Espalham-se pelo mundo serviços de compartilhamento de casas,
quartos, carros, outros objetos. Novo modelo de negócio? Ou sinais de
pós-capitalismo?
“Na casa de cada um de nós existe um problema ambiental com potencial
econômico. Temos vários objetos que não utilizamos: uma furadeira
dormindo no armário que não será usada por mais de 13 minutos, em média,
durante toda a vida; um DVD já sem uso ocupando espaço, a câmera que
atrai mais poeira que luz, mas também o carro que usamos solitariamente
menos de uma hora por dia ou o apartamento vazio durante todo o verão. A
lista é longa. E representa uma quantidade impressionante de dinheiro,
assim como de lixo futuro.”
Este é, essencialmente, o argumento de teóricos do consumo colaborativo. Pois, como sustenta com um grande sorriso Rachel Botsman (1), uma de suas lideranças, “você precisa do buraco, não da broca; da projeção, não do DVD; da viagem, não do carro!”…
Jeremy Rifkin
foi quem diagnosticou a transição de uma era da propriedade para uma
“era do acesso” (2), na qual a dimensão simbólica dos objetos diminui em
benefício de sua dimensão funcional: um carro costumava ser elemento de
status que justificava sua compra para além do uso, enquanto agora os
consumidores começam a alugar o seu veículo.
Hoje, os jovens propõem alugar seus próprios carros ou casas.
Se isso causa desespero a muitos empresários de transportes ou
hotelaria, outros veem com esperança esse desapego com relação aos
objetos de consumo. Plataformas de troca possibilitam uma melhor
alocação de recursos; elas atomizam a oferta, eliminam intermediários e
facilitam a reciclagem. Ao fazer isso, corroem monopólios, provocam
redução de preços e trazem novos recursos aos consumidores. Estes serão
levados a comprar bens de qualidade, mais duráveis, incentivando a
indústria a abandonar a obsolescência programada. Seduzido por menores
preços e pela conveniência dessas relações pessoa-a-pessoa (P2P, peer to
peer), eles contribuem para a redução de resíduos. A imprensa
internacional, do New York Times ao Le Monde, passando pelo Economist, já fala em “revolução do consumo.”
Um passe de mágica
Os partidários do consumo colaborativo estão frequentemente entre os desiludidos com o “desenvolvimento sustentável”. Contudo, embora reprovem a superficialidade deste conceito, não costumam criticá-lo mais acidamente. Citando especialmente Rifkin, nunca evocam a ecologia política. Mencionam de bom grado Mohandas Gandhi:
“Há atualmente na Terra recursos suficientes para atender às
necessidades de todos, mas eles não serão jamais suficientes para
satisfazer os desejos de posse de alguns (3).” Isso não os impede de
manifestar uma espécie de desdém com relação aos adeptos do
decrescimento e ativistas ambientais em geral, percebidos como utopistas
marginais e sobrepolitizados.
“Foi em 2008 que batemos contra a parede. Juntos, a Mãe Natureza e o
mercado disseram ‘basta’. Bem sabemos que uma economia baseada no
hiperconsumo é um esquema Ponzi (4), um castelo de cartas”, argumentou Botsman numa conferência TED (Tecnologia, Entretenimento e Design) (5).
De acordo com ela a crise, ao fazer com que as pessoas se esforçassem
para sobreviver, teria causado uma explosão de criatividade e confiança
mútua que supostamente detonou o fenômeno do consumo colaborativo (6).
Mais e mais sites propõem a troca ou aluguel de bens “adormecidos” e caros: máquina de lavar roupa, roupas de marca, objetos high-tech,
equipamento de camping, mas também meios de transporte (carro, moto,
barco) ou espaços físicos (adega, estacionamento, sala etc). O movimento
chega a ser quase uma poupança: ao invés de deixá-la inerte numa conta,
as pessoas a compartilham, escapando dos bancos (7).
Na área de transportes, o uso compartilhado de automóveis consiste em
dividir o custo de um trajeto; uma espécie de carona organizada e
contributiva, que permite, por exemplo, viajar de Lyon a Paris
por 30 euros, contra 60 euros da passagem de trem, e conhecer pessoas
novas durante o trajeto. Diversos sites que propõem esse serviço
surgiram na França nos anos 2000.
Isso levou à evolução típica das startups da internet: uma luta para
estabelecer-se como referência de gratuidade, para, uma vez alcançada
essa posição, impor aos usuários uma comissão de 12% “para maior
segurança”. O número um francês, Covoiturage.fr, transformou-se em BlaBlaCar para embarcar na conquista do mercado europeu, e seu equivalente alemão, Carpooling, chegou à França.
Enquanto os co-usuários habituais, enfurecidos pelo escorregão
mercantil do site francês, lançaram a plataforma colaborativa e gratuita
Covoiturage-libre.fr [algo como "Coautomóvel-livre"].
A partilha de carros reflete também um avanço cultural e ecológico. Plataformas como Drivy
possibilitam a locação de veículos entre indivíduos, muito embora os
atores dominantes do mercado sejam ainda empresas flexibilizadas
(aluguel por minuto e self-service), que têm sua própria frota. A
redução anunciada no número de veículos é relativa, portanto. Mesmo a
frota Autolib’, criada pela prefeitura de Paris com o grupo Bolloré e inspirada no Vélib‘ [para compartilhamento de bicicletas], substitui transporte, mais do que elimina carros (8).
No que diz respeito à hotelaria, a internet também favoreceu o
impulso das trocas entre particulares. Vários sites (9) permitem
contatar uma multidão de anfitriões dispostos a receber pessoas em suas
casas por algumas noites, gratuitamente – e isso em quase todos os
países.
Mas o fenômeno do momento é o “bed and breakfast” informal e cidadão e seu líder indiscutível, Airbnb. Ele permite passar a noite em Atenas ou Marselha
e vai mimá-lo com um generoso café da manhã “opcional” por um preço
inferior ao de um hotel. Um quarto vazio em sua casa ou mesmo seu
próprio apartamento, quando sair de férias, pode tornar-se uma fonte de
renda. Em poucas palavras: “Airbnb: viaje como ser
humano”. Na imprensa econômica, contudo, o serviço mostra uma outra
face. Ele orgulha-se de capturar mais de 10% do valor pago ao anfitrião,
e ver o volume de negócios, de US$ 180 milhões em 2012, aumentar tão
rápido quanto a capitalização na Bolsa, de quase US$ 2 bilhões.
“A riqueza está mais no uso que na posse – Aristóteles”, proclama a empresa de uso compartilhado de carros City Car Club.
Mas, visto mais de perto, o desapego da posse diagnosticado por Rifkin
não parece incluir o desapego do consumo: se no passado o sonho era
possuir uma Ferrari, o de hoje é dirigir uma. E, se as vendas diminuem, aumentam os aluguéis.
Esta “era do acesso” revela uma mutação das formas de consumo ligada a
uma mudança logística: a circulação de bens e habilidades pessoais por
meio de interfaces eficientes da web.
Longe de assustar-se, as empresas veem nesta diluição um potencial de
novas operações, nas quais elas serão os intermediários remunerados.
De um lado, isso possibilita aumentar a base de consumidores: quem
não tinha meios para comprar um objeto caro pode agora alugá-lo. De
outro, a comercialização estende-se à esfera doméstica e aos serviços
entre particulares: o quarto de um amigo ou um assento no carro podem
ser oferecidos para alugar, bem como uma mãozinha no encanamento ou no
inglês. Podemos também antecipar o mesmo efeito do setor de energia, no
qual a redução de gastos resultante de avanços tecnológicos leva ao
aumento no consumo (10): a renda que uma pessoa ganha com o aluguel do
seu projetor vai incentivá-la a gastar mais.
No entanto, existem novas práticas que irão reverter o consumismo. São muito diversas: os couchsurfers
(literalmente, “surfistas de sofá”) permitem que desconhecidos durmam
gratuitamente em suas casas ou desfrutem de sua hospitalidade. Os
usuários do Recupe.net ou do Freecycle.org
preferem doar a jogar fora objetos que não têm mais utilidade. Nos
sistemas locais de trocas (SEL, na sigla em francês), as pessoas
oferecem suas competências em base igualitária: uma hora de jardinagem
vale uma hora de encanamento ou design. Em associações para a manutenção
de uma agricultura camponesa (AMAP, na sigla em francês), cada um
assume o compromisso de abastecer-se por um ano com o mesmo agricultor
local, com quem pode desenvolver um relacionamento, e participar
voluntariamente da distribuição semanal de legumes. Esse compromisso
relativamente obrigatório reflete uma abordagem que vai além da simples
ação de consumo, que consiste em “escolher com a carteira”.
Qual o ponto em comum entre esses projetos associativos e as empresas
da distribuição C2C — de consumidor para consumidor? Comparemos os
“surfistas de sofá” e os clientes do Airbnb: para os
primeiros, o essencial reside no relacionamento com as pessoas, sendo o
conforto secundário; para os segundos, é o inverso. Os critérios de
avaliação são, portanto, sensivelmente diferentes: a atração do Airbnb, além do preço, está na limpeza do local e sua proximidade com o centro turístico, enquanto que no Couchsurfing.org, além da gratuidade, há a convivência com o anfitrião. Da mesma forma, plataformas tais como Taskrabbit.com oferecem troca de serviços entre particulares que pagam, enquanto que os SEL baseiam-se na doação.
Em textos destinados ao grande público, os promotores do consumo
colaborativo citam frequentemente iniciativas associativas para
vangloriar-se do aspecto “social” e “ecológico” dessa “revolução”. Essas
menções desaparecem quando falam na imprensa de negócios. Na verdade,
só podemos juntar essas duas abordagens sob o mesmo rótulo, de “economia
do compartilhamento”, se levarmos em conta a forma dessas relações e
minimizarmos as lógicas, muito diferentes, que as alimentam.
Essa combinação, que culmina no passe de mágica que consiste em
traduzir compartilhar por alugar, é largamente encorajada por aqueles
que procuram tirar vantagem do fenômeno. Por meio de um subterfúgio
semelhante ao greenwashing (“lavagem verde de imagem”),
projetos tipo AMAP são utilizados como garantia. Quem não leva em conta
os valores sociais subjacentes a esses projetos participa, assim, de
uma espécie de “lavagem colaborativa” (collaborative washing).
As pessoas que oferecem seu teto, sua mesa ou seu tempo a desconhecidos
geralmente se caracterizam, na verdade, pela busca de práticas
igualitárias e ecológicas – o que as aproxima ainda mais de cooperativas
de consumo e produção e de plataformas de troca C2C.
Essa dualidade coincide com muitas outras: a que separa o
“desenvolvimento sustentável” da ecologia política, ou ainda o movimento
do software de código aberto – que promove a colaboração de todos para
melhorar o software – e o de software livre – que promove a liberdade dos usuários a partir de uma perspectiva política. A distinção feita por Richard Stallman, um dos pais do software livre,
poderia ser estendida a cada um desses domínios: “O primeiro é uma
metodologia de desenvolvimento; o segundo, um movimento social (11)”.
Notas
(1) Cf. Rachel Botsman et Roo
Rogers, What’s Mine Is Yours: How Collaborative Consumption Is Changing
the Way We Live, HarperCollins, Londres, 2011; Lisa Gansky, The Mesh:
Why the Future of Business Is Sharing, Portfolio Penguin, New York,
2010. Na França, www.ouishare.net/fr; www.consocollaborative.com, por
exemplo.
(2) Jeremy Rifkin, L’Age de l’accès. La nouvelle culture du capitalisme, La Découverte, coll. «Poche-Essais», Paris, 2005 (1re éd.: 2000).
(3) Citado em Anne-Sophie Novel e Stéphane Riot, Vive la corévolution! Pour une société collaborative, Alternatives, coll. «Manifestô», Paris, 2012.
(4) Esquema fraudulento, lançado em 1920 por Charles Ponzi,
de remunerar os investidores através de solicitação constante de novos
colaboradores. Ler Ibrahim Warde, «Ponzi, ou le secret des pyramides»,
Le Monde diplomatique, agosto 2009.
(5) «Rachel Botsman: à propos de la consommation collaborative», mai 2010, www.ted.com
(6) Ler Mona Chollet, «Yoga du rire et colliers de nouilles», Le Monde diplomatique, agosto 2009.
(7) Zopa, Prosper e Lending Club são as principais
plataformas, nos Estados Unidos. Na França, uma outra associação para
empréstimo, a FriendsClear, tem parceria com o Crédit Agricole.
(8) «“On a raté l’objectif. Autolib’ ne supprime pas de voitures”», L’interconnexion n’est plus assurée, 26 mars 2013, http://transports.blog. lemonde.fr
(9) Couchsurfing.org, Hospitalityclub.org e Bewelcome.org, especialmente. Este último reúne os desapontamentos dos dois primeiros
(10) Ler Cédric Gossart, «Quand les technologies vertes poussent à la consommation», Le Monde diplomatique, julho 2010.
(11) Richard Stallman, «Pourquoi l’“open source” passe à côté du problème que soulève le logiciel libre», www.gnu.org
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A reportagem é de Martin Denoun e Geoffroy Valadon, publicada no jornal Le Monde Diplomatique, 14-05-2014.
Fonte: IHU online, 16/05/2014
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