O que perdemos ao abrir mão das cartas?
MARCELO COELHO
RESUMO
Substituídas, ainda que de forma incompleta, pelo e-mail, as cartas
escasseiam. Livros recentes contam a história da correspondência em
papel e debatem suas peculiaridades, como a de traçar retratos vívidos
de seus autores, a exemplo do Van Gogh que surge de "Cartas a Theo", que
terá nova edição brasileira.
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Alguns anos atrás, a moda era discutir o "fim" de qualquer coisa: o fim
do Estado-nação (Jean Guéhenno), o fim do predomínio americano (Fareed
Zakaria), o fim da história (Francis Fukuyama), o fim dos livros
(Umberto Eco, Jane Yellowlees Douglas) e até mesmo o fim das colmeias de
abelhas (Rowan Jacobsen).
O momento talvez seja mais propício para livros propondo o contrário: a
volta do vinil, a volta da rivalidade russo-americana e mesmo a volta da
fritura na manteiga --uma vez que, segundo pesquisa recente da revista
"Annals of Internal Medicine", não há prova de que gorduras saturadas
façam mesmo mal ao coração.
Ainda assim, parece bastante seguro afirmar que acabou o tempo das
cartas pessoais --aquelas manuscritas, com selo e envelope. É possível
que, nos últimos dez anos, eu não tenha recebido mais de cinco, e
escrito ainda menos do que isso. O e-mail eliminou inapelavelmente essa
forma de comunicação, sem, no entanto, substituí-la por completo.
Há quem preveja, aliás, o fim do e-mail também. Enquanto isso não
acontece, o sistema ajuda muito a combinar compromissos, trocar
informações rápidas e enviar textos de trabalho; não funciona tanto,
imagino, para as ocasiões mais importantes da vida.
Declarações de amor, conselhos paternais, enunciados de intenção
artística ou existencial sem dúvida exigem outro tipo de preparo
psicológico --e receber um envelope selado em casa sempre despertou
emoções que nenhuma tela do Outlook pode reproduzir.
Sem se dedicar a exercícios de futurologia, três livros recentes
celebram a beleza, a variedade e antiguidade da comunicação postal.
O ensaísta inglês Simon Garfield assina o melhor deles, "To the Letter -
A Journey through a Vanishing World" [Canongate, e-book, R$ 35,18]. Do
jornalista John O'Connell, colaborador do "Guardian" e do "Times", vem
"For the Love of Letters- The Joy of Slow Communication" [Short Books,
e-book, R$ 22,88]. O mais boboca é "Kind Regards ""The Lost Art of
Letter-Writing" [Michael O'Mara Books, e-book, R$ 22,21], de Liz
Williams.
O "amor às cartas" do leitor brasileiro se vê recompensado, enquanto
isso, com uma nova edição das cartas de Vincent van Gogh (1853-90) pela
editora L&PM, prevista para o segundo semestre.
Além das cartas do pintor holandês a seu irmão Theo, já publicadas
muitas vezes, o volume trará também as que ele recebeu de volta, numa
das mais famosas demonstrações de dedicação fraterna e sustento material
de que se tem notícia na história da arte.
Vem junto a importante correspondência de Van Gogh com um pintor mais
moço, Émile Bernard (1868-1941), além de notas, glossário, cronologia e a
biografia de Vincent escrita pela mulher de Theo, Johanna van
Gogh-Bonger.
RUDEZA
É comum que, lendo as cartas de algum artista admirável, nossa admiração
por ele diminua um bocado. As do escritor Gustave Flaubert (1821-80),
que perfazem cinco volumes em papel-bíblia na coleção da Pléiade, podem
ser incomparáveis no que expressam de autoexigência artística e de
espírito crítico, mas não deixam de incomodar pela frequente rudeza de
expressões e sentimentos.
No caso de Van Gogh, ainda que o pintor holandês tenha sido vítima de
perigosos surtos de violência psicótica no final da vida, a impressão
que deixam suas cartas é a de alguém próximo da santidade.
"Neste inverno", escreve ele a Theo em abril de 1882, "encontrei uma
mulher grávida, que tinha sido abandonada pelo pai da criança que ela
estava esperando". "Uma mulher grávida que, no inverno, vagava pelas
ruas, que devia ganhar seu pão você bem sabe como." Van Gogh conta que a
levou para casa e a tomou como modelo pelo resto da estação.
"Eu a fiz tomar banhos, dei-lhe fortificantes tanto quanto pude, e ela
ficou bem mais saudável." Passaram a morar juntos --sendo que, como
sempre, Van Gogh não tinha um tostão além do que Theo lhe dava. "Esta
mulher agora está ligada a mim como uma pomba domesticada."
Van Gogh imagina a resposta que receberá do irmão. "Vincent, você vai
passar por momentos péssimos e preocupações tremendas." Profecia que, de
resto, iria se cumprir. Mas naquele momento o pintor não se importa.
"Sei disso, você tem razão, mas, meu caro, eu estaria ainda pior se, bem
no fundo de mim mesmo, eu ficasse com a sensação de ter perfidamente
abandonado uma mulher que encontrei no inverno, grávida e doente, e a
lançado de volta às cruéis pedras do calçamento mais uma vez." (Uso
neste trecho tradução minha da edição inglesa das cartas para a Penguin
Classics, já que nem todas as missivas constam da edição brasileira, que
faz outra seleção do material, sempre riquíssimo, deixado pelo pintor.)
GENEROSIDADE
A generosidade de Vincent van Gogh, que o levara a empreender uma
carreira como pregador leigo entre os mineiros miseráveis da região
carvoeira de Borinage, no oeste da Bélgica, mantém-se mesmo depois dessa
fase ultrarreligiosa de finais dos anos 1870.
É difícil, no seu caso, separar a produção estética do que nasce de uma
particular conformação emocional. Não para dizer, como o filósofo e
psiquiatra Karl Jaspers (1883-1969) em seu estudo sobre as relações
entre loucura e arte na pintura de Van Gogh e na dramaturgia de
Strindberg, que a última fase de desequilíbrio psíquico do gênio
holandês se refletia num enfraquecimento da qualidade de seus quadros,
mais mecânicos e maneiristas, segundo Jaspers.
A relação entre arte e psicologia, ou, melhor dizendo, entre pintura e
"alma", se expressa nas palavras do próprio Van Gogh. Apesar de próximo
da estética dos impressionistas e pós-impressionistas, o holandês tinha
afinidades maiores com a pintura de românticos como Eugène Delacroix
(1798-1863) e realistas como Jean-François Millet (1814-75). No
primeiro, ele encontrava a possibilidade de usar a cor como meio de
transmitir "conteúdos" expressivos; em Millet, a representação
evangélica da vida do trabalhador do campo.
Leitor de Dickens e Tolstói, Van Gogh está sempre buscando a proximidade
com os mais pobres. "Cristo é o maior artista de todos", diria --e os
atormentados ciprestes que ele pintou no fim da vida eram para ser, em
sua concepção, como as árvores do Gólgota.
Um sofrimento recorrente nas cartas do tão célebre pintor de paisagens e
girassóis é a falta de modelos vivos, que o permitissem retratar não só
a natureza --que ele vê sempre em estado de germinação, movimento e
desejo-- mas também o ser humano.
Seja como for, suas cartas funcionam como uma segunda obra, além das
realizações pictóricas, nas quais ele mostra uma alma por inteiro. Na
esmagadora maioria das missivas, o que vemos é uma pessoa fervorosa,
"pintando como uma locomotiva", sempre descontente com seu trabalho, mas
sem nenhum ingrediente de loucura mais notável. Depois de uma juventude
desorientada, e de vários desentendimentos com a família, Van Gogh sabe
o que quer, o que procura e entrega-se a isso com energia e constância.
Muita gente menos louca do que ele deveria invejá-lo nesse aspecto.
TRATADO
As cartas de Vincent van Gogh não são citadas por Simon Garfield no seu
divertido e emocionante "tratado" sobre a comunicação pessoal escrita.
Mas outro caso de arte, loucura e suicídio --o da poeta americana Sylvia
Plath (1932-63)-- ganha destaque em "To The Letter".
Um dos capítulos do livro é dedicado à correspondência do viúvo de
Plath, o também poeta Ted Hughes (1930-98). Uma coletânea das cartas do
autor britânico foi publicada em 2007, e Simon Garfield transcreve um
trecho do que Hughes escreveu para a mãe de Plath, um mês após o
suicídio:
"Cara Aurelia, foi impossível para mim escrever-lhe antes. Nunca vou
superar o choque e esse nem é particularmente um desejo meu. Vi as
cartas que Sylvia escreveu para os meus pais e imagino que ela tenha
escrito outras parecidas, ou piores, a você."
Hughes continua: "Nós estávamos totalmente cegos, nós dois estávamos
desesperados, fomos estúpidos e orgulhosos --e o orgulho nos fez
tortuosos, ela mais ainda. Sei que Sylvia era constituída de forma a
impingir terríveis punições às pessoas a quem mais amava, mas todo mundo
é um pouco assim, e era necessário apenas um pouco de inteligência da
minha parte para lidar com isso."
Ele conclui: "Não quero ser perdoado nunca. Não quero dizer com isso que
vou me tornar um altar público de lamento e de remorso; o mais cedo
possível vou me transformar no oposto disso. Mas se houver uma
eternidade, estarei nela em danação".
Durante o resto da vida, Hughes recusou-se a alimentar a indústria de
especulações em torno de sua responsabilidade pelo suicídio de Sylvia
Plath. Só em 1998 ele publicaria um livro de poemas --cujo título,
"Birthday Letters", evoca a ideia de correspondência-- escritos ao longo
dos 25 anos transcorridos desde o suicídio dela.
Tendo morrido nesse mesmo 1998, Ted Hughes pode ser considerado um dos
últimos escritores a nunca ter encostado as mãos num computador, e suas
cartas servem como um testemunho pessoal que, sem dúvida, e-mail nenhum é
capaz de oferecer.
BABILÔNIA
A história começa muitos séculos antes, obviamente. Em "Kind Regards",
Liz Williams informa que o rei Hamurabi, da Babilônia, foi dos primeiros
a organizar um "sistema postal", por volta de 1750 antes de Cristo.
Como prevaleceria até a invenção do telégrafo, distribuíam-se "postos",
ou "estações", ao longo das estradas, nos quais mensageiros trocavam de
cavalo para prosseguir viagem.
No século 13, Kublai Khan, neto de Gêngis Khan, teria espalhado 1.400
desses postos pelo território chinês, separados por uma distância de no
máximo 60 quilômetros. Mecanismos desse tipo estavam reservados,
entretanto, para a correspondência oficial e militar.
Na Inglaterra, foi só em 1657 que se instituiu, por decreto do
republicano Oliver Cromwell, um serviço geral de correios aberto ao
público. Daniel Defoe, no começo do século seguinte, orgulhava-se de que
em Londres, diferentemente das outras grandes cidades do mundo, era
possível mandar e receber cartas no mesmo dia, em "quatro, cinco, seis
ou oito horários diferentes". Cerca de 1 milhão de cartas circulavam
pela Inglaterra em 1703, conta Simon Garfield.
Quase dois séculos se passariam, entretanto, até que Oscar Wilde pudesse
se dar ao luxo de simplesmente jogar uma carta pela janela --confiando
que o primeiro passante que a visse na calçada teria a civilidade de
colocá-la na caixa de correio mais próxima.
Para isso, os selos tiveram de ser inventados (em 1840, por Rowland
Hill). O Brasil foi o segundo país do mundo a adotá-los, em 1843.
Também as caixas de correio tiveram de ser instituídas. Embora desde a
Renascença existissem recipientes postais nas igrejas para que os
cidadãos se denunciassem mutuamente, um mecanismo mais confiável só veio
a ser implantado em Londres em abril de 1855. O responsável pela
inovação teria sido (a autoria é contestada) um romancista vitoriano de
peso, Anthony Trollope (1815-82) --o prolífico escritor foi também
funcionário dos correios por 33 anos.
As curiosidades em torno do assunto são o forte, como se vê, de "Kind
Regards". O problema do livro de Williams é o seu ar de "manual do
escoteiro-mirim". Surgem coisas como uma tabela de como se diz "carta"
em diversas línguas do mundo ("dopis", em tcheco, "barua", em suaíli),
além de considerações do tipo "por que você deveria escrever cartas": a
resposta, segundo a autora, está em que "bem escrita ou não, a carta
proporciona uma conexão humana".
Trivialidades desse tipo não ocupam o livro de Simon Garfield. "To the
Letter" sabe alternar com maestria o fatual e o comovente, e talvez
nisso esteja o segredo das cartas realmente memoráveis.
Não faltam exemplos. Uma carta banalíssima --convidando para uma festa
de aniversário-- ganha força quando sabemos que foi escrita numa
tabuinha, milagrosamente preservada nas terras úmidas do norte da
Inglaterra, por Claudia Severa a Lepidina, por volta do ano 100 d.C. "O
dia será muito mais prazeroso com a sua vinda", diz a aniversariante, no
que provavelmente é um dos primeiros exemplares de um texto manuscrito
por uma mulher.
Outro manuscrito impressionante, mas provavelmente forjado, é a carta de
Ana Bolena a Henrique 8º, protestando sua inocência ao marido, pouco
antes de ser decapitada na Torre de Londres. Um pouco menos deprimente é
a correspondência entre Napoleão e Josefina de Beauharnais, que vai da
paixão mais obsessiva às corteses tratativas de separação.
Ilustrações (que, na versão física do livro, se veem um pouco
prejudicadas pela qualidade do papel) aparecem com regularidade em "To
The Letter". Simon Garfield é um entusiasta dos leilões de manuscritos, e
agrega bastante suspense ao livro contando de que modo alguns tesouros
epistolográficos vieram a público.
Um desses tesouros é a correspondência da família Paston, que se estende
por várias gerações durante o século 15. "Estou comendo como um
cavalo", diz um rapaz da família em 1469; "estou sem cartas de você
desde o Natal, e meu coração não ficará sossegado se não receber
notícias", diz Margaret Paston ao marido.
PRESENÇA
As notícias chegaram até nós. Mais do que a qualidade literária,
certamente notável nos grandes autores de cartas como Madame de Sévigné
(1626-96), Voltaire (1694-1778) ou William Cowper (1731-1800), o que
chama a atenção nessas correspondências preservadas é algo muito
simples, e inimitável: a presença da vida.
Sobre William Cowper, uma boa e rápida introdução é oferecida por John
O'Connell, em "The Joy of Letters". O livro se divide nos diferentes
tipos de "alegria", ou contentamento, que as cartas são capazes de
produzir. Falando sobre "a alegria de coisa nenhuma", O'Connell dá
exemplos daquelas cartas em que nada de importante se comunica.
"Você quer ter notícias minhas", escreve Cowper a William Unwin, em
1780. "Essa é uma boa razão para eu escrever a você ""mas não tenho nada
a contar-- e essa é uma razão igualmente boa para eu não escrever a
você. Mas, se você tivesse desmontado do seu cavalo na nossa casa de
manhã, e no momento em que escrevo esta carta, às cinco da tarde,
tivesse tido a oportunidade de dizer para mim, sr. Cowper, o senhor nada
disse desde que eu entrei, está determinado a nunca mais falar comigo?,
seria uma péssima réplica se, ao atender a sua convocação, eu
mencionasse a falta de coisa importante como minha melhor e única
desculpa..."
E por aí ele vai, bordando o texto em torno de nada. Dos livros aqui
comentados, o de John O'Connell é, sem dúvida, o mais "literário", menos
interessado em descobertas históricas do que na graça, na eloquência,
no gênio dos grandes missivistas.
Já Simon Garfield, num livro mais extenso, dá atenção ao que, mesmo na
correspondência entre excelentes escritores, faz parte do cotidiano
trivial da humanidade, sem grandes diferenças ao longo dos séculos.
As mesmas queixas quanto à demora em responder, as mesmas desculpas por
não ter tido tempo, as mesmas preocupações com a saúde dos parentes, os
mesmos desejos de que tudo corra bem, a mesma perplexidade diante da
morte, os mesmos pedidos, ciúmes e promessas atravessam as linhas
escritas por Plínio, o Moço ("como é que você não apareceu para jantar
ontem?", pergunta ele a Septício Claro, por volta de 100 d.C) e Henry
Miller (1891-1980), lamentando que sua amada Anaïs Nin tenha saído para
jantar com a família em vez de ficar com ele.
Lugares-comuns, sem dúvida --mas que ganham calor e pulso a cada novo
contexto. Para quem conhece os extraordinários quadros em que Van Gogh
retratava apenas um par de sapatos velhos, a simplicidade do menor
testemunho de vida sempre há de se cobrir de um grande valor. Ainda mais
quando, num dia especialmente animado, Vincent se despede de Theo
anunciando que irá em seguida se dedicar a uma tarefa que estava adiando
há muito tempo: engraxar as próprias botinas.
Esse tipo de informação há de ser mais raro hoje em dia. Não apenas pela
brevidade das palavras de um e-mail, ou pela ausência de uma
materialidade que nos permita guardar (em caixas de sapato, por que
não?) documentos tão corriqueiros. É que o e-mail não prevê grande
intervalo entre a mensagem e a resposta nem a ociosidade da espera nem o
acúmulo de pequenos nadas que, uma vez reunidos, compõem as páginas das
melhores cartas.
Na questão da brevidade, entretanto, nem mesmo o Twitter rivaliza com a
troca de mensagens que se deu entre Victor Hugo (1802-85) e seu editor,
depois do lançamento do romance "Os Miseráveis". O escritor estava
ansioso para saber como andavam as vendas. Mandou uma carta curtíssima:
"?". A resposta veio no mesmo tom: "!".
É novamente Simon Garfield quem conta essa história. Seu "To the Letter"
merece o mesmo sinal gráfico ""ou, mais de acordo com os dias que
correm, uma boa "curtida" no Facebook.
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Fonte: Folha online, 11/05/2014
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