Hoje,
com a proliferação da comunicação informática, assiste-se a uma bulimia
editorial incessante, à qual corresponde, no entanto, uma anorexia dos
leitores. Porém, nas raízes da nossa própria história, está o livro,
especialmente a Escritura por excelência, a Bíblia, justamente, que, como se sabe, em grego, nada mais é do que o plural de biblíon, portanto, os Livros por excelência.
A análise é de Gianfranco Ravasi, cardeal presidente do Pontifício Conselho para a Cultura, em artigo publicado no jornal Il Sole 24 Ore, 05-05-2014. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o artigo.
"Já se podem dizer, na verdade, ainda mais na Itália,
que são mais numerosos os escritores do que os leitores, já que grande
parte dos escritores não leem, e leem menos do que escreve." Se não
fosse pelo estilo, ninguém imaginaria que essas frases trazem a data de 5
de fevereiro de 1828: naquele dia, era Giacomo Leopardi que anotava essa consideração amarga no seu Zibaldone.
Hoje, mais ainda, com a proliferação da comunicação informática,
assiste-se a uma bulimia editorial incessante, à qual corresponde, no
entanto, uma anorexia dos leitores. Porém, nas raízes da nossa própria
história, está o livro, especialmente a Escritura por excelência, a Bíblia, justamente, que, como se sabe, em grego, nada mais é do que o plural de biblíon, portanto, os Livros por excelência.
Paralelamente, a tradição hebraica, para definir os textos sagrados, usou o termo miqra', ou seja, "a leitura" por excelência (e a mesma raiz lexical está na base da palavra Qur'an, "Alcorão").
Apesar daquela que mencionamos acima, o livro continua sendo um farol
da cultura e da sociedade, e o próprio sucesso extraordinário do Salão Internacional do Livro de Turim, como o de outras feiras internacionais, começando pela já clássica de Frankfurt, são a confirmação indubitável disso.
Certamente, do sílex primordial até hoje, as palavras se confiam ao silício da biblioteca informática e, como em um "tapis roulant",
continua correndo o fluxo livreiro, feito de poucas estrelas fixas, de
muitos meteoros transitórios e de uma imensa multidão de textos
"invisíveis", por serem lido por pouquíssimas pessoas e até mesmo por
nenhuma. Por outro lado, ressoa sempre ameaçador, mas verdadeiro, o lema
presente nos Ensaios de Bacon: "Alguns livros devem ser provados, outros devem ser engolidos, e poucos devem ser mastigados e digeridos".
Queremos agora, de modo totalmente essencial e até
"impressionístico", remontar à matriz primigênia, à célula germinal do
livro, ou seja, a palavra, radical e misteriosa expressão da nossa
humanidade e da nossa comunhão dialógica interpessoal. Faremos isso
recorrendo ao "grande código" da Bíblia, que é a plataforma do patrimônio do conhecimento ocidental.
Acima de tudo, lembremos que, na Bíblia, o Deus
criador é representado na ópera não através de um ato "fatigante", ou
através de uma luta com o nada, como acontece em algumas cosmologias do
antigo Oriente Próximo, mas simplesmente com a palavra "Deus disse: 'Que
exista a luz!' E a luz começou a existir" (Gênesis 1, 3).
Estamos na presença de uma palavra que cria, tornada ainda mais admirável no Novo Testamento, no prólogo do Evangelho de João:
"No princípio era o Verbo... Ele estava no princípio junto de Deus.
Tudo foi feito por ele, e sem ele nada foi feito" (1, 1-3).
O próprio Moisés, quando teve que representar a experiência do Sinai,
usou uma frase muito significativa: "O Senhor falou a vocês do meio do
fogo. Vocês ouviram o som das palavras, mas não viram nenhuma forma:
ouvia-se apenas uma voz" (Deuteronômio 4, 12). Por esse motivo, não se
deve fixar o olhar no bezerro de ouro, ídolo esculpido por mãos humanas.
A primeira grande beleza habita na palavra: "Não faça para você ídolos,
nenhuma representação daquilo que existe no céu e na terra, ou nas
águas que estão debaixo da terra" (Êxodo 20, 4).
Temos à disposição, portanto, um instrumento fundamental, a
linguagem, que nos nossos dias estamos deixando degenerar: prova disso é
a comunicação barbarizada, vulgarizada, tão simplificada e abstrata a
ponto de ser reduzida simplesmente a repetições de estereótipos, como
atesta o léxico típico dos celulares.
Desse modo, perdemos uma dimensão fundamental da beleza, não só
pessoal, mas também da nossa grande cultura ocidental. Trata-se de uma
deterioração imparável, que lentamente mudou até mesmo o modo de dizer
Deus.
A esse propósito, pensamos em uma certa teologia que, a partir do século XVIII, ou seja, do Iluminismo, varreu toda a beleza da palavra e dos símbolos contidos na Bíblia.
A tese então dominante era que o pensamento puro devia dispersar, como
vento cristalino, a névoa dos símbolos, dos mitos e das imagens, para
dar espaço apenas para as ideias.
Uma primeira tentativa foi feita já no século XVII por um filósofo francês, Nicolas de Malebranche,
que cunhara uma frase verdadeiramente curiosa na sua paradoxalidade: "A
imaginação é a louca do apartamento", pretendendo dizer que, na casa da
nossa mente, residia um elemento louco, a imaginação. Consequentemente,
foi espontânea a tentativa de falar de Deus usando apenas teses
abstratas, o máximo possível "puras", isto é, distantes da riqueza das
imagens confiadas pela Bíblia à palavra e à força dos símbolos.
O grande código de cultura ocidental, isto é, a Sagrada Escritura,
ao invés, criou com as suas palavras um patrimônio iconográfico
extraordinário para a representação de Deus, embora a tradição original
hebraica – como se disse – sempre proibira qualquer representação
pictórica ou escultural dele. Captava-se, assim, a importância de
considerar a palavra como um meio epifânico, revelador da beleza divina,
capaz de gerar a imensa produção artística sucessiva ligada
precisamente à palavra bíblica, aos seus símbolos, às suas narrações,
aos seus personagens, aos seus temas.
Propomos agora um exemplo luminoso para celebrar a palavra como fonte de beleza e lugar teofânico.
Referimo-nos à palavra de Cristo e à sua predileção
pela linguagem figurada. A beleza do seu relato consegue conquistar
literalmente o público e não se assemelha àquela interminável série de
pregações dirigidos ao longo dos séculos a toda a humanidade, que, às
vezes, mereceram o julgamento afiado, mas nem sempre injustificado, de Voltaire: "A eloquência sagrada das pregações é como a espada de Carlos Magno, longa e chata", e Montesquieu acrescentava que "os pregadores que não sabem dar em profundidade dão em comprimento". Cristo, em vez, se expressa de um modo diametralmente oposto.
De fato, as suas 35 parábolas – que, ampliadas aos símbolos e às
metáforas, chegam a 72 – envolvem os nossos olhos e os nossos ouvidos e a
mente. A mensagem é comunicada através de uma experiência global, de
modo que o olhar consegue perceber o que as palavras dizem, porque o seu
discurso procede de baixo, da concretude da vida cotidiana dos seus
ouvintes e não de um vago horizonte intelectual.
As suas parábolas falam das sementes, dos peixes e da mulher que
perdeu uma moeda, das casas e dos porteiros da noite, dos filhos
difíceis, dos juízes, dos comerciantes e de tudo o que acontece na
existência comum, transfigurando-a e orientando-a para o tema que ele
quer anunciar, o do Reino de Deus.
É significativa uma cena do Evangelho de João (7, 44-46). Um dia – ainda estamos no início da pregação de Cristo
–, os chefes dos sacerdotes dão a ordem de prender Jesus. Os guardas
vão levá-lo para a frente dos sumos sacerdotes, mas voltam de mãos
vazias. Eles são questionados por que não conseguiram capturá-lo. A
resposta dos soldados, na candura desarmante das pessoas simples, revela
a força criativa e estética da palavra de Cristo. "Ninguém – dizem –
falou como esse homem fala".
Idealmente, imaginamos as suas mãos caídas para os lados, incapazes
de apertar as correntes em torno dos pulsos e dos pés de Jesus: a
palavra autêntica não pode ser acorrentada.
Não é por nada que, quando o Fausto de Goethe terá que traduzir ao alemão esse incipit extraordinário, supracitado, do prólogo joaniano, ao Logos-Palavra ele não conferirá apenas o óbvio Wort, mas desenvolverá plenamente a sua autêntica semântica com Sinn, "significado", Kraft, "poder", Tat, "ato".
No hebraico bíblico, dabar, "palavra", também significa "ato, fato, evento", em um deslizamento dinâmico que Emily Dickinson
expressará de modo fulgurante: "Uma palavra está morta / quando é dita:
/ dizem alguns. / Eu digo / que só então ela começa a viver".
Sim, "a palavra, saibam-no, é um ser vivo", defendia Victor Hugo nas suas Contemplações. E é por isso que o livro, se conserva palavras vivas, também é uma fonte de vida. Lembrava um grande pensador como Romano Guardini no seu Elogio do livro, evocando uma batalha de resultado desesperado na última Guerra Mundial: "O capelão, sentindo que não tinha nada a dizer de aceitável naquela hora, tirou do bolso o próprio Novo Testamento, rasgou as páginas e as deu uma para cada soldado".
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Fonte: IHU online, 13/05/2014
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