sábado, 10 de maio de 2014

Diálogos entre Frei Betto e Friedrich Nietzsche

João Renato L. Paulon*
 
 

Nessa Páscoa me nutri das leituras: Fome de Deus de Frei Betto e O Anticristo de Nietzsche. Como ressurreto do cristianismo pela Teologia da Libertação me senti obrigado a reler a obra de Nietzsche sob uma nova ótica. Um capítulo da obra de Frei Betto é dedicado ao filósofo alemão filho de pastor protestante.

Nietzsche, filósofo que nasceu em 1844 faz na obra O Anticristo o que chama a pior das acusações jamais pronunciadas por um acusado especialmente ao apóstolo Paulo e o que chama de "continuação do hebraísmo, o cristianismo”. A obra denominada por frei Betto como manifesto antipaulo é marcada com a afirmação que "o único cristão que existiu morreu na cruz”.

Nietzsche não poupa o apóstolo Paulo e o responsabiliza, por criar "a mentira da Ressurreição de Jesus”, incutir a crença na imortalidade para a formação de rebanhos, ao "não colocar o peso da vida na própria vida, mas sim no "além”, no nada, então retira-se da vida sua importância”.

Apesar de refutar tal interpretação, frei Betto confirma a posição de Paulo: "Sua morte não é o fato central da fé cristã. O fato central é a ressurreição. Como diz Paulo, não houvesse Jesus ressuscitado, a nossa fé seria vã”, porém frei Betto faz uma releitura desse milagre e denuncia que essa "teologia” que Nietzsche se refere "fica a impressão de que a solução dos problemas da Terra fica no Céu, e de lá derivam a prosperidade, a cura, o alívio. As dificuldades pessoais e sociais devem ser enfrentadas, não pela política, mas pela autoajuda (...)”, reduzindo a dimensão social do Evangelho. Assim, sob tal ótica os pobres, excluídos deste mundo, resta se entregar às promessas de que serão incluídos, cobertos de bênçãos, no outro mundo que se descortina com a morte.

Pelo contrário, Frei Betto relembra que Jesus veio "para que todos tenham vida e vida em abundância” (João 10,10) e que "às vésperas de sua morte, Jesus antecipou-nos sua ressurreição ao dividir com seus discípulos, na ceia, o pão e o vinho”. O pão representa todos os alimentos e bens essenciais à vida e a obra de frei Betto relata exaustivamente esse "gesto característico de Jesus”.

Nietzsche também não poupa críticas ao sacerdote, como enquanto for tido como "homem superior, esse negador, difamador, envenenador profissional da vida”. Frei Betto critica na linha: "Essa religião, mais voltada à sua dilatação patrimonial que ao aprimoramento do processo civilizatório, evita criticar o poder político para, assim, obter dele benefícios: concessão de rádio e TV, recursos etc. Ajusta a sua mensagem a cada grupo social que pretende alcançar.”.

A obra de Nietzsche é marcada também por um paralelismo entre o cristianismo e o budismo, onde está detém maior predileção do filósofo: "o budismo nada promete porém cumpre; o cristianismo promete tudo mas não cumpre coisa alguma”. Fome de Deus contém uma entrevista com frei Noé a respeito das diferenças entre as tradições orientais e ocidentais: "Numa distinção meramente didática, (...). A espiritualidade "mística” ignora a sociedade na qual se insere, enquanto a profética valoriza a pessoa, o mundo e a história. A primeira vive uma relação a-histórica com o Transcendente; a segunda contextualiza a relação com Deus. A "mística” dilui o conceito de Deus em uma unidade indiferenciada; a profética reconhece um Deus pessoal. A primeira favorece uma fuga do mundo; a segunda, a transformação do mundo. A primeira reveste-se de um espírito monacal, que aceita tudo como expressão da vontade divina; a segunda reveste-se de um espírito profético, discernindo o justo do injusto. (...) Para a primeira, a salvação é concebida como fusão do indivíduo no Absoluto; para a segunda, a salvação é escatológica, consuma a libertação das pessoas e do mundo”.

Não há como deixar de reconhecer a missão evangelizadora de libertação das pessoas e combater injustiças, por ser demasiadamente grande, é evidente que enfrenta obstáculos e derrotas. A derrota é uma marca da missão de transformar o mundo diria Che Guevara: "derrota após derrota até a vitória final”. O cristianismo paga caro por encontrar resistências impostas pelo capitalismo ao projeto do Reino de Deus. Essa atitude frente às consecutivas derrotas distingue o cristão, pois ele se nutre de esperança. Frei Betto diz que "a esperança cristã não teme o negativo, as vicissitudes históricas, o fracasso. É uma esperança crucificada, que se abre à perspectiva da ressurreição. (...) A esperança vê o que existirá”.

Pelo ponto de vista da lógica argumentativa, Nietzsche, faz uma generalização apressada de passagens bíblicas que efetivamente não condizem com o núcleo da palavra de Jesus, assim desqualificando parte da bíblia desqualifica o todo. Esta é a falácia do acidente. Desta forma, Nietzsche age como um fundamentalistas às avessas "lê o texto fora do contexto, como se a Bíblia tivesse a pretensão de normatizar não apenas a ética que rege todas as dimensões da vida (...) o fundamentalista não sabe a linguagem simbólica da Bíblia, rica em metáforas, recorre a lendas e mitos para traduzir o ensino religioso” diria frei Betto.

Nietzsche ao menos reconhece que Jesus era um criminoso político e que "isso levou-o à cruz”, mas critica a posição de Jesus e o cristianismo como sendo " a religião da compaixão” . Isso é confirmado por frei Betto quando diz que " Nietzsche apregoou a aniquilação dos perdedores ” e isso é verdade: "O que é mais prejudicial do que qualquer vício? A compaixão ativa para com todos os deficientes e fracos; o cristianismo.” e ainda complementa "o cristianismo tomou o partido de tudo aquilo que é fraco, baixo, deficiente; construiu um ideal a partir da oposição ao instinto de sobrevivência de uma vida forte (...)”

Não há análise crítica da história para Nietzsche, e com isso legitima as forças existentes e a exploração dos povos. Aliás, Nietzsche neste quesito não inova muito, já que era contemporâneo de Herbert Spencer (1820-1903), o pai do Darwinismo social. Se não há compaixão, os povos devem continuar a ser explorados. Nietzsche é contra a formação do rebanho pelo sacerdote e pela igreja, mas não há linhas em sua obra contra a formação dos rebanhos industriais da produção e do consumo.

Evidentemente que Nietzsche não foi testemunha de grandes acontecimentos históricos que sucederam após sua morte, em especial as revoluções movidas pelos sentimentos de compaixão com o próximo. Morreu em 25 de agosto de 1900 o "filósofo da exclusão”, na mesma data, 44 anos após, nasce Frei Betto.
---------------------------------
*João Renato L. Paulon é advogado e coordenador do MIRE – Mística e Revolução 
http://mirerj.blogspot.com.br/
Fonte: Adital acesso 10/05/2014
Imagem da Internet

Nenhum comentário:

Postar um comentário