segunda-feira, 19 de maio de 2014

"O futuro é de velhos, gordos e inférteis"

Entrevista: Jean-François Bouvet

Jean-François Bouvet

Em um novo livro, o biólogo francês Jean-François Bouvet mostra que passamos por uma evolução inédita. Para ele, as transformações ambientais feitas pelo homem têm hoje mais influência em nossa biologia que a seleção natural. Nesta entrevista, ele rebate quem acredita que a ciência só nos trouxe progresso e explica como chegamos a esse ponto


Velho, gordo e infértil. Para o biólogo francês Jean-François Bouvet, esse é o retrato do ser humano atual — e do seu futuro. Em seu livro Mutants – à quoi ressemblerons-nous demain? (Mutantes – como seremos amanhã?, lançado em março e sem tradução em português), ele reúne uma série de dados de pesquisas feitas ao redor do mundo para mostrar que o homem passa por uma evolução inédita – que pode estar prejudicando seu bem-estar.

"Desde a Revolução Industrial, no início do século XIX, vivemos um processo em que o ambiente modificado pelo homem tem mais influência em sua evolução que a seleção natural. E essas mudanças são, geralmente, negativas", explica o cientista que, durante dez anos, desenvolveu pesquisas em neurobiologia na Universidade Claude Bernard, em Lyon, na França, e escreveu outros quatro livros, publicados na Europa e Estados Unidos.

Big bang químico — Para ele, a explosão de novas moléculas criadas pelo avanço da ciência e da indústria modificou permanentemente o sistema endócrino e hormonal dos seres humanos. Os efeitos de químicos como o do pesticida DDT, de antibióticos ou de substâncias presentes em nosso cotidiano, como o bisfenol A, os parabenos ou os ftalatos revolucionaram nossa biologia em uma escala jamais vista. O número de casos de obesidade dobrou desde os anos 1980, meninos e meninas ao redor do mundo entram na puberdade por volta dos 7 anos e, o que é mais grave, a concentração de espermatozoides no sêmen foi reduzida em 40% nos últimos 50 anos, em todo o planeta. Se o objetivo da evolução é selecionar os mais aptos a gerar descendência, esses indícios reunidos indicariam que ela está enfrentando problemas.

Pouco otimista em relação ao futuro da humanidade, Bouvet explica nesta entrevista o que seria uma evolução inédita, como serão os homens nos próximos anos e se promessas da medicina, como as células-tronco ou pesquisas genéticas, podem reverter esse processo.

Por que você afirma que o ser humano vive uma evolução jamais vista? Estamos cada vez mais gordos e menos férteis. É verdade que estamos também mais velhos – desde 1990, a expectativa de vida aumentou quatro anos na Europa, seis anos na África e oito anos na Ásia. No entanto, essa não é uma velhice saudável. O indicador que mede a expectativa de vida sem incapacidade [Disability Free Life Expectancy, em inglês, usado pela Comissão Europeia] permanece estável nos últimos dez anos. Ou seja, o aumento dos anos de vida significa uma sobrevida sem saúde. Na França, temos 25 novos casos de Alzheimer diagnosticados por hora: são 860 000 doentes e a previsão é de 2 milhões até 2020. Isso nunca nos aconteceu e não pode ser considerado um progresso. 

Mas esses homens não são os mais aptos ao mundo moderno, selecionados pela evolução? Pela primeira vez na história há outro fator mais importante que a seleção natural para a evolução: o ambiente modificado pelo homem. Até a Revolução Industrial não tínhamos a capacidade técnica de transformar quimicamente a natureza. Modificamos o ambiente que, por sua vez, devolve essas alterações, perturbando-nos com os químicos que inventamos e que agora agem de maneira deletéria sobre nós. Esse processo em que a natureza manda de volta o que fizemos a ela é o que chamo de retroevolução.

Muitos antropólogos e biólogos evolutivos defendem que mudanças ambientais têm forte impacto na seleção natural. No entanto, eles não costumam enxergar essa tendência como negativa. O que ela teria de tão ruim? Sou um homem da ciência e não escrevi um livro otimista. Há um fenômeno global em que o homem inventa novas moléculas e faz isso tão rapidamente que não há tempo para estudos sérios sobre seu impacto. Elas são logo colocadas no mercado e, só depois, percebemos que são perigosas. Estou falando de coisas como os pesticidas, o bisfenol A, os parabenos ou os ftalatos, que jogamos no ambiente sem parar. Uma pesquisa de 2012 com cerca de 4 000 americanos mostra que a porcentagem de obesos em uma população aumenta quando a taxa de bisfenol A cresce nos organismos. No país, mais de 95% dos adultos apresentam o químico na sua urina e um terço das mulheres e 30% dos homens são obesos. Em todo o mundo, a obesidade, relacionada a doenças crônicas como diabetes e hipertensão, dobrou desde os anos 1980. Não dá para ser muito otimista em um cenário como esse.

O uso de alguns desses químicos está sendo restringido no mundo. Isso não ajuda? Eles continuam onipresentes. O bisfenol A é uma substância utilizada em plásticos, para facilitar sua maleabilidade. E o DDT, proibido nos Estados Unidos em 1972, continua sendo usado em vários países para combater os mosquitos da malária — o que significa que ainda é muito empregado no planeta. Além disso, ele permanece no ambiente por até dez anos. Um estudo feito em 2005 pela Universidade Harvard, nos Estados Unidos, com mulheres da China — lugar onde o pesticida foi proibido em 1984 — mostrou que as que tiveram puberdade precoce eram as que tinham sido mais expostas ao químico. E a esfera sexual é uma das mais afetadas também pela poluição. Um estudo brasileiro, da Universidade de São Paulo, publicado no ano passado, mostrou que ratas submetidas a partículas finas de ar poluído tinham diversos problemas reprodutivos, com uma modificação substancial no ovário. Não somos ratos, mas não dá para imaginar que essas partículas sejam inofensivas.  

Os desreguladores endócrinos mais perigosos à saúde

Lista elaborada pela organização americana Environmental Working Group (EWG)

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Bisfenol A (BPA)

Essa substância está presente principalmente em embalagens de plástico feito de policarbonato e no revestimento interno de latas de alumínio, como as de refrigerante, por exemplo. Uma vez no organismo, o BPA imita a ação do estrogênio, um hormônio sexual feminino, interferindo diretamente no funcionamento de algumas glândulas endócrinas, podendo também aumentar ou diminuir a ação de vários hormônios. O bisfenol A vem sendo associado a alguns tipos de câncer, como o de mama, além de problemas de reprodução, obesidade, puberdade precoce e doenças cardíacas.
Como evitar: Preferir alimentos frescos a enlatados; evitar embalagens de plástico para alimentos e bebidas que tenham o símbolo ‘PC’, que significa policarbonato, ou cujo símbolo de reciclagem leve os números 3 ou 7, que indicam a presença do BPA.
É por isso que o senhor diz que vivemos em uma "Era-lixeira" e não no Antropoceno, como alguns cientistas pretendem chamar a época caracterizada pela ação determinante do homem no planeta? Decididamente mudamos de era e vivemos em um período em que o ser humano é absolutamente essencial para a evolução, porque ele modifica seu ambiente em uma velocidade jamais vista. As mudanças não são sentidas lentamente, ao longo de gerações, mas em poucos anos. Faço uma brincadeira com a "Era-lixeira" porque jogamos no planeta qualquer coisa, como em uma grande lata de lixo. Essa é uma maneira abertamente negativa de olhar para o impacto do homem no ambiente.

E os habitantes dessa nova era seriam os mutantes do título do seu livro? Talvez a melhor definição para o novo homem que habita nosso planeta não seja nem mutante nem Homo sapiens, o "homem sábio". Acredito que hoje ele seja um Homo perturbatus, o "homem perturbado". Nossa biologia está passando por distúrbios e a maior parte delas nos faz muito mal.

A queda de fertilidade, que pode chegar a 40% nos últimos cinquenta anos na Europa e Estados Unidos, como apontado por alguns estudos, é a pior delas? Outra pesquisa, publicada em maio do ano passado, também aponta uma queda de espermatozoides de 2% ao ano, na última década, em homens do sul da Espanha. As causas são várias. Diversos estudos relacionam o bisfenol A a dificuldades reprodutivas e um estudo feito nos Estados Unidos com homens que procuravam programas de fertilidade mostrou que, quanto mais ftalatos, químicos presentes em plásticos, desodorantes ou tintas, existiam no organismo, menor era a concentração de espermatozoides. Entretanto, essa transformação faz parte de uma mutação mais profunda, em que as moléculas agem alterando nosso sistema endócrino e a produção de hormônios. Elas atuam impedindo o hormônio masculino testosterona de se manifestar. Isso altera não só a sexualidade, mas toda a biologia humana, com efeitos transmitidos por gerações.

Isso significa que os homens estão ficando menos masculinos? Sim. A atividade dos hormônios sexuais masculinos é muito alterada por fatores externos. Um estudo feito por pesquisadores dinamarqueses e finlandeses mostrou que a taxa de testosterona em pouco mais de 3 000 homens caiu mais de um terço em trinta anos — ela vem diminuindo de geração a geração. Os parabenos, compostos usados em cosméticos e filtros solares, também mimetizam os hormônios e bagunçam sua ação. O estudo mais interessante sobre o efeito desses perturbadores é de 2008, feito em Washington, buscando analisar o efeito do fungicida vinclozolina. Ele mostrou que seu efeito prejudica o comportamento de várias gerações.

Então estamos condenados a viver com esse tipo de evolução? Acredito que, se nos conscientizarmos desses problemas e tivermos uma ação política séria para o controle desses químicos, podemos desacelerar a degradação do ambiente e reduzir os efeitos negativos. Mas retornar a uma época em que eles não existiam é difícil. Trata-se mais de impedir que os distúrbios cresçam.

As grandes promessas da ciência, como a pesquisa genética ou as células-tronco, não trarão soluções? Para a fertilidade, talvez. Podemos produzir espermatozoides a partir de células-tronco. Isso já foi feito em ratos e, certamente, chegará aos humanos. Se chegarmos a um ponto de não produzirmos gametas suficientes, essa pode ser uma solução. Há também a promessa de que, no futuro, possamos gerar bebês fora do útero, em um processo que já existe, chamado ectogênese. Mas, se chegarmos a esse ponto, isso significa que modificamos a espécie de tal forma que ela sequer é capaz de se reproduzir naturalmente. E isso é muito preocupante.

Isso quer dizer que os avanços médicos e o progresso industrial dos últimos séculos não nos trouxeram um mundo melhor? A ciência nos trouxe um progresso considerável em muitas áreas, como a descoberta dos antibióticos. Mas, sem controle, ela pode ter um impacto negativo. O que me preocupa é que voltamos ao cientificismo do século XIX, ou seja, uma época em que tínhamos uma fé inquebrável na ciência e acreditávamos que ela poderia resolver tudo. O progresso científico é indispensável, mas, junto a ele, é indispensável haver ética. Temos que refletir sobre o significado dos avanços científicos para nossa sociedade.

Com esse tipo de pensamento a ciência não seria uma aliada da evolução, mas um fator que nos levaria ao retrocesso? Nos deixamos levar pelo progresso da ciência. Ela começou a caminhar por conta própria, sem controle. O melhor exemplo é a agricultura: o cultivo intensivo alimentou muita gente, mas não nos demos conta de que não poderíamos misturar tantas moléculas ao nosso prato sem saber as consequências. A fecundação in vitro é maravilhosa, podemos examinar o genoma do embrião e descobrir doenças graves. No entanto, sem uma reflexão ética, ela pode nos levar a um momento em que seja permitido escolher o sexo do bebê ou o melhor DNA. E isso se chama eugenia. O grande problema é que todas essas coisas não estão em um futuro distante. Elas estão acontecendo, agora, mas ainda não nos demos conta. 

A evolução pode regredir?

A ideia de que estamos evoluindo em um caminho perverso está longe de ser um consenso na comunidade científica. Os que defendem essa proposta partem do princípio de que um dos componentes fundamentais da evolução, a seleção natural, que elege os mais aptos a produzir descendentes, foi superada. Afinal, a ciência e medicina modernas permitem não só que os menos capacitados sobrevivam como também tenham filhos para perpetuar seus genes.

Alguns antropólogos e biólogos, por outro lado, acreditam que a seleção natural é uma força que jamais deixará de agir, apesar de poder ser modificada. "É inquestionável que a cultura — que compreende a tecnologia, a medicina e a indústria — está mudando a intensidade da seleção natural e as características mais afetadas por ela. Transformamos de tal modo o ambiente que a cultura se tornou um agente importante para a seleção", afirmou ao site de VEJA o biólogo Stephen Stearns, professor da Universidade Yale, nos Estados Unidos, e um dos principais nomes da biologia evolutiva.

Para Stearns e aqueles que pensam como ele, isso não quer dizer que a evolução tenha tomado um caminho negativo e possa voltar atrás ou parar. "Temos hoje uma nova compreensão dos processos evolutivos e sabemos que eles, assim como a seleção natural, estão acontecendo o tempo todo. Não há uma boa ou má direção para a evolução, que é apenas um movimento contínuo de transformação dos seres", diz o biólogo evolucionista Ian Rickard, da Universidade Durham, na Inglaterra. "Acreditar que esse movimento é positivo ou negativo é atribuir valores que ele não possui. Evolução não tem a ver com progresso e esse é um equívoco comum, assim como é complicado admitir que haja uma dicotomia entre o que é natural e o que é feito pelo homem. Desde sempre os homens mudam o ambiente, assim como o ambiente muda o homem e isso faz parte da evolução."

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Mutants – à quoi 
ressemblerons-nous demain?


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Mutants
Mutants


O biólogo francês Jean-François Bouvet reúne uma série de estudos feitos ao redor do mundo para mostrar que estamos passando por uma evolução inédita, batizada por ele de retroevolução. O ser humano poluiu o ambiente com novos químicos que estão alterando nossa biologia de maneira permanente e perigosa.

Autor: JEAN-FRANÇOIS BOUVET


Editora: FLAMMARION

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Fontew:  http://veja.abril.com.br/noticia/ciencia/o-futuro-e-de-velhos-gordos-e-inferteis

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