Quarenta e sete anos depois, Sudhira continua limpando excrementos.
Acorda às 7h e começa sua ronda. Na primeira casa, vai até o fundo do
terreno, onde fica o "banheiro" –um buraco raso no chão, cercado por uma
parede baixa de tijolos.
Cheira muito mal. Em meio a uma nuvem de moscas, Sudhira se agacha,
retira os excrementos com uma pá, que segura na mão sem luva. Junta um
pouco de folhas, terra e cinzas e põe em cima das fezes. Recolhe esse
bolo de excrementos com a pá e põe na cesta que leva sobre a cabeça. Às
vezes, escorre.
Sudhira recebe 20 rúpias (US$ 0,30) e um pão roti de cada casa. Limpa
quatro latrinas por dia e, em outras 10 casas, retira o lixo e os
excrementos de animais. Ninguém encosta em Sudhira, porque ela é
considerada "poluída".
Há 1,3 milhão de pessoas na Índia que são "catadores de excrementos" como Sudhira. Elas pertencem a uma casta de intocáveis.
Neste país que é uma potência e já mandou um foguete para Marte, cerca
de 600 milhões de pessoas fazem suas necessidades ao ar livre, no mato.
Outras 15 milhões usam as chamadas "latrinas secas", que nada mais são
do que buracos no chão usados por toda a família para fazer suas
necessidades. São limpos por pessoas da casta dos intocáveis, os dalits.
As mulheres são 98% dos catadores de excrementos.
Andando pelo vilarejo com a catadora Saraswati, 45, vê-se lixo por toda
parte, amontoado em pilhas altas, com porcos e vacas "pastando" nos
detritos. É lá que ela joga os excrementos que recolheu na bacia que
leva na cabeça. Não há coleta de lixo.
Segundo dados do Banco Mundial, uma em cada dez mortes da Índia se deve à
falta de saneamento básico –ou seja, cerca de 780 mil indianos por ano.
Em junho de 2011, o primeiro-ministro, Manmohan Singh, disse que a
atividade de catar excrementos manualmente era "uma das maiores manchas
no processo de desenvolvimento da Índia" e prometeu eliminar a prática
até o fim daquele ano.
O governo já aprovou duas leis que proíbem esse tipo de trabalho, em 1993 e 2013, mas os avanços são lentos.
"O governo deveria aumentar a fiscalização e impor punições mais severas
para quem empregar catadores de excrementos", disse Bezwada Wilson,
coordenador do SKA, um movimento nacional para a erradicação da coleta
manual de excrementos.
VERGONHA
O maior empregador de catadores de excrementos da Índia é o sistema ferroviário.
São 178 mil vagões de trens, cada um com quatro banheiros. Não existe
nenhum tratamento. A pessoa faz suas necessidades, e os excrementos caem
sobre os trilhos. O catador de excrementos limpa.
"Meu irmão trabalhou nas ferrovias da Índia limpando cocô por 18 anos;
ele tinha vergonha, dizia para a mulher dele que trabalhava nas minas de
ouro", conta Wilson.
"As ferrovias indianas são o maior esgoto a céu aberto do mundo", admite
Jairam Ramesh, ministro do Desenvolvimento Rural da Índia. "Todos os
trens comprados agora vêm equipados com banheiros químicos e estamos
adaptando os antigos, mas leva tempo", diz.
O governo dá 10 mil rúpias (US$ 200) para famílias construírem privadas
com fossa. Segundo Ramesh, foram construídos 6 milhões de privadas de
2013 para cá.
Trata-se de uma questão de segurança também. Segundo levantamento do
Estado indiano de Bihar, 400 mulheres teriam escapado de ser estupradas
em 2012 se houvesse privadas nas casas. Isso porque cerca de 40% dos
estupros ocorreram quando as mulheres iam para o mato fazer suas
necessidades.
Mas não basta melhorar o saneamento básico para eliminar a coleta manual
de excrementos. É preciso treinar os catadores para que eles possam ter
outra atividade.
A Sulabh International, por exemplo, ensina 400 catadoras de excrementos
do Rajastão e Uttar Pradesh a costurar, fazer bolsas, tapetes e
bordados, além de lhes dar uma ajuda financeira.
"Quando comecei a trabalhar com os intocáveis, 40 anos atrás, foi uma
revolução; na minha família, quem encostava em dalit tinha que tomar
urina de vaca para se purificar", diz o fundador da Sulabh, Bindeshwar
Pathak.
Ele é um brahma, casta mais alta da Índia, e desenvolveu um vaso
sanitário com fossa que pode ser construído por US$ 30. Mantém, ainda,
um museu da privada em Nova Déli.
Usha Chaumar, 35, foi "libertada" em 2003, quando se juntou ao programa.
Hoje faz roupas para vender. "Agora pessoas de casta superior me chamam
para conversar e até pegam na minha mão", disse ela, que catava
excrementos desde os 7 anos. Mas o preconceito ainda está lá.
"As pessoas nunca vão contratar balmikis [casta inferior] para limpar a
casa delas ou lhes fazer comida; por isso, nós damos treinamento", diz
Wilson.
"O sistema de castas está lá, e se espera que eles cumpram esse que
seria seu 'karma' na vida: limpar a merda dos outros", afirma.
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Reportagem por PATRÍCIA CAMPOS MELLO
ENVIADA ESPECIAL A FARRUKH NAGAR (ÍNDIA)
ENVIADA ESPECIAL A FARRUKH NAGAR (ÍNDIA)
Fonte: Folha online, 18/05/2014
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