sexta-feira, 23 de maio de 2014

Visão, tenha duas: a insustentável beleza

VisaoPapa
Olhar é Triste. Eugé­nia de Vas­con­cel­los e Manuel S. Fon­seca apos­ta­ram escre­ver um post sema­nal a par­tir da capa da Visão. Uma mulher e um homem olham para a mesma capa. Será que vêem coi­sas dife­ren­tes? Neste seu EeT, no pri­meiro minuto de cada sexta-feira,   “Visão, tenha duas”
Olha para onde, este homem de branco? Parecem azuis os olhos que olham para fora e para cima. Talvez olhem para o céu e talvez o azul dos olhos deste homem seja só o reflexo da luz celeste. Eu vejo-lhe nos olhos uma tristeza azul – e se isto não ficaria muito melhor, e mais fadista, escrito em inglês! Mas logo a fileira branca dos dentes e a doçura da contracção do rosto, a que chamamos sorriso, dão cabal desmentido à suspeita de tristeza.

Talvez os olhos deste homem, tão largo e confiante é o sorriso, estejam a ver Deus. Afinal, se há no mundo um homem habilitado a ver Deus é ele, o homem da batina branca. Cheguei a pensar que era de ouro e disseram-me que era de prata, a corrente que traz presa ao pescoço e que desliza pelo peito sustentando a Cruz Peitoral. O solidéu singelo e a sotaina branca conferem-lhe uma elegância confortável e simples. Se queremos ver a Deus é assim que nos devemos vestir. E calçar uns sapatos vermelhos.

Lembrei-me, sabe Deus porquê, de um conto de Giovanni Papini. É a história de um dissimulado apóstata que é eleito Papa. Quando caminha para a varanda que se abre sobre a Praça de São Pedro e sobre a multidão que, em fé e pela fé, exulta e reza, esse novo Papa vem pronto para denunciar a terrível fraude, a gigantesca impostura que é a religião. Abrem-se as portas, ele dá o primeiro passo, discurso na ponta da língua serpentina e o gáudio da multidão entra nele como a luz que lavasse os olhos de um cego. O apóstata converte-se e já o habita o Pai, o Filho e o Espírito Santo.

E se este homem de quipá, perdão, de solidéu alvo, se este homem que é talvez o único que pode ver Deus, soubesse, como mais nenhum homem sabe, que Deus não existe? Porque mais nenhum homem sabe, como este homem sabe, que o Deus a que um milhão de fiéis se ajoelha na gigantesca Praça, esse Deus patriarcal, a correr de prece para prece, entretido a vingar-se, a acusar, a salvar, castigo numa mão, a misericórdia na outra, nem por milagre pode existir. Séculos de teologia e Teilhard de Chardin dissiparam essa nuvem, essa luz que cega Paulos. Séculos de teologia e Pierre Teilhard de Chardin foram um tiro na pomba. Este homem sabe e, todavia, na tristeza azul dos olhos desta fotografia, neste sorriso que promete mais regresso à vida do que a Vénus de Botticelli nos pode dar, ele acredita.

E que insustentável fragilidade! A tristeza azul de um olhar e um maravilhoso sorriso de conto de fadas sustentam uma civilização, uma imensa e reconfortante forma de ver, sentir e viver o mundo. Bastava que este homem dissesse uma só palavra. Uma palavra e a multidão correria desvairada, em uivos apocalípticos...

A uma palavra do caos, de um triunfal niilismo. Que insustentável fragilidade. Que insustentável beleza.
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Publicado em por Manuel S. Fonseca
Fonte: http://www.escreveretriste.com/2014/05/

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