para a construção de uma narrativa linear da vida sustentada na experiência. Para o trabalhador, no mundo globalizado, as relações de trabalho e os laços de afinidade não se processariam em longo prazo,  mas a curto prazo. Por estas razões as relações humanas se tornaram efêmeras e reificadas.

         Com o advento do neoliberalismo os homens  se tornaram seres genéricos, anônimos e só podem se constituir como sujeitos,  na medida em que se tornem mercadorias.  O que se tornou relevante em nossa época é a luta simbólica por reconhecimento social. Hoje o status social está mais ligado a ocupação, depende do esforço de cada um.  Os indivíduos devem adquirir conhecimentos, saberes, competências, habilidades e um conjunto de referenciais culturais, teóricos e linguísticos para fins de diferenciação simbólica, tornando-se sujeitos reconhecidos pelo mercado.  Vivemos numa sociedade que valoriza o desempenho, o esforço pessoal, o sacrifício e a labuta. A vontade de vencer, a ambição tornaram-se características de um mundo que reificou e mercantilizou o indivíduo.  A liberdade e a autonomia tornam-se ficções da consciência naturalizada pelas formas de domínio social prevalecentes. A existência surge como consequência de relações de força, de poder,  determinada pela  mão invisível do mercado e das instituições.

       A mercantilização do indivíduo pela educação é uma característica do mundo neoliberal e somente surgiu impulsionada pelas novas exigências do mercado de trabalho. Ela não existiu em períodos anteriores, porque nunca se valorizou tanto a subjetividade no mercado de trabalho como hoje.   Com as novas demandas do mercado de trabalho e as  novas tecnologias  os indivíduos tiveram que agregar novos conhecimentos a sua formação. Eles foram obrigados a educar a si mesmos.  Com a maior complexidade dos processos de trabalho, os indivíduos tiveram que se tornar mais criativos, inteligentes e críticos. Eles adquiriram conhecimentos, competências e habilidades diversificadas.

            Nunca na história da civilização a educação compreendeu o indivíduo como uma mercadoria, muito pelo contrário, a educação sempre fora um meio para desenvolver o livre pensamento, a autonomia e o espírito crítico.    Com a institucionalização do ensino no inicio do século XIX, a educação tornou-se obrigatória e sancionada por leis, tendo por objetivo consolidar a sociedade democrática burguesa. O grande objetivo era universalizar o ensino e  fomentar  o esclarecimento, superando a ignorância e a opressão do Antigo Regime.  A educação estava voltada à transmissão dos conhecimentos adquiridos pela humanidade e  deveria aperfeiçoar o ser humano em toda a sua plenitude. É o que se denominou de pedagogia tradicional.  A escola tinha por objetivo possibilitar a cada um aperfeiçoar sua indústria, ter consciência de seus direitos e deveres, assegurar seu bem-estar e poder participar ativamente da sociedade.

          No Brasil o ensino tradicional foi característico da época da monarquia constitucional e da Velha República oligárquica. A educação era fortemente influenciada pelos valores positivistas. O currículo valorizava o estudos das ciências, tal como  classificara August Comte. O ensino  era um privilégio de poucos.  Os filhos de fazendeiros e dos comerciantes urbanos foram os mais privilegiados. A elite via na educação um modo de ascensão social. O grande objetivo da escola neste momento histórico era preencher os quadros da política e da administração pública.

       Já na segunda metade do século XX o Brasil começou um período de grande industrialização e urbanização e de grandes mudanças sociais, onde a burguesia comercial e industrial começou a ter enorme influência no poder. O que essa burguesia almejava era criar mão de obra especializada para as grandes indústrias. Esse desejo se concretizou efetivamente durante o período militar (1964-1985). O Estado começo a valorizar uma formação profissionalizante e tecnicista.  Buscava-se adequar a educação as mudanças dos últimos anos, que tornaram o país mais industrial e tecnológico. A educação visava criar indivíduos qualificados para o trabalho. Nessa época o espírito reflexivo, autônomo e crítico foi  banido das escolas. A educação passou a valorizar o behaviorismo, uma vez que o ensino deveria ser um instrumento de condicionamento buscando reforçar o estímulo-resposta, adaptando os indivíduos aos novos processos de trabalho.

        A educação nunca foi um instrumento de mercantilização. Foi somente na década de 90 que se começou a  valorizar a subjetividade do trabalhador. A partir disso,  os indivíduos se tornaram as peças centrais no mercado de trabalho.  Com as novas tecnologias exigiu-se maior inteligência e criatividade no ambiente de trabalho. Os trabalhadores começaram a ser importantes e essenciais para maior competitividade das empresas. Dessa forma, a educação tornou-se um instrumento de diferenciação simbólica. A busca pela formação de qualidade foi essencial para os indivíduos conseguirem um lugar de destaque no mercado de trabalho.

        Como podemos notar, o neoliberalismo transformou a educação em um instrumento de produção de mercadorias. O que as instituições de ensino valorizam e tornam sua ideologia é a competição, o mérito e o esforço individual.  O que experimentamos hoje é a comoditização dos indivíduos. Cada um deve procurar ser melhor como pode.  Cada um deve buscar na educação as competências e qualificações necessárias para se inserir no mercado de trabalho. As diferenças entre os indivíduos são determinadas pela posição que ocupam. Hoje existe uma luta acirrada pela ocupação social. Algumas funções conferem prestígio, dinheiro, fama, glória e poder. Isso significa que cada um deve adquirir, por meio da educação,  as competências, comportamentos,  recursos e valores,  que são necessários a determinada posição social. Os indivíduos se esforçam para serem competentes, e somente a educação pode fornecer os recursos necessários para isso.

         Como consequência do neoliberalismo, a educação perdeu sua função primordial, que era educar para a autonomia intelectual, para o esclarecimento e para a participação política. O indivíduo perdeu a capacidade de reflexão e julgamento da realidade, perdeu a capacidade de avaliar e interpretar sua existência e viver de forma autônoma. O “projeto da Modernidade” identificado por Jurgen Habermas como um conjunto de tendências defendidas pelos pensadores iluministas  pregava a crença no desenvolvimento da ciência, a moralidade na condução da vida, o universalismo da razão, a busca de novas formas de organização social e a autonomia da arte. O objetivo era usar o progresso e o acúmulo de conhecimentos da humanidade de forma livre, criativa e autônoma  para a emancipação e para  enriquecimento dos seres humanos. A ideia de uma educação  emancipatória e humanista deveria retomar esse projeto.

       A experiência tem demonstrado que os países que conseguiram resolver as desigualdades educacionais também conseguiram resolver as desigualdades socias e tornaram-se mais democráticos. A educação produz autonomia de pensamento e, em conseqüência disso, produz a opinião, o livre julgamento e a participação política, que são os fundamentos da democracia.  Na sociedade democrática supõe-se como John Locke que a consciência individual é a sede final do julgamento e, portanto, o último tribunal de apelação. A educação reforça essa consciência e o livre pensamento. O indivíduo abandona sua minoridade e torna-se capaz de fazer uso do seu entendimento sem a direção de outrem.  É só por meio da informação e aprendizagem que surge o esclarecimento e este só se efetiva se o indivíduo tiver a liberdade de fazer uso público de sua razão. Esse deve ser objetivo da educação.

  Bibliografia

BAUMAN, Zygmunt, Vida para consumo: a transformação das pessoas em mercadorias. Tradução de Carlos Alberto Medeiros. Rio de janeiro: Zahar, 2008.

HABERMAS, J. O discurso filosófico da modernidade. São Paulo: Martins Fontes, 2002.

LIPOVETSKY, Guilles. O Império do efêmero: a moda e seu destino nas sociedades modernas. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.

SENNET, Richard. A corrosão do caráter: as consequências pessoais do trabalho no novo capitalismo. Rio de Janeiro: Record, 2009.
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* Possuo graduação em Filosofia pela UNESP - Universidade Estadual Paulista; mestrado em Filosofia pela UFSCAR - Universidade Federal de São Carlos; e especialização docente em sociologia pela USP - Universidade de São Paulo. Minhas áreas de interesse são filosofia contemporânea, sociologia, educação e pós-modernidade. 
Fonte:  http://filosofonet.wordpress.com/2014/05/17/educacao-e-neoliberalismo-a-transformacao-dos-individuos-em-mercadoria/

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