domingo, 18 de maio de 2014

Viés sexista na ciência

Marcelo Leite*
 
 Como algo que põe tantos resultados experimentais sob suspeita pode ter sido ignorado por tanto tempo? 

Três décadas de jornalismo sobre ciência não são suficientes para preparar ninguém para o achado descrito mais abaixo. 

Eis um campo em que as novidades não param de surgir, resultados contradizem uns aos outros, paradigmas são derrubados, predições contraintuitivas se confirmam. Mas nada se compara à maluquice do que Jeffrey Mogil descobriu. 

"Cheiro de macho pode comprometer pesquisa biomédica", prometia o título da reportagem de David Grimm no site da revista "Science". Não dava para não ler. 

O leitor poderia imaginar mais umas formulação capciosa para estudos sem grande importância. Criação de camundongos machos no mesmo biotério que fornece fêmeas para pesquisa sobre ovulação, talvez? Era bem mais que isso, porém, revela o artigo científico de Mogil no periódico "Nature Methods" (doi:10.1038/nmeth.2935). 

O neurocientista Mogil estuda a dor há um quarto de século, na Universidade McGill (Canadá). Um teste na área implica injetar substância irritante nas patas de camundongos e registrar quantas caretas de dor eles fazem num certo intervalo. Meio cruel, vá lá, mas útil. 

Só que alguns experimentos não funcionavam direito. O bicho tomava a injeção, e não fazia muitas caretas. O pessoal de Mogil começou a achar que havia algo errado com o composto inflamatório. Após testes, verificou-se que não era o caso. 

Os 25 anos de bancada já haviam instilado em Mogil a suspeita de que cobaias reagem de modos diferentes à dor, conforme o pesquisador que as manuseia. Decidiu bolar uma experiência para investigar isso. 

Pediu a vários assistentes que fizessem a injeção nos roedores e depois se sentassem ao lado, lendo um livro. As caretas dos camundongos foram registradas em vídeo e depois contadas. Os resultados se mostraram equívocos, conta Grimm: alguns animais se contorciam, outros não pareciam estar nem aí. 

Mogil teve então um lampejo: reprocessou os dados separando os bichos em dois grupos, os que tinham recebido injeções de pesquisadores do sexo masculino e os que tiveram o mesmo tratamento pelas mãos de mulheres. Bingo. Verificou que o primeiro time de camundongos parecia sentir menos dor (36% menos contorções da face). 

Faltava descobrir se os roedores estavam reagindo à figura humana de macho ou fêmea, ou a seus cheiros distintivos, como parecia mais provável num animal de outra espécie. O chefe pediu então a seus assistentes que repetissem o experimento, mas sem permanecer na sala; em lugar disso, deixavam ao lado da gaiola uma camiseta usada. 

Os resultados se repetiram. Provou-se que era o cheiro dos machos humanos a fonte da diminuição nas manifestações de dor. Deixar duas camisetas, uma de homem e outra de mulher, anulava o efeito.
Testes realizados depois mostraram que não era só uma questão de demonstrar dor, mas sim de senti-la ""mais, ou menos. Na presença de machos humanos, os camundongos secretam mais hormônios de estresse, o que abafa a sensação da dor. 

É impressionante que um macho seja tão primordialmente ameaçador. Mesmo num jaleco branco, ele secreta odores captados até por camundongos. E é mais impressionante ainda que um efeito desses, capaz de lançar suspeita sobre inúmeros experimentos, tenha passado despercebido por tanto tempo. 
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* Jornalista da Folha
Fonte: Folha online, 18/05/2014
imagem da Internet

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