Olhar é Triste. Eugénia de Vasconcellos e Manuel S. Fonseca apostaram escrever um post semanal a partir da capa da Visão. Uma mulher e um homem olham para a mesma capa. Será que vêem coisas diferentes? Neste seu EeT, no primeiro minuto de cada sexta-feira, “Visão, tenha duas”
Olha
para onde, este homem de branco? Parecem azuis os olhos que olham para
fora e para cima. Talvez olhem para o céu e talvez o azul dos olhos
deste homem seja só o reflexo da luz celeste. Eu vejo-lhe nos olhos uma
tristeza azul – e se isto não ficaria muito melhor, e mais fadista,
escrito em inglês! Mas logo a fileira branca dos dentes e a doçura da
contracção do rosto, a que chamamos sorriso, dão cabal desmentido à
suspeita de tristeza.
Talvez
os olhos deste homem, tão largo e confiante é o sorriso, estejam a ver
Deus. Afinal, se há no mundo um homem habilitado a ver Deus é ele, o
homem da batina branca. Cheguei a pensar que era de ouro e disseram-me
que era de prata, a corrente que traz presa ao pescoço e que desliza
pelo peito sustentando a Cruz Peitoral. O solidéu singelo e a sotaina
branca conferem-lhe uma elegância confortável e simples. Se queremos ver
a Deus é assim que nos devemos vestir. E calçar uns sapatos vermelhos.
Lembrei-me,
sabe Deus porquê, de um conto de Giovanni Papini. É a história de um
dissimulado apóstata que é eleito Papa. Quando caminha para a varanda
que se abre sobre a Praça de São Pedro e sobre a multidão que, em fé e
pela fé, exulta e reza, esse novo Papa vem pronto para denunciar a
terrível fraude, a gigantesca impostura que é a religião. Abrem-se as
portas, ele dá o primeiro passo, discurso na ponta da língua serpentina e
o gáudio da multidão entra nele como a luz que lavasse os olhos de um
cego. O apóstata converte-se e já o habita o Pai, o Filho e o Espírito
Santo.
E
se este homem de quipá, perdão, de solidéu alvo, se este homem que é
talvez o único que pode ver Deus, soubesse, como mais nenhum homem sabe,
que Deus não existe? Porque mais nenhum homem sabe, como este homem
sabe, que o Deus a que um milhão de fiéis se ajoelha na gigantesca
Praça, esse Deus patriarcal, a correr de prece para prece, entretido a
vingar-se, a acusar, a salvar, castigo numa mão, a misericórdia na
outra, nem por milagre pode existir. Séculos de teologia e Teilhard de
Chardin dissiparam essa nuvem, essa luz que cega Paulos. Séculos de
teologia e Pierre Teilhard de Chardin foram um tiro na pomba. Este homem
sabe e, todavia, na tristeza azul dos olhos desta fotografia, neste
sorriso que promete mais regresso à vida do que a Vénus de Botticelli
nos pode dar, ele acredita.
E
que insustentável fragilidade! A tristeza azul de um olhar e um
maravilhoso sorriso de conto de fadas sustentam uma civilização, uma
imensa e reconfortante forma de ver, sentir e viver o mundo. Bastava que
este homem dissesse uma só palavra. Uma palavra e a multidão correria
desvairada, em uivos apocalípticos...
A uma palavra do caos, de um triunfal niilismo. Que insustentável fragilidade. Que insustentável beleza.
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Maio 23, 2014
Fonte: http://www.escreveretriste.com/2014/05/
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