Leonardo Boff*
Não é verdade que vivemos tempos pós-utópicos. Aceitar esta afirmação
é mostrar uma representação reducionista do ser humano. Ele não é
apenas um dado que está ai fechado, vivo e consciente, ao lado de outros
seres. Ele é também um ser virtual. Esconde dentro de si virtualidades
ilimitadas que podem irromper e concretizar-se. Ele é um ser de desejo,
portador do princípio esperança (Bloch), permanentemente insatisfeito e
sempre buscando novas coisas. No fundo, ele é um projeto infinito, à
procura de um obscuro objeto que lhe seja adequado.
É desse transfundo virtual que nascem os sonhos, os pequenos e
grandes projetos e as utopias mínimas e máximas. Sem elas o ser humano
não veria sentido em sua vida e tudo seria cinzento. Uma sociedade sem
uma utopia deixaria de ser sociedade, lhe faltaria um fator de coesão
interna, um rumo definido pois afundaria no pântano dos interesses
individuais ou corporativos. O que entrou em crise não são as utopias,
mas certo tipo de utopia, as utopias maximalistas vindas do passado.
Os últimos séculos foram dominados por utopias maximalistas. A utopia
iluminista que universalizaria o império da razão contra todos os
tradicionalismos e autoritarismos. A utopia industrialista de
transformar as sociedades com produtos tirados da natureza e da
invenções técnicas. A utopia capitalista de levar progresso e riqueza
para todo mundo. A utopia socialista de gerar sociedades igualitárias e
sem classes. As utopias nacionalistas sob a forma do nazifascismo que, a
partir de uma nação poderosa, de “raça pura”, redesenharia a
humanidade, impondo-se a todo mundo. Atualmente a utopia da saúde total,
gestando as condições higiênicas e medicinais que visam a imortalidade
biológica ou o prolongamento da vida até a idade das céculas (cerca de
130 anos). A utopia de um único mundo globalizado sob a égide da
economia de mercado e da democracia liberal. A utopia de ambientalistas
radicais que sonham com uma Terra virgem e o ser humano totalmente
integrado nela.
Essas são as utopias máximalistas. Propunham o máximo. Muitas deles
foram impostas com violência ou geraram violência contra seus
opositores. Temos hoje distância temporal suficiente para nos confirmar
que estas utopias maximalistas frustraram o ser humano. Entraram em
crise e perderam seu fascínio. Dai falarmos de tempos pós-utópicos. Mas o
pós se refere a este tipo de utopia maximalista. Elas deixaram um
rastro de decepção e de depressão, especialmente, a utopia da revolução
absoluta dos anos 60-70 do século passado como a cultura hippy e seus
derivados.
Mas a utopia permanece porque pertence ao ânimo humano. Hoje a busca
se orienta pelas utopias minimalistas, aquelas que, no dizer de Paulo
Freire, realizam o “possível viável” e fazem a sociedade “menos malvada e
tornam menos difícil o amor”. Nota-se por todas as partes a urgência
latente de utopias do simples melhoramento do mundo. Tudo o que nos
entra pela muitas janelas de informação nos levam a sentir: assim como o
mundo está não pode continuar. Mudar e se não der, ao menos melhorar.
Não pode continuar a absurda acumulação de riqueza como jamais houve
na história (85 mais ricos possuem rendas correspondentes a 3,57 bilhões
de pessoas, como denunciava a ONG Oxfam intermón em janeiro deste ano
em Davos). Para esses, o sistema econômico-financeiro não está em crise;
ao contrário, oferece chances de acumulação como nunca antes na
história devastadora do capitalismo. Há que se pôr um freio à verocidade
produtivista que assalta os bens e serviços da natureza em vista da
acumulação, produz gases de efeito estufa que alimenta o aquecimento
global. Se não for detido, poderá produzir um armagedon ecológico.
As utopias minimalistas, a bem da verdade, são aquelas que vêm sendo
implementadas pelo governo atual do PT e seus aliados com base popular:
garantir que o povo coma duas ou três vezes ao dia, pois o primeiro
dever de um Estado é garantir a vida dos cidadãos; isso não é
assistencialismo mas humanitarismo em grau zero. São os projeto “minha
casa-minha vida”, “luz para todos”, o aumento significativo do salário
mínimo, o “Prouni” que permite o acesso aos estudos superiores a
estudantes socialmente menos favorecidos, os “pontos de cultura” e
outros projetos populares que não cabe aqui elencar.
Na perspectiva das grandes maiorias, são verdadeiras utopias mínimas viáveis:
receber um salário que atenda as necessidades da família, ter acesso à
saúde, mandar os filhos à escola, conseguir um transporte coletivo que
não lhe tire tanto tempo de vida, contar com serviços sanitários
básicos, dispor de lugares de lazer e de cultura e com uma aposentadoria
digna para enfrentar os achaques da velhice.
A consecução destas utopias mínimas cria a base para utopias mais
altas: que tenhamos uma verdadeira democracia participativa de base
popular, aspirar que os povos se abracem na fraternidade, que não se
guerreiem, se unam todos para preservar este pequeno e belo planeta
Terra, sem o qual nenhuma utopia máxima ou mínima pode ser projetada. O
primeiro ofício do ser humano é viver livre de necessidades e gozar um
pouco do reino da liberdade. E por fim poder dizer: “valeu a pena”.
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* Teólogo. Filósofo. Escreveu: Virtudes para um outro mundo possivel, 3 vol. Vozes 2005.
Fonte: http://leonardoboff.wordpress.com/2014/05/09/o-tempo-das-utopias-minimas-viaveis/
Imagem da Internet
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