Na prática, a fé de Abraão
foi uma fé aberrante, fundamentalista, obtusa, que se opunha à verdade
do amor em nome de um deus idolátrico. O verdadeiro Deus não exige nunca
que a sua criatura renuncie à sua dignidade, à sua liberdade, ao amor.
A opinião é do cardeal italiano Gianfranco Ravasi, presidente do Pontifício Conselho para a Cultura, em artigo publicado no jornal Il Sole 24 Ore, 11-05-2014. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto.
"Assim, na igreja branca da minha infância
o evento era
retratado. Um bode
de repente saía da estepe
e uma mão docíssima no
fim parava
a lúcida lâmina próxima da carne pura.
À mesma montanha
meu pai me conduziu criança...
Oh, Senhor meu, amado e cruel!"
Assim David M. Turoldo, em uma balada dedicada a um dos mais dramáticos eventos da saga patriarcal do Gênesis (cap. 22), evocava o êxito final daquela obscura e perturbadora subida de Abraão ao longo da encosta do Monte Moriá, segurando a pequena mão do seu filho Isaac.
Sobre os dois pendia ameaçador o imperativo divino sanguinário: "Abraão, tome seu filho, o seu único filho Isaac, a quem você ama, e ofereça-o aí em holocausto, sobre uma montanha que eu vou lhe mostrar".
Um imperativo que – além de ser escandaloso e ligado a uma truculenta
práxis ritual pagã – contradizia e evitava a própria promessa que tinha
dado justamente aquele filho ao velho casal de Abraão e Sara já estéreis.
Ao redor desse paradoxo, envolve-se todo o fio da tensão narrativa
que chega ao instante trágico quando as razões da fé conseguem vencer as
da paternidade, e Abraão levanta a navalha, depois de ter amarrado (a 'aqedáh, em hebraico, a "ligadura" sacrificial, que o judaísmo assumirá como símbolo da Shoá) o filho sobre o altar para um gesto imoral de fé.
A imaginação corre para a tela de Rembrandt (imagem acima), no Hermitage, que introduz o extremo estremecimento de amor paterno com a mão esquerda de Abraão cobre os olhos de Isaac, para que não veja a mão direita que empunha a faca.
Anos atrás, eu tentei seguir a tradição teológica, filosófica,
artística, literária e musical que brotou dessa extraordinária página
bíblica, mas, no fim, tive que desistir por causa da enorme quantidade
de material que se acumulava. Até o início da Em busca do tempo perdido, de Proust, se assoma a "uma incisão tirada de Benozzo Gozzoli e que foi dada a mim pelo Sr. Swann, na qual Abraão diz a Sara que precisa se separar de Isaac".
Já aparecia aqui uma surpreendente interpretação da cena: o sacrifício de Isaac é a separação da mãe. Sim, porque, em torno da provação do Moriá, adensaram-se as mais variadas hermenêuticas: a psicanalítica de Linard de Guertechin
via nisso o contraste entre a paternidade tirânica e a filiação que não
pode ser considerada como posse; a leitura antropológica de Girard intuía no bode imolado por Abraão no fim o substituto da violência social que percorre as gerações e os componentes de um povo; a interpretação política de Kolakowski transformava a cena em uma parábola da razão de Estado e dos seus crimes endossados em nome de Deus; a análise filosófica de Kant desmitificava aquele mandamento, remetendo-o, por causa da sua realidade imoral, ao engano satânico.
Penso, porém, que a análise mais aguda foi elaborada por Kierkegaard no seu Temor e Tremor,
que, no relato, descobria o paradigma da fé autêntica e suprema. Para
ser tal, ela também deve se despojar do apoio palpável e concreto do
filho dado por Deus. Através dessa nudez absoluta, Abraão
não só alcança o cume da fé, mas recupera o filho verdadeiramente como
fruto exclusivo da promessa divina, já que o pai tinha renunciado lá
embaixo ao filho carnal.
Por isso, continuava o filósofo dinamarquês, Deus tinha exigido a fé
no nível genuíno e total àquele que se tornaria o "pai dos crentes",
comportando-se como a mãe que, para desmamar a criança e torná-la
autônoma, a separa do seio, em um gesto de amor altíssimo que, ao
contrário, a criança sente como uma rejeição.
Pois bem, Kierkegaard, no seu ensaio, hipotetizava livremente resultados diferentes do relato: por exemplo, Abraão, tendo chegado ao topo do Moriá, poderia ter se retratado, descendo novamente com o filho para as tendas de Manre.
Um filósofo contemporâneo de destaque como Ermanno Bencivenga
– ao qual devemos textos altamente sugestivos também para um público
mais amplo e que revelou um profundo interesse por uma interlocução com
as questões de fé – também imaginou uma alternativa à narração bíblica,
sobrepondo a ela uma tragédia em três atos, com um final horrível.
Abraão realiza sem reservas a ordem divina que lhe
foi transmitida pelos três misteriosos viajantes que o tinham visitado
no seu acampamento (Gênesis 18-19). Seria o servo que tinha acompanhado Abraão e Isaac que descreveria aquele ato terrível entrevisto de longe, aos pés da montanha, no contorno do céu: Isaac
"vira as costas ao pai, que, de repente, o agarra e fecha o seu pescoço
com uma prensa e levanta a faca (...) e atinge Isaac (...) na garganta
(...) e o seu corpo, que antes (…) estava tenso como um arco, (…) se
solta, relaxa".
A mãe, Sara, enlouquece com a dor, Abraão
retorna sombrio para a sua tenda. Mas é aqui que começa a
impressionante reversão do episódio, através do retorno dos três
mensageiros divinos que tinham vindo para trazer-lhe o mandamento da
morte. Estava naquele absurdo imperativo a verdadeira prova da fé do
patriarca, uma prova infelizmente fracassada.
De fato, "a prova era ter fé suficiente em Deus a ponto de saber
recusar aquelas palavras, porque a tua fé te ensinava que não podiam vir
d'Ele, que não podia ser aquilo que Ele queria de ti, aquilo que ele te
pedia para fazer".
Na prática, a fé de Abraão foi uma fé aberrante,
fundamentalista, obtusa, que se opunha à verdade do amor em nome de um
deus idolátrico. O verdadeiro Deus não exige nunca que a sua criatura
renuncie à sua dignidade, à sua liberdade, ao amor. E Abraão,
no fim, depois de um esforço de conversão, confessa: "A minha escolha
não foi realmente uma escolha. Eu traí o meu filho, a minha casa e o meu
Deus; fiz isso por nada. Sou apenas um louco... Um tolo cala mesmo
quando fala, é mudo mesmo quando berra... Ficou-me só o silêncio, e no
silêncio apagarei a minha vida".
Mas, nesse ponto, há no drama de Bencivenga uma sequência final que deixamos para que o leitor decifre, imersa na aura onírica do prodígio.
Nós, ao invés, voltamos a Kierkegaard e a uma fulgurante consideração sua que toca o coração profundo do drama de Abraão:
"A fé é a mais alta paixão de todo homem. Talvez, haja em cada geração
muitos homens que não chegam até ela, mas ninguém vai além".
- Ermanno Bencivenga. Abramo. Tragedia in tre atti. Torino: Nino Aragno, 66 páginas.
-----------------
Fonte: IHU online, 15/05/2014
Nenhum comentário:
Postar um comentário