O retrato, aliás, o autorretrato é o seguinte: de manhã despertamos com o celular, zapeamos as notícias no tablet, conferimos o trânsito na rádio, tarde adentro ziguezagueamos no trabalho entre abas e abas repletas de imagens, letras e links, à noite assistimos à TV para pensar na vida – e às vezes para não pensar –, marcamos um bar com os amigos no Facebook, narramos o evento no Twitter e fotografamos o quão divertido está o encontro no Instagram. Socializamos o tempo todo, compartilhamos o tempo todo, curtimos o tempo todo. Curtimos?
No fim de abril, o diretor londrino Gary Turk postou seu “manifesto” Look Up, que já soma mais de 37 milhões de visualizações – ironicamente, uma crítica à midiatização da vida se tornou um hit no YouTube.
Outro hit, já na casa dos 42 milhões de views desde agosto, foi protagonizado pela atriz Charlene deGuzman. No vídeo I Forgot My Phone,
a americana é ignorada por todos ao seu redor, intensamente vidrados
nos “likes” de seus smartphones, o que levou o jornalista Nick Bilton a publicar no New York Times uma pensata atilada à nossa sociedade: “Assistir ao vídeo de DeGuzman é desconfortável. É um golpe direto na nossa cultura obcecada com smartphones,
cutucando-nos sobre nosso vício naquela pequena tela e sugerindo que
talvez a vida possa ser mais bem direcionada quando é vivida – em vez de
visualizada.”
“Dizia Hegel,
o jornal é a ‘oração’ matinal do homem moderno. As redes sociais serão a
oração do homem pós-moderno”, considera o sociólogo francês Michel Maffesoli, diretor do Centre d’Études sur l’Actuel et le Quotidien (CEAQ) da Université Paris Descartes – Sorbonne. Autor de O Ritmo da Vida (2007), O Tempo das Tribos (2006) e Sobre o Nomadismo: Vagabundagens Pós-modernas (2001),
entre outros, o teórico da pós-modernidade é um dos principais
pensadores debruçados sobre questões culturais e ciberculturais da
atualidade. Vê nos selfies mais uma expressão
contemporânea da iconofilia, essa adoração imagética num looping rumo ao
infinito como o que vimos nos últimos dias: Macaulay Culkin vestindo uma camiseta de Ryan Gosling, vestindo uma camiseta de Macaulay Culkin e assim por diante.
Mas Maffesoli, aos 69 anos, é otimista sobre determinados aspectos da internet. Na sua visão, o avanço tecnológico não nos direciona ao antissocial. “Tende, ao contrário, a consolidar uma mise en relation.
E uma das pistas que será preciso estudar sobre o desenvolvimento
tecnológico próprio às mídias sociais é a emergência de novas formas de
generosidade e de solidariedade”, diz.
Nesta entrevista às vésperas do Dia Mundial da Internet (celebrado no dia 17 de maio), o intelectual comenta as relações entre os “nativos digitais” nessas tribos contemporâneas. Pondera que, evidentemente, não estamos mostrando quem somos nas redes sociais
– mas quem desejamos ser aos olhos dos outros. “Qual é o status dessas
determinadas personalidades? De fato, elas não são mais
consubstanciáveis a um indivíduo, mas representam uma máscara – a
persona – de quem escolhe se posicionar nessa ou naquela rede social.”
Para Maffesoli, essas relações tribais,
especialmente entre os jovens, levam a um outro quadro: quer-se tanto
viver em sociedade que os jovens se preocupam mais em se acomodar ao
mundo – e não a querer transformá-lo.
Eis a entrevista.
Qual é o papel das mídias sociais na pós-modernidade?
Podemos dizer que, na pós-modernidade, as mídias estão se tornando mais e mais importantes, especialmente as chamadas “mídias sociais”. Lembremos Hegel,
que dizia no século XIX: a leitura do jornal é a oração do homem
moderno. Podemos pensar que as mídias interativas serão a oração do
homem pós-moderno. Contrariamente às críticas tradicionais, porém,
acredito que essas mídias favorecem a mediação, isto é, a relação e a
inter-relação entre as pessoas. Se a modernidade, particularmente no seu
momento final, viu o triunfo da “multidão solitária”, a pós-modernidade nascente verá se desenvolver uma multiplicidade de novas tribos urbanas, cuja essência é o relacionismo.
Com os avanços tecnológicos, nós estamos observando a emergência de uma geração ‘selfie’?
Certamente o selfie está no ar. Entretanto, na minha opinião, essa mise en scène
de si mesmo não é, como se costuma dizer, o símbolo de um
aprisionamento de si. Nessa perspectiva, discordo dos teóricos que
abordam abusivamente o narcisismo. Prefiro dizer que os selfies compõem a forma contemporânea da iconofilia.
Assim, podemos indicar um narcisismo tribal. Isso quer dizer que, ao
difundir essas fotografias, nós pretendemos nos posicionar em relação
aos outros da tribo. Se traçarmos um paralelo com uma imagem religiosa, o
selfie tem uma finalidade sacramental, que torna
visível a força invisível do grupo. O que me liga aos outros da minha
tribo? Nós nos definimos sempre em relação ao outro. Assim, o fenômeno
tribal repousa essencialmente no compartilhamento de um gosto (sexual,
musical, religioso, esportivo, etc.). É preciso dizer que essa
“partilha” cresce exponencialmente com o desenvolvimento tecnológico.
Nas mídias sociais, publicamos ‘selfies’ sempre felizes.
Somos tão felizes? Ou filtramos nossos retratos justamente para esconder
nossas angústias atuais?
De fato, as mídias sociais
(Facebook, Instagram, Twitter, etc.) tendem a dar uma figuração feliz
de nós mesmos. Certamente não estamos sempre felizes. Mas há aí um
movimento de pudor: nós tendemos a dar à tribo, ou às diversas tribos às
quais pertencemos, imagens reconfortantes de nós mesmos. No entanto,
historicamente, é preciso lembrar que os quadros e as esculturas, as
imagens próprias a todas as civilizações destacaram essencialmente essa
figuração de felicidade. Os últimos livros de Michel Foucault (História da Sexualidade: O Cuidado de Si e História da Sexualidade: O Uso dos Prazeres) mostram que isso marcou a Grécia e a Roma antiga. Foi o caso também na Idade Média. Para resumir em uma expressão: isso traduz um “pudor antropológico”, que é um elemento essencial do viver em sociedade.
Há quem argumente que a tecnologia está nos tornando antissociais. Temos muitos amigos no Facebook, mas estamos mais solitários?
Contrariamente aos críticos que sublinham o isolamento crescente, que
seria característico das megalópoles pós-modernas, considero que a
multidão solitária – na minha expressão, a solidão gregária – é uma das
especificidades da modernidade decadente. Paradoxalmente, o
desenvolvimento tecnológico não nos direciona ao antissocial. Tende, ao
contrário, a consolidar essa mise en relation – no seu sentido forte e
etimológico, o comércio das ideias, dos bens, dos afetos. É evidente que
o termo “amigo” particularmente no Facebook não pode
ser reduzido à concepção de amizade clássica, feita de relações intensas
e recíprocas. Entretanto, a multiplicidade de amigos nos permite saber,
se necessário for, onde e com quem manter relações sociais. E uma das
pistas que será preciso estudar sobre o desenvolvimento tecnológico
próprio às mídias sociais é a emergência de novas formas de generosidade
e de solidariedade, nas quais os uns e os outros são causa e efeito de
uma “horizontalização societal”.
Divulgado nos últimos dias, um estudo da OMS mostrou que a
depressão é a principal enfermidade entre os jovens. A vida virtual e a
fragilidade das relações ‘tête-à-tête’ teriam impacto nessa geração?
É preciso ter bastante cuidado com os diversos estudos institucionais
focados principalmente no campo da saúde, que tendem a dizer que a
depressão é a doença específica das jovens gerações. Valeria questionar
se essa depressão não é característica das gerações no poder, quer
dizer, das próprias gerações que comandam esses estudos e que talvez,
num processo de compensação como destacou o psicanalista Carl Gustav Jung, tendem a projetar ao exterior o mal-estar que nós mesmos sofremos.
Há tempo para contemplação do mundo atualmente?
No livro A Contemplação do Mundo, tento demonstrar
que a tendência geral da pós-modernidade, perceptível particularmente
nas jovens gerações, consiste menos em querer mudar o mundo – e mais em
se acomodar ao mundo. Adaptar-se, ajustar-se a ele. Isso pode nos
conduzir a evitar a devastação, cujos “saques” ecológicos são exemplos
cotidianos. Com o sociólogo italiano Massimo De Felice, no Centro de Pesquisa Atopos da Universidade de São Paulo (USP), tentamos justamente desenvolver pesquisas sobre essa “ecosofia”. Acredito que é assim que precisamos compreender o “ritmo da vida”,
isto é, pensar a existência a partir de um ponto fixo – a natureza, o
território –, todos os elementos que fazem com que o ambiente social
dependa do ambiente natural. Se a modernidade foi um pouco paranoica,
levando à dominação e à devastação do mundo, na pós-modernidade uma nova
sabedoria está em gestação.
Por fim, a tecnologia é um meio? Ou uma mensagem?
É habitual considerar que, com a prevalência de um racionalismo exacerbado, a tecnologia moderna
contribuiu para um desencantamento do mundo. No entanto, na minha
opinião, é paradoxal observar que, atualmente, esse desenvolvimento
tecnológico, especialmente nos seus usos sociais, nos direcionam a um
reencantamento do mundo. Nessa perspectiva, as mídias sociais são ao
mesmo tempo um meio e uma mensagem, que confortam a vida em sociedade.
Se a modernidade se firmou a partir de um princípio individualista, a
tecnologia pós-moderna abriga um relacionismo galopante – uma relação,
como frisei, entre nós e os outros.
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A entrevista é de Juliana Sayuri, publicada pelo jornal O Estado de S. Paulo, 17-05-2014.
Fonte: IHU online, 20/05/2014
Veja também:
Pensamento em rede. Net-ativismo e lógica conectiva nas configurações da pós-política. Entrevista especial com Massimo Di Felice
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