Marcelo Leite*
Como algo que põe tantos resultados experimentais sob suspeita pode ter sido ignorado por tanto tempo?
Três décadas de jornalismo sobre ciência não são suficientes para preparar ninguém para o achado descrito mais abaixo.
Eis um campo em que as novidades não param de surgir, resultados
contradizem uns aos outros, paradigmas são derrubados, predições
contraintuitivas se confirmam. Mas nada se compara à maluquice do que
Jeffrey Mogil descobriu.
"Cheiro de macho pode comprometer pesquisa biomédica", prometia o título
da reportagem de David Grimm no site da revista "Science". Não dava
para não ler.
O leitor poderia imaginar mais umas formulação capciosa para estudos sem
grande importância. Criação de camundongos machos no mesmo biotério que
fornece fêmeas para pesquisa sobre ovulação, talvez? Era bem mais que
isso, porém, revela o artigo científico de Mogil no periódico "Nature
Methods" (doi:10.1038/nmeth.2935).
O neurocientista Mogil estuda a dor há um quarto de século, na
Universidade McGill (Canadá). Um teste na área implica injetar
substância irritante nas patas de camundongos e registrar quantas
caretas de dor eles fazem num certo intervalo. Meio cruel, vá lá, mas
útil.
Só que alguns experimentos não funcionavam direito. O bicho tomava a
injeção, e não fazia muitas caretas. O pessoal de Mogil começou a achar
que havia algo errado com o composto inflamatório. Após testes,
verificou-se que não era o caso.
Os 25 anos de bancada já haviam instilado em Mogil a suspeita de que
cobaias reagem de modos diferentes à dor, conforme o pesquisador que as
manuseia. Decidiu bolar uma experiência para investigar isso.
Pediu a vários assistentes que fizessem a injeção nos roedores e depois
se sentassem ao lado, lendo um livro. As caretas dos camundongos foram
registradas em vídeo e depois contadas. Os resultados se mostraram
equívocos, conta Grimm: alguns animais se contorciam, outros não
pareciam estar nem aí.
Mogil teve então um lampejo: reprocessou os dados separando os bichos em
dois grupos, os que tinham recebido injeções de pesquisadores do sexo
masculino e os que tiveram o mesmo tratamento pelas mãos de mulheres.
Bingo. Verificou que o primeiro time de camundongos parecia sentir menos
dor (36% menos contorções da face).
Faltava descobrir se os roedores estavam reagindo à figura humana de
macho ou fêmea, ou a seus cheiros distintivos, como parecia mais
provável num animal de outra espécie. O chefe pediu então a seus
assistentes que repetissem o experimento, mas sem permanecer na sala; em
lugar disso, deixavam ao lado da gaiola uma camiseta usada.
Os resultados se repetiram. Provou-se que era o cheiro dos machos
humanos a fonte da diminuição nas manifestações de dor. Deixar duas
camisetas, uma de homem e outra de mulher, anulava o efeito.
Testes realizados depois mostraram que não era só uma questão de
demonstrar dor, mas sim de senti-la ""mais, ou menos. Na presença de
machos humanos, os camundongos secretam mais hormônios de estresse, o
que abafa a sensação da dor.
É impressionante que um macho seja tão primordialmente ameaçador. Mesmo
num jaleco branco, ele secreta odores captados até por camundongos. E é
mais impressionante ainda que um efeito desses, capaz de lançar suspeita
sobre inúmeros experimentos, tenha passado despercebido por tanto
tempo.
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* Jornalista da FolhaFonte: Folha online, 18/05/2014
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