Marcos Rolim*
Há determinadas maldades que não podem ser praticadas sem o amparo de
uma ideologia – seja ela política ou religiosa. Os humanos são capazes
de matar; alguns, inclusive, estão habilitados a submeter o outro,
propositalmente, aos sofrimentos mais atrozes. Entretanto, quando estão
tomados pela ideia do absoluto, desempenham os piores papéis com
desembaraço e orgulho. Só por isso, foi possível que a história fosse
marcada por genocídios e matanças de todos os tipos. Dito de outra
forma, para matar alguém, basta que os autores se sintam ameaçados, que
desejem a vingança ou que sejam especialmente ambiciosos; mas para matar
milhares de pessoas, é preciso acreditar que isto seja “tradução da
vontade de Deus”, que o extermínio seja “a construção de um mundo
superior, com uma raça pura”; que a violência seja “necessária para a
Revolução” ou “para livrar o país da ameaça do comunismo” e, assim,
sucessivamente.
Os cinemas estão exibindo Noé, uma superprodução de Hollywood que
trata do episódio bíblico do dilúvio. A história, como se sabe, dá conta
do “genocídio universal”, que teria sido ordenado por Deus. O desfecho
do mito é a legitimação da vingança: “Se alguém derramar o sangue do
homem, pelo homem se derramará o seu”, diz Deus a Noé. O Antigo
Testamento, como se sabe, reúne alguns dos textos mais violentos de que
se tem notícia. Segundo o historiador Raymund Schwager, a Bíblia
hebraica possui mais de 6 mil relatos onde reis, exércitos e indivíduos
produzem massacres e pelo menos mil versículos onde Jeová aparece,
diretamente, como o executor das matanças, além de cem passagens onde
Deus ordena que pessoas sejam mortas.
Os cristãos costumam lembrar que o Novo Testamento é substancialmente
diferente. No que diz respeito à violência, eles estão possivelmente
certos. Afinal, as “boas novas” anunciadas por Jesus (com valores
centrais de compreensão e perdão) assinalam ousada ruptura “humanista”. O
problema é que muitas passagens – que refletem os valores e os parcos
conhecimentos de sociedades tribais e pastoris – são suficientemente
ambíguas para que se retire delas o que se deseja. Assim, por exemplo, a
frase de Jesus “Se alguém não permanecer em mim, será lançado fora, à
semelhança do ramo, e secará; e o apanham, lançam no fogo e o queimam” (
Jo. 15.6) foi usada para justificar o assassinato de milhares de
mulheres em fogueiras por toda a Idade Média. Da mesma forma, algumas
passagens homofóbicas das Escrituras têm estimulado, atualmente, o
preconceito e a violência contra os homossexuais.
A ideia de uma “palavra sagrada” diante da qual todo e qualquer
comportamento dissonante seja, necessariamente, expressão do “pecado” é
uma ameaça à civilização. Felizmente, a maioria dos cristãos
contemporâneos não tem diante da Bíblia uma postura fundamentalista (a
maioria, eu disse). Não fosse assim, a civilização tal como a conhecemos
seria impossível. Afinal, quem se orientasse “ao pé da letra” pela
Bíblia encontraria razões para “vender as filhas como escravas (Êxodo
21:7) ou “possuir escravos adquiridos de nações vizinhas” (Lev. 25: 44).
Há regras que determinam que as mulheres não sejam tocadas durante o
período menstrual (Lev. 15: 19-24) e outras que mandam matar quem
trabalhar aos sábados (Êxodo 35:2).
Segundo Levíticos (19:27), os homens não devem “cortar o cabelo em
redondo, nem danificar as extremidades da barba”. Somos também proibidos
de “ferir nossa carne ou de fazer marcas sobre elas” (piercingsou
tatuagens, então, nem pensar) e não deveríamos “comer nada com sangue”,
um alerta importante para quem aprecia carne malpassada. Agricultores
que plantem mais de uma cultura violam a “palavra de Deus” (Lev. 19:19) e
as mulheres que usam roupas feitas de dois tipos de tecido, também.
Aqueles que xingam e blasfemam são “imundos” e deveriam ser apedrejados
até à morte (Lev. 24:10-16). Já o homem que se deitar com uma mulher que
esteja enferma, “descobrindo sua nudez”, será morto e a mulher doente
também (Lev. 20:18).
Alguém que partisse do pressuposto de que essas passagens
correspondem à “vontade de Deus” se transformaria em um assassino. Para
agir dessa maneira fanática, entretanto, será preciso sempre uma decisão
anterior: a decisão de abdicar do pensamento, do raciocínio autônomo.
Cabe ao processo formal de educação estimular o senso crítico necessário
para que nenhuma pessoa – seja religiosa, ateu ou agnóstica – seja
capturada pela recusa ao pensamento. Senão por outro motivo, porque a
humanidade já sofreu demais por conta dessa covardia.
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*Jornalista, sociólogo e professor do IPA.
Fonte: http://www.extraclasse.org.br/marcosrolim/edicoes/2014/5/os-riscos-do-fundamentalismo/
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