quinta-feira, 29 de maio de 2014

Para Tazio Zambi: qual o poema mais importante da língua portuguesa?

 
Convidamos o poeta, editor e designer Tazio Zambi para responder em poucas palavras qual poema para ele é um monumento, um rio e um mar. Zambi nasceu em Vitória, Espírito Santo, e vive atualmente em Maceió, Alagoas. Publicou “retráteis” (Edufal,  2009) e “cerco” (randomia, 2013). É editor de Randomia & Terroria. e autor da instalação web “maquinamenos” e da série conceitual “espólio”.

Abaixo seguem a justificativa de Zambi e o poema escolhido.

“O poema ‘Carta aberta a John Ashbery’ de Waly Salomão, do livro Algaravias (1996), é um dos lances mais luminosos de nossa língua e compõe a maquinaria exuberante de formas e modos de formar que é a obra do poeta baiano. Um contramonumento: organismo vivo “na esfera da produção de si-mesmo” que se reinventa a cada aproximação renunciando às leituras totalizantes.”

CARTA ABERTA A JOHN ASHBERY

Waly Salomão

A memória é uma ilha de edição – um qualquer
passante diz, em um estilo nonchalant,
e imediatamente apaga a tecla e também
o sentido do que queria dizer.

Esgotado o eu, resta o espanto do mundo
não ser levado junto de roldão.
Onde e como armazenar a cor de cada instante?
Que traço reter da translúcida aurora?
Incinerar o lenho seco das amizades
esturricadas?
O perfume, acaso, daquela rosa desbotada?

A vida não é uma tela e jamais adquire
o significado estrito
que se deseja imprimir nela.
Tampouco é uma estória em que cada minúcia
encerra uma moral.

Ela é recheada de locais de desova, presuntos,
liquidações, queimas de arquivos,
divisões de capturas,
apagamentos de trechos, sumiços de originais,
grupos de extermínios e fotogramas estourados.

Que importa se as cinzas restam frias
ou se ainda ardem quentes
se não é selecionada urna alguma adequada,
seja grega seja bárbara,
para depositá-las?
Antes que o amanhã desabe aqui,
ainda hoje será esquecido o que traz
a marca d’água d’hoje.

Hienas aguardam na tocaia da moita enquanto
os cães de fila do tempo fazem um arquipélago
de fiapos do terno da memória.
Ilhotas. Imagens em farrapos dos dias findos.
Numerosas crateras ozonais.

Os laços de família tornados lapsos.
Oco e cárie e cava e prótese,
assim o mundo vai parindo o defunto
de sua sinopse.
Sem nenhuma explosão final.

Nulla dies sine linea. Nenhum dia sem um traço.
Um, sem nome e com vontade aguada,
ergue este lema como uma barragem
antientropia.
E os dias sucedem-se e é firmada a intenção
de transmudar todo veneno e ferrugem
em pedaço do paraíso. Ou vice-versa.

Ao prazer do bel-prazer,
como quem aperta um botão da mesa
de uma ilha de edição
e um deus irrompe afinal para resgatar o humano fardo.
Corrigindo:
o humano fado.

Confira abaixo um poema de Zambi indicado pela revista Pessoa.

UM TRATADO
Tazio Zambi

do branco
enquanto
cor
do todo

o cada
pouco
inscrito a toque
tímido

avesso a
vácuos
vícios
de carícias

&
o esconder
na lira
fria

interrompida
no irromper
de
nada
 ---------------------------------
Escrito por Carlos Henrique Schroeder em 16 de maio de 2014
Conheça o projeto Cerco de Tazio Zambi:
Fonte: Revista Pessoa online, acesso 29/05/2014

Nenhum comentário:

Postar um comentário