“Os desastres da guerra, nº 33″, Francisco de Goya
Podemos nos engajar com os outros seres e o mundo externo de três
formas convencionais e de três formas extraordinárias. As convencionais
são: indiferença, aversão e interesse.
Negligenciamos (não nos interessamos) ou nos envolvemos em
estratégias para suprimir ou conquistar o que nos incomoda ou atrai.
Essas formas dizem respeito a uma visão da realidade que projeta o mundo
externo e os seres como bastante independentes ou separados de nós
mesmos. Queremos evitar ou obter algo que não temos, ou simplesmente não
estamos nem aí.
Quando começamos a construir uma noção do outro e do ambiente que
realmente diz respeito a como efetivamente somos e as coisas de fato
são, e não a impulsos momentâneos, tendências habituais e enganos
adventícios sobre a natureza das coisas, finalmente passamos a
desenvolver o primeiro nível de visão além da separação, que é a emoção vicária.
Algumas pessoas veem a videocassetada em que a senhora idosa cai
sobre o bolo e riem. Outras sentem uma dor no coração com a mesma cena.
Mas todos os indivíduos dotados de relativa sanidade mental são capazes
de vivenciar emoções que outra pessoa vivencia, algumas vezes apenas por
ouvir um relato. Por exemplo:
A emoção vicária é uma das explicações, em termos de visão de seleção
adaptativa darwinista, para a existência da ficção. Contamos histórias
porque somos capazes de nos colocar na posição de outras pessoas — que,
às vezes, nem mesmo existem — e vivenciar as emoções de acordo com
paisagens construídas. Esse tipo de flexibilidade mental produz
vantagens adaptativas, isto é, possivelmente aprendemos a lidar com
nossas próprias emoções ao tratar, vez após vez, com problemas que não
são nossos — pelo menos não naquele momento — ou daquela exata forma.
O jargão psiquiátrico que separa alguém capaz de sentir apenas emoção
vicária de alguém com empatia por meio de, por exemplo, um diagnóstico
de psicopatia. O psicopata é
um manipulador que consegue entender as emoções dos outros, tanto é
assim que consegue usá-las em seu proveito (mas que não se importa
verdadeiramente). Um autista seria incapaz de sentir emoção vicária, que
é um problema cognitivo, mas não necessariamente incapaz de empatia. Se
ele soubesse interpretar o que o outro está sentindo — expressões
faciais, sinalizações linguísticas sutis etc –, ele se importaria.
Sendo assim, separadas, é fácil entender que a emoção vicária, por si
só, desacompanhada de empatia, pode se tornar subalterna das três
formas convencionais de encarar o outro: aversão, indiferença e
interesse.
Ora, somos capazes de operar do ponto de vista do outro (em jargão
técnico, desenvolvemos uma teoria da mente), mas até aí, apenas isso,
sem uma reflexão dessa própria flexibilidade da mente se colocar fora de
sua própria perspectiva, faz com que ela simplesmente espelhe as formas
convencionais. Em outras palavras, tudo que vemos são estratégias
ligadas a vários interesses — em suas várias gradações, até o
desinteresse — e o “interesse negativo”, que é o impulso de eliminar
algo que aparentemente atrapalha. Nada fora desse eixo parece possível.
Assim funcionam nações, que olham outras com os três olhos
contaminados (as que interessam surgem como ameaças ou colônias),
companhias que exploram os recursos do planeta e nós mesmos, quando
alguém nos fecha no trânsito, por exemplo.
Algumas vezes a emoção vicária até intensifica nossa irritação,
porque projetamos na mente do outro uma safadeza ou motivação daninha
que pode nem existir. Afinal de contas, “naquele caso”, o motorista não
estava tentando ferrá-lo ou, em vez de uma distração frívola, ele
efetivamente teve um lapso cognitivo que, se você estivesse ciente de
todas as circunstâncias, até compreenderia, mas, por seus próprios
hábitos e preconceitos, por seu próprio momento emocional, naquele dia,
você tende a vê-lo como o próprio Satanás atrás do volante!
Não basta se aborrecer, você tem todo um cenário montado para justificar sua irritação: e isso também é emoção vicária.
O nível da empatia reconhece, no entanto, que todos os outros
elementos conscientes operam também com algum grau de emoção vicária,
com níveis rudimentares de teoria da mente da parte deles com relação,
em contrapartida, a sua mente.
Assim surge uma meta-teoria-da-mente: sabemos que o outro também é
capaz de estratégia, porque ele também é capaz de se colocar, em certa
medida, em nossa posição. Com isso, há o potencial de surgir um nível
basal de concordância em termos de coexistência, e essa é uma
inteligência que nos toca muito diretamente, assim como somos todos
capazes de sentir como se ocorresse em nós mesmos, a dor infligida em
outro, somos capazes de reconhecer essa natureza mais inteligente como
ao menos um potencial.
A patologia do torpor perante a experiência de sofrimento do outro
está no limiar entre a ética e a “aberração da natureza”, a
monstruosidade, o “mal” – o pathos que vai da doença à desumanização.
Nossa tendência, com relação ao psicopata, espelha a exata mesma falta
de empatia que ele possui: se ele é incapaz de projetar uma teoria de
mente que inclui meu sofrimento como preocupação dele, ele mesmo perde,
convencionalmente, na minha perspectiva, a propriedade de ser tratado
como um mero doente: se ele comete um crime, minha tendência não é vê-lo
como uma vítima de circunstâncias internas ou externas, físicas ou
sutis, mas como um monstro.
Mas ele também é capaz de teoria da mente e emoção vicária. Seu
torpor (biológico? deliberado?) perante a empatia diz respeito a falta
de uma dimensão autorreflexiva e aninhada da “teoria da mente da teoria
da mente” e, em certo sentido, os fins convencionais estão solidamente
distorcidos como mais importantes do que os seres envolvidos: o foco são
os fins – os meios que se ferrem, mesmo que eles sejam você mesmo (e o
próprio psicopata!).
Claramente podemos entender que todos nós temos certo grau de torpor
perante a empatia, certas imperfeições em nossa capacidade cognitiva
para as emoções vicárias, e nos envolvemos frequentemente no que é
convencional. Também é fácil de entender que a dimensão das emoções
vicárias e da empatia estão ligadas ao nosso florescimento individual,
passíveis de desenvolvimento, treinamento.
O que seria um nível “olímpico” de empatia? Diferenciado de nossa atividade física basal ou nosso hobbie como músico? Um virtuoso da empatia, como um atleta de primeira linha?
A empatia que se torna natural, absoluta e invariável, podemos chamar
de compaixão. Ela diz respeito ao abandono de todos os preconceitos que
produzem noções de separação e julgamentos que dizem respeito a uma
confusão entre teorias da mente potenciais e atuais. Explico: cada uma
de nossas projeções sobre como a mente de outra pessoa está operando ou
pode operar está vinculada à nossa própria liberdade perante os olhos
convencionais de interesse, indiferença e aversão. Assim, tingimos de
certa cor e expectativa nossa interpretação das motivações do outro, e
ela se torna pelo menos tão imperfeita como nossa própria percepção.
Caso estejamos suficientemente livres desses medos e expectativas
perante o outro, e ainda assim, totalmente engajados com ele, a teoria
da mente que espelhamos é dupla: em um nível, reconhecemos alguma
possível imperfeição e, em outro, vemos o potencial pleno da mente
operar livre das formas convencionais, isto é, sua capacidade de não se
envolver com os outros por interesse.
A combinação entre reconhecer o potencial pleno (nosso, do outro,
inseparável) e a imperfeição adventícia (também coemergente, impartível)
é que dá luz à compaixão.
Ela diz respeito a um total abandono das formas convencionais e um
total desenvolvimento da capacidade empática, de forma que a imperfeição
é reconhecida e dissolvida na lucidez que caracteriza a si própria como
estando de acordo com a realidade e além das tendências adventícias e
propensões momentâneas.
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