domingo, 11 de maio de 2014

O fim do mundo epistolar

O que perdemos ao abrir mão das cartas? 
MARCELO COELHO
 
 
 
RESUMO

Substituídas, ainda que de forma incompleta, pelo e-mail, as cartas escasseiam. Livros recentes contam a história da correspondência em papel e debatem suas peculiaridades, como a de traçar retratos vívidos de seus autores, a exemplo do Van Gogh que surge de "Cartas a Theo", que terá nova edição brasileira.
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Alguns anos atrás, a moda era discutir o "fim" de qualquer coisa: o fim do Estado-nação (Jean Guéhenno), o fim do predomínio americano (Fareed Zakaria), o fim da história (Francis Fukuyama), o fim dos livros (Umberto Eco, Jane Yellowlees Douglas) e até mesmo o fim das colmeias de abelhas (Rowan Jacobsen). 

O momento talvez seja mais propício para livros propondo o contrário: a volta do vinil, a volta da rivalidade russo-americana e mesmo a volta da fritura na manteiga --uma vez que, segundo pesquisa recente da revista "Annals of Internal Medicine", não há prova de que gorduras saturadas façam mesmo mal ao coração. 

Ainda assim, parece bastante seguro afirmar que acabou o tempo das cartas pessoais --aquelas manuscritas, com selo e envelope. É possível que, nos últimos dez anos, eu não tenha recebido mais de cinco, e escrito ainda menos do que isso. O e-mail eliminou inapelavelmente essa forma de comunicação, sem, no entanto, substituí-la por completo. 

Há quem preveja, aliás, o fim do e-mail também. Enquanto isso não acontece, o sistema ajuda muito a combinar compromissos, trocar informações rápidas e enviar textos de trabalho; não funciona tanto, imagino, para as ocasiões mais importantes da vida. 

Declarações de amor, conselhos paternais, enunciados de intenção artística ou existencial sem dúvida exigem outro tipo de preparo psicológico --e receber um envelope selado em casa sempre despertou emoções que nenhuma tela do Outlook pode reproduzir. 

Sem se dedicar a exercícios de futurologia, três livros recentes celebram a beleza, a variedade e antiguidade da comunicação postal. 

O ensaísta inglês Simon Garfield assina o melhor deles, "To the Letter - A Journey through a Vanishing World" [Canongate, e-book, R$ 35,18]. Do jornalista John O'Connell, colaborador do "Guardian" e do "Times", vem "For the Love of Letters- The Joy of Slow Communication" [Short Books, e-book, R$ 22,88]. O mais boboca é "Kind Regards ""The Lost Art of Letter-Writing" [Michael O'Mara Books, e-book, R$ 22,21], de Liz Williams. 

O "amor às cartas" do leitor brasileiro se vê recompensado, enquanto isso, com uma nova edição das cartas de Vincent van Gogh (1853-90) pela editora L&PM, prevista para o segundo semestre. 

Além das cartas do pintor holandês a seu irmão Theo, já publicadas muitas vezes, o volume trará também as que ele recebeu de volta, numa das mais famosas demonstrações de dedicação fraterna e sustento material de que se tem notícia na história da arte. 

Vem junto a importante correspondência de Van Gogh com um pintor mais moço, Émile Bernard (1868-1941), além de notas, glossário, cronologia e a biografia de Vincent escrita pela mulher de Theo, Johanna van Gogh-Bonger. 
 
RUDEZA

É comum que, lendo as cartas de algum artista admirável, nossa admiração por ele diminua um bocado. As do escritor Gustave Flaubert (1821-80), que perfazem cinco volumes em papel-bíblia na coleção da Pléiade, podem ser incomparáveis no que expressam de autoexigência artística e de espírito crítico, mas não deixam de incomodar pela frequente rudeza de expressões e sentimentos. 

No caso de Van Gogh, ainda que o pintor holandês tenha sido vítima de perigosos surtos de violência psicótica no final da vida, a impressão que deixam suas cartas é a de alguém próximo da santidade. 

"Neste inverno", escreve ele a Theo em abril de 1882, "encontrei uma mulher grávida, que tinha sido abandonada pelo pai da criança que ela estava esperando". "Uma mulher grávida que, no inverno, vagava pelas ruas, que devia ganhar seu pão você bem sabe como." Van Gogh conta que a levou para casa e a tomou como modelo pelo resto da estação. 

"Eu a fiz tomar banhos, dei-lhe fortificantes tanto quanto pude, e ela ficou bem mais saudável." Passaram a morar juntos --sendo que, como sempre, Van Gogh não tinha um tostão além do que Theo lhe dava. "Esta mulher agora está ligada a mim como uma pomba domesticada." 

Van Gogh imagina a resposta que receberá do irmão. "Vincent, você vai passar por momentos péssimos e preocupações tremendas." Profecia que, de resto, iria se cumprir. Mas naquele momento o pintor não se importa. 

"Sei disso, você tem razão, mas, meu caro, eu estaria ainda pior se, bem no fundo de mim mesmo, eu ficasse com a sensação de ter perfidamente abandonado uma mulher que encontrei no inverno, grávida e doente, e a lançado de volta às cruéis pedras do calçamento mais uma vez." (Uso neste trecho tradução minha da edição inglesa das cartas para a Penguin Classics, já que nem todas as missivas constam da edição brasileira, que faz outra seleção do material, sempre riquíssimo, deixado pelo pintor.) 

GENEROSIDADE

A generosidade de Vincent van Gogh, que o levara a empreender uma carreira como pregador leigo entre os mineiros miseráveis da região carvoeira de Borinage, no oeste da Bélgica, mantém-se mesmo depois dessa fase ultrarreligiosa de finais dos anos 1870. 

É difícil, no seu caso, separar a produção estética do que nasce de uma particular conformação emocional. Não para dizer, como o filósofo e psiquiatra Karl Jaspers (1883-1969) em seu estudo sobre as relações entre loucura e arte na pintura de Van Gogh e na dramaturgia de Strindberg, que a última fase de desequilíbrio psíquico do gênio holandês se refletia num enfraquecimento da qualidade de seus quadros, mais mecânicos e maneiristas, segundo Jaspers. 

A relação entre arte e psicologia, ou, melhor dizendo, entre pintura e "alma", se expressa nas palavras do próprio Van Gogh. Apesar de próximo da estética dos impressionistas e pós-impressionistas, o holandês tinha afinidades maiores com a pintura de românticos como Eugène Delacroix (1798-1863) e realistas como Jean-François Millet (1814-75). No primeiro, ele encontrava a possibilidade de usar a cor como meio de transmitir "conteúdos" expressivos; em Millet, a representação evangélica da vida do trabalhador do campo. 

Leitor de Dickens e Tolstói, Van Gogh está sempre buscando a proximidade com os mais pobres. "Cristo é o maior artista de todos", diria --e os atormentados ciprestes que ele pintou no fim da vida eram para ser, em sua concepção, como as árvores do Gólgota. 

Um sofrimento recorrente nas cartas do tão célebre pintor de paisagens e girassóis é a falta de modelos vivos, que o permitissem retratar não só a natureza --que ele vê sempre em estado de germinação, movimento e desejo-- mas também o ser humano. 

Seja como for, suas cartas funcionam como uma segunda obra, além das realizações pictóricas, nas quais ele mostra uma alma por inteiro. Na esmagadora maioria das missivas, o que vemos é uma pessoa fervorosa, "pintando como uma locomotiva", sempre descontente com seu trabalho, mas sem nenhum ingrediente de loucura mais notável. Depois de uma juventude desorientada, e de vários desentendimentos com a família, Van Gogh sabe o que quer, o que procura e entrega-se a isso com energia e constância. Muita gente menos louca do que ele deveria invejá-lo nesse aspecto. 

TRATADO

As cartas de Vincent van Gogh não são citadas por Simon Garfield no seu divertido e emocionante "tratado" sobre a comunicação pessoal escrita. Mas outro caso de arte, loucura e suicídio --o da poeta americana Sylvia Plath (1932-63)-- ganha destaque em "To The Letter". 

Um dos capítulos do livro é dedicado à correspondência do viúvo de Plath, o também poeta Ted Hughes (1930-98). Uma coletânea das cartas do autor britânico foi publicada em 2007, e Simon Garfield transcreve um trecho do que Hughes escreveu para a mãe de Plath, um mês após o suicídio:
"Cara Aurelia, foi impossível para mim escrever-lhe antes. Nunca vou superar o choque e esse nem é particularmente um desejo meu. Vi as cartas que Sylvia escreveu para os meus pais e imagino que ela tenha escrito outras parecidas, ou piores, a você." 

Hughes continua: "Nós estávamos totalmente cegos, nós dois estávamos desesperados, fomos estúpidos e orgulhosos --e o orgulho nos fez tortuosos, ela mais ainda. Sei que Sylvia era constituída de forma a impingir terríveis punições às pessoas a quem mais amava, mas todo mundo é um pouco assim, e era necessário apenas um pouco de inteligência da minha parte para lidar com isso." 

Ele conclui: "Não quero ser perdoado nunca. Não quero dizer com isso que vou me tornar um altar público de lamento e de remorso; o mais cedo possível vou me transformar no oposto disso. Mas se houver uma eternidade, estarei nela em danação". 

Durante o resto da vida, Hughes recusou-se a alimentar a indústria de especulações em torno de sua responsabilidade pelo suicídio de Sylvia Plath. Só em 1998 ele publicaria um livro de poemas --cujo título, "Birthday Letters", evoca a ideia de correspondência-- escritos ao longo dos 25 anos transcorridos desde o suicídio dela. 

Tendo morrido nesse mesmo 1998, Ted Hughes pode ser considerado um dos últimos escritores a nunca ter encostado as mãos num computador, e suas cartas servem como um testemunho pessoal que, sem dúvida, e-mail nenhum é capaz de oferecer. 

BABILÔNIA

A história começa muitos séculos antes, obviamente. Em "Kind Regards", Liz Williams informa que o rei Hamurabi, da Babilônia, foi dos primeiros a organizar um "sistema postal", por volta de 1750 antes de Cristo. Como prevaleceria até a invenção do telégrafo, distribuíam-se "postos", ou "estações", ao longo das estradas, nos quais mensageiros trocavam de cavalo para prosseguir viagem.
No século 13, Kublai Khan, neto de Gêngis Khan, teria espalhado 1.400 desses postos pelo território chinês, separados por uma distância de no máximo 60 quilômetros. Mecanismos desse tipo estavam reservados, entretanto, para a correspondência oficial e militar. 

Na Inglaterra, foi só em 1657 que se instituiu, por decreto do republicano Oliver Cromwell, um serviço geral de correios aberto ao público. Daniel Defoe, no começo do século seguinte, orgulhava-se de que em Londres, diferentemente das outras grandes cidades do mundo, era possível mandar e receber cartas no mesmo dia, em "quatro, cinco, seis ou oito horários diferentes". Cerca de 1 milhão de cartas circulavam pela Inglaterra em 1703, conta Simon Garfield. 

Quase dois séculos se passariam, entretanto, até que Oscar Wilde pudesse se dar ao luxo de simplesmente jogar uma carta pela janela --confiando que o primeiro passante que a visse na calçada teria a civilidade de colocá-la na caixa de correio mais próxima. 

Para isso, os selos tiveram de ser inventados (em 1840, por Rowland Hill). O Brasil foi o segundo país do mundo a adotá-los, em 1843. 

Também as caixas de correio tiveram de ser instituídas. Embora desde a Renascença existissem recipientes postais nas igrejas para que os cidadãos se denunciassem mutuamente, um mecanismo mais confiável só veio a ser implantado em Londres em abril de 1855. O responsável pela inovação teria sido (a autoria é contestada) um romancista vitoriano de peso, Anthony Trollope (1815-82) --o prolífico escritor foi também funcionário dos correios por 33 anos. 

As curiosidades em torno do assunto são o forte, como se vê, de "Kind Regards". O problema do livro de Williams é o seu ar de "manual do escoteiro-mirim". Surgem coisas como uma tabela de como se diz "carta" em diversas línguas do mundo ("dopis", em tcheco, "barua", em suaíli), além de considerações do tipo "por que você deveria escrever cartas": a resposta, segundo a autora, está em que "bem escrita ou não, a carta proporciona uma conexão humana". 

Trivialidades desse tipo não ocupam o livro de Simon Garfield. "To the Letter" sabe alternar com maestria o fatual e o comovente, e talvez nisso esteja o segredo das cartas realmente memoráveis. 

Não faltam exemplos. Uma carta banalíssima --convidando para uma festa de aniversário-- ganha força quando sabemos que foi escrita numa tabuinha, milagrosamente preservada nas terras úmidas do norte da Inglaterra, por Claudia Severa a Lepidina, por volta do ano 100 d.C. "O dia será muito mais prazeroso com a sua vinda", diz a aniversariante, no que provavelmente é um dos primeiros exemplares de um texto manuscrito por uma mulher. 

Outro manuscrito impressionante, mas provavelmente forjado, é a carta de Ana Bolena a Henrique 8º, protestando sua inocência ao marido, pouco antes de ser decapitada na Torre de Londres. Um pouco menos deprimente é a correspondência entre Napoleão e Josefina de Beauharnais, que vai da paixão mais obsessiva às corteses tratativas de separação. 

Ilustrações (que, na versão física do livro, se veem um pouco prejudicadas pela qualidade do papel) aparecem com regularidade em "To The Letter". Simon Garfield é um entusiasta dos leilões de manuscritos, e agrega bastante suspense ao livro contando de que modo alguns tesouros epistolográficos vieram a público. 

Um desses tesouros é a correspondência da família Paston, que se estende por várias gerações durante o século 15. "Estou comendo como um cavalo", diz um rapaz da família em 1469; "estou sem cartas de você desde o Natal, e meu coração não ficará sossegado se não receber notícias", diz Margaret Paston ao marido. 

PRESENÇA

As notícias chegaram até nós. Mais do que a qualidade literária, certamente notável nos grandes autores de cartas como Madame de Sévigné (1626-96), Voltaire (1694-1778) ou William Cowper (1731-1800), o que chama a atenção nessas correspondências preservadas é algo muito simples, e inimitável: a presença da vida. 

Sobre William Cowper, uma boa e rápida introdução é oferecida por John O'Connell, em "The Joy of Letters". O livro se divide nos diferentes tipos de "alegria", ou contentamento, que as cartas são capazes de produzir. Falando sobre "a alegria de coisa nenhuma", O'Connell dá exemplos daquelas cartas em que nada de importante se comunica. 

"Você quer ter notícias minhas", escreve Cowper a William Unwin, em 1780. "Essa é uma boa razão para eu escrever a você ""mas não tenho nada a contar-- e essa é uma razão igualmente boa para eu não escrever a você. Mas, se você tivesse desmontado do seu cavalo na nossa casa de manhã, e no momento em que escrevo esta carta, às cinco da tarde, tivesse tido a oportunidade de dizer para mim, sr. Cowper, o senhor nada disse desde que eu entrei, está determinado a nunca mais falar comigo?, seria uma péssima réplica se, ao atender a sua convocação, eu mencionasse a falta de coisa importante como minha melhor e única desculpa..." 

E por aí ele vai, bordando o texto em torno de nada. Dos livros aqui comentados, o de John O'Connell é, sem dúvida, o mais "literário", menos interessado em descobertas históricas do que na graça, na eloquência, no gênio dos grandes missivistas. 

Já Simon Garfield, num livro mais extenso, dá atenção ao que, mesmo na correspondência entre excelentes escritores, faz parte do cotidiano trivial da humanidade, sem grandes diferenças ao longo dos séculos. 

As mesmas queixas quanto à demora em responder, as mesmas desculpas por não ter tido tempo, as mesmas preocupações com a saúde dos parentes, os mesmos desejos de que tudo corra bem, a mesma perplexidade diante da morte, os mesmos pedidos, ciúmes e promessas atravessam as linhas escritas por Plínio, o Moço ("como é que você não apareceu para jantar ontem?", pergunta ele a Septício Claro, por volta de 100 d.C) e Henry Miller (1891-1980), lamentando que sua amada Anaïs Nin tenha saído para jantar com a família em vez de ficar com ele. 

Lugares-comuns, sem dúvida --mas que ganham calor e pulso a cada novo contexto. Para quem conhece os extraordinários quadros em que Van Gogh retratava apenas um par de sapatos velhos, a simplicidade do menor testemunho de vida sempre há de se cobrir de um grande valor. Ainda mais quando, num dia especialmente animado, Vincent se despede de Theo anunciando que irá em seguida se dedicar a uma tarefa que estava adiando há muito tempo: engraxar as próprias botinas. 

Esse tipo de informação há de ser mais raro hoje em dia. Não apenas pela brevidade das palavras de um e-mail, ou pela ausência de uma materialidade que nos permita guardar (em caixas de sapato, por que não?) documentos tão corriqueiros. É que o e-mail não prevê grande intervalo entre a mensagem e a resposta nem a ociosidade da espera nem o acúmulo de pequenos nadas que, uma vez reunidos, compõem as páginas das melhores cartas. 

Na questão da brevidade, entretanto, nem mesmo o Twitter rivaliza com a troca de mensagens que se deu entre Victor Hugo (1802-85) e seu editor, depois do lançamento do romance "Os Miseráveis". O escritor estava ansioso para saber como andavam as vendas. Mandou uma carta curtíssima: "?". A resposta veio no mesmo tom: "!". 

É novamente Simon Garfield quem conta essa história. Seu "To the Letter" merece o mesmo sinal gráfico ""ou, mais de acordo com os dias que correm, uma boa "curtida" no Facebook. 
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Fonte: Folha online, 11/05/2014
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