domingo, 11 de maio de 2014

Descoberta do sapo

 Roberto Damatta*
 
Continuo revendo meu velho material etnológico, colhido entre os nativos de língua gê. Eis uma história da descoberta do sapo pelos “índios” (ou humanos), que eu escutei numa sexta-feira chuvosa, num 4 de abril de 1966:

“No tempo em que só havia índios, uma mulher convidou seu marido e dois filhos para irem à roça apanhar batatas. Lá chegando, ela tirou as batatas, e o marido foi caçar. Este, no mato, descobriu um rastro de tatu e seguiu-o. Depois de muito andar, descobriu a toca e cavou para pegar o tatu. Distraído, não viu que um sapo do tamanho de um homem se aproximava pelas suas costas. O sapo vinha pulando e tinha uma borduna. Encontrando o índio distraído, ele o matou a bordunadas e cortou o seu corpo em duas partes, deixando no local a parte superior e levando com ele a parte inferior. Chegando ao local onde estava a mulher, o sapo falou: mulher, já cheguei, olhe o que eu cacei para vocês! E dizendo isso, mostrou-se com a parte inferior do corpo do marido que havia matado.

Com muito medo, a mulher resolveu enganar o sapo. Disse que ele ficasse perto do moquém, enquanto ela ia apanhar lenha para assar mais batatas. O sapo comia as batatas e a mulher apanhava lenha. Na verdade, ela ia cada vez mais longe até que chegou à aldeia. Dando falta de mulher, o sapo seguiu seu rastro, mas vendo que havia sido logrado voltou para o mato cansado de tanto pular. Chegando em casa, a mulher contou ao irmão o ocorrido. Este, que era dono de um cachorro bom para acuar sapo, foi atrás do matador com alguns companheiros. Cercado pelos índios, o irmão da mulher pegou seu arco, afinou sua ponta e o cravou nas costas do sapo, sendo seguido pelo grupo.

Vendo que o sapo estava morto, os índios tentaram identificá-lo. Viram, porém, que era difícil porque ele tinha as pernas e braços de gente, mas o corpo era muito gordo. Na dúvida, chamaram uma mulher velha. Como ela era quase cega, ela apalpou todo o corpo do sapo para finalmente dizer: isto não é outra coisa senão o pri-ti (o sapo). Ele é muito perigoso porque mata gente”.

Comentários do contador: o sapo é muito venenoso e se um cachorro o morde ele morre logo. Mas o sapo tem as mãos e as pernas iguais às de um humano e, além do mais, ele tinha uma borduna, igual à dos índios. Mas a cabeça e o corpo são diferentes – são gordos. “O sapo não tem medo da gente, embora seja muito feio. É o oposto do macaco, que se parece com índio, mas tem um jeito contrário ao nosso.”

O que fazer com essa história? Qual o seu significado?

Essas questões foram resgatadas pela obra magna de Claude Lévi-Strauss, as suas “mitológicas”. Mas elas são uma questão perene dos etnólogos que toparam com esses relatos enigmáticos transbordantes de limpidez e, no entanto, sem sentido; exceto, talvez, se forem levados às suas últimas consequências. Se forem tomados como testemunhos de instâncias nas quais por algum motivo percebemos as semelhanças entre sapos e humanos. Mesmo nesse nosso mundo digitalmente enredado, sabemos que sapos espertos podem nos confundir.

Num outro plano, essa história pode ser aproximada a um filme musical, a um conto de Kafka, Machado ou Kundera bem como aos desenhos de Disney, se bem que, nesse caso, os “bichos” são americanos e como tal se comportam. É sabido que o Pato Donald serviu na marinha e que Mickey, o rato, foi fuzileiro naval e é membro do Partido Republicano. O extraordinário sucesso de Harry Potter revela uma nostalgia de narrativas deste tipo?

Em terreno conhecido nosso, essas burlas entre sapos e humanos continuam sendo o forte dos elos grosseiros e desonestos entre empresas e o governo no nosso singular social-capitalismo. Ou você acha que John Davison Rockefeller – bilionário exemplar e magnata da indústria do petróleo – compraria a refinaria de Pasadena?

Tudo sugere que o governo pensa que estamos no tempo em que os animais falavam e os sapos não tinham veneno. 
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*ANTROPÓLOGO E PROFESSOR TITULAR DA PUC-RJ, AUTOR, ENTRE OUTROS, DE CARNAVAL, MALANDROS E HERÓIS (1979) E FÉ EM DEUS E PÉ NA TÁBUA: POR QUE O TRÂNSITO ENLOUQUECE NO BRASIL (2011). ESCREVE QUINZENALMENTE.
Fonte: ZH online, 11/05/2014

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