Entrevista: Jean-François Bouvet
Em um novo livro, o biólogo francês Jean-François Bouvet mostra que passamos por uma evolução inédita. Para ele, as transformações ambientais feitas pelo homem têm hoje mais influência em nossa biologia que a seleção natural. Nesta entrevista, ele rebate quem acredita que a ciência só nos trouxe progresso e explica como chegamos a esse ponto
Velho, gordo e infértil. Para o biólogo francês Jean-François Bouvet,
esse é o retrato do ser humano atual — e do seu futuro. Em seu livro Mutants – à quoi ressemblerons-nous demain? (Mutantes – como seremos amanhã?,
lançado em março e sem tradução em português), ele reúne uma série de
dados de pesquisas feitas ao redor do mundo para mostrar que o homem
passa por uma evolução inédita – que pode estar prejudicando seu
bem-estar.
"Desde a Revolução Industrial, no início do século XIX, vivemos um
processo em que o ambiente modificado pelo homem tem mais influência em
sua evolução que a seleção natural. E essas mudanças são, geralmente,
negativas", explica o cientista que, durante dez anos, desenvolveu
pesquisas em neurobiologia na Universidade Claude Bernard, em Lyon, na
França, e escreveu outros quatro livros, publicados na Europa e Estados
Unidos.
Big bang químico — Para ele, a explosão de novas
moléculas criadas pelo avanço da ciência e da indústria modificou
permanentemente o sistema endócrino e hormonal dos seres humanos. Os
efeitos de químicos como o do pesticida DDT, de antibióticos ou de substâncias presentes em nosso cotidiano, como o bisfenol A, os parabenos ou os ftalatos revolucionaram
nossa biologia em uma escala jamais vista. O número de casos de
obesidade dobrou desde os anos 1980, meninos e meninas ao redor do mundo
entram na puberdade por volta dos 7 anos e, o que é mais grave, a
concentração de espermatozoides no sêmen foi reduzida em 40% nos últimos
50 anos, em todo o planeta. Se o objetivo da evolução é selecionar os
mais aptos a gerar descendência, esses indícios reunidos indicariam que
ela está enfrentando problemas.
Pouco otimista em relação ao futuro da humanidade, Bouvet explica
nesta entrevista o que seria uma evolução inédita, como serão os homens
nos próximos anos e se promessas da medicina, como as células-tronco ou
pesquisas genéticas, podem reverter esse processo.
Por que você afirma que o ser humano vive uma evolução jamais vista? Estamos
cada vez mais gordos e menos férteis. É verdade que estamos também mais
velhos – desde 1990, a expectativa de vida aumentou quatro anos na
Europa, seis anos na África e oito anos na Ásia. No entanto, essa não é
uma velhice saudável. O indicador que mede a expectativa de vida sem
incapacidade [Disability Free Life Expectancy, em inglês, usado pela
Comissão Europeia] permanece estável nos últimos dez anos. Ou seja, o
aumento dos anos de vida significa uma sobrevida sem saúde. Na França,
temos 25 novos casos de Alzheimer diagnosticados por hora: são 860 000
doentes e a previsão é de 2 milhões até 2020. Isso nunca nos aconteceu e
não pode ser considerado um progresso.
Mas esses homens não são os mais aptos ao mundo moderno, selecionados pela evolução? Pela
primeira vez na história há outro fator mais importante que a seleção
natural para a evolução: o ambiente modificado pelo homem. Até a
Revolução Industrial não tínhamos a capacidade técnica de transformar
quimicamente a natureza. Modificamos o ambiente que, por sua vez,
devolve essas alterações, perturbando-nos com os químicos que inventamos
e que agora agem de maneira deletéria sobre nós. Esse processo em que a
natureza manda de volta o que fizemos a ela é o que chamo de
retroevolução.
Muitos antropólogos e biólogos evolutivos defendem que mudanças ambientais têm forte impacto na seleção natural. No entanto, eles não costumam enxergar essa tendência como negativa. O que ela teria de tão ruim? Sou
um homem da ciência e não escrevi um livro otimista. Há um fenômeno
global em que o homem inventa novas moléculas e faz isso tão rapidamente
que não há tempo para estudos sérios sobre seu impacto. Elas são logo
colocadas no mercado e, só depois, percebemos que são perigosas. Estou
falando de coisas como os pesticidas, o bisfenol A, os parabenos ou os
ftalatos, que jogamos no ambiente sem parar. Uma pesquisa de 2012 com
cerca de 4 000 americanos mostra que a porcentagem de obesos em uma
população aumenta quando a taxa de bisfenol A cresce nos organismos. No
país, mais de 95% dos adultos apresentam o químico na sua urina e um
terço das mulheres e 30% dos homens são obesos. Em todo o mundo, a
obesidade, relacionada a doenças crônicas como diabetes e hipertensão,
dobrou desde os anos 1980. Não dá para ser muito otimista em um cenário
como esse.
O uso de alguns desses químicos está sendo restringido no mundo. Isso não ajuda? Eles
continuam onipresentes. O bisfenol A é uma substância utilizada em
plásticos, para facilitar sua maleabilidade. E o DDT, proibido nos
Estados Unidos em 1972, continua sendo usado em vários países para
combater os mosquitos da malária — o que significa que ainda é muito
empregado no planeta. Além disso, ele permanece no ambiente por até dez
anos. Um estudo feito em 2005 pela Universidade Harvard, nos Estados
Unidos, com mulheres da China — lugar onde o pesticida foi proibido em
1984 — mostrou que as que tiveram puberdade precoce eram as que tinham
sido mais expostas ao químico. E a esfera sexual é uma das mais afetadas
também pela poluição. Um estudo brasileiro, da Universidade de São
Paulo, publicado no ano passado, mostrou que ratas submetidas a
partículas finas de ar poluído tinham diversos problemas reprodutivos,
com uma modificação substancial no ovário. Não somos ratos, mas não dá
para imaginar que essas partículas sejam inofensivas.
Os desreguladores endócrinos mais perigosos à saúde
Lista elaborada pela organização americana Environmental Working Group (EWG)
1 de 12
Bisfenol A (BPA)
Essa substância está presente
principalmente em embalagens de plástico feito de policarbonato e no
revestimento interno de latas de alumínio, como as de refrigerante, por
exemplo. Uma vez no organismo, o BPA imita a ação do estrogênio, um
hormônio sexual feminino, interferindo diretamente no funcionamento de
algumas glândulas endócrinas, podendo também aumentar ou diminuir a ação
de vários hormônios. O bisfenol A vem sendo associado a alguns tipos de
câncer, como o de mama, além de problemas de reprodução, obesidade,
puberdade precoce e doenças cardíacas.
Como evitar: Preferir
alimentos frescos a enlatados; evitar embalagens de plástico para
alimentos e bebidas que tenham o símbolo ‘PC’, que significa
policarbonato, ou cujo símbolo de reciclagem leve os números 3 ou 7, que
indicam a presença do BPA.
É por isso que o senhor diz que vivemos em uma "Era-lixeira" e
não no Antropoceno, como alguns cientistas pretendem chamar a época
caracterizada pela ação determinante do homem no planeta? Decididamente
mudamos de era e vivemos em um período em que o ser humano é
absolutamente essencial para a evolução, porque ele modifica seu
ambiente em uma velocidade jamais vista. As mudanças não são sentidas
lentamente, ao longo de gerações, mas em poucos anos. Faço uma
brincadeira com a "Era-lixeira" porque jogamos no planeta qualquer
coisa, como em uma grande lata de lixo. Essa é uma maneira abertamente
negativa de olhar para o impacto do homem no ambiente.
E os habitantes dessa nova era seriam os mutantes do título do seu livro? Talvez a melhor definição para o novo homem que habita nosso planeta não seja nem mutante nem Homo sapiens, o "homem sábio". Acredito que hoje ele seja um Homo perturbatus, o "homem perturbado". Nossa biologia está passando por distúrbios e a maior parte delas nos faz muito mal.
A queda de fertilidade, que pode chegar a 40% nos últimos cinquenta anos na Europa e Estados Unidos, como apontado por alguns estudos, é a pior delas? Outra pesquisa, publicada em maio do ano passado, também aponta uma queda de espermatozoides de 2% ao ano, na última década, em homens do sul da Espanha. As causas são várias.
Diversos estudos relacionam o bisfenol A a dificuldades reprodutivas e
um estudo feito nos Estados Unidos com homens que procuravam programas
de fertilidade mostrou que, quanto mais ftalatos, químicos presentes
em plásticos, desodorantes ou tintas, existiam no organismo, menor era a
concentração de espermatozoides. Entretanto, essa transformação faz
parte de uma mutação mais profunda, em que as moléculas agem alterando
nosso sistema endócrino e a produção de hormônios. Elas atuam
impedindo o hormônio masculino testosterona de se manifestar. Isso
altera não só a sexualidade, mas toda a biologia humana, com
efeitos transmitidos por gerações.
Isso significa que os homens estão ficando menos masculinos? Sim.
A atividade dos hormônios sexuais masculinos é muito alterada por
fatores externos. Um estudo feito por pesquisadores dinamarqueses e
finlandeses mostrou que a taxa de testosterona em pouco mais de 3 000
homens caiu mais de um terço em trinta anos — ela vem diminuindo de
geração a geração. Os parabenos, compostos usados em cosméticos e
filtros solares, também mimetizam os hormônios e bagunçam sua ação. O
estudo mais interessante sobre o efeito desses perturbadores é de 2008,
feito em Washington, buscando analisar o efeito do fungicida
vinclozolina. Ele mostrou que seu efeito prejudica o comportamento de várias gerações.
Então estamos condenados a viver com esse tipo de evolução? Acredito
que, se nos conscientizarmos desses problemas e tivermos uma ação
política séria para o controle desses químicos, podemos desacelerar a
degradação do ambiente e reduzir os efeitos negativos. Mas retornar a
uma época em que eles não existiam é difícil. Trata-se mais de impedir
que os distúrbios cresçam.
As grandes promessas da ciência, como a pesquisa genética ou as células-tronco, não trarão soluções? Para
a fertilidade, talvez. Podemos produzir espermatozoides a partir de
células-tronco. Isso já foi feito em ratos e, certamente, chegará aos
humanos. Se chegarmos a um ponto de não produzirmos gametas suficientes,
essa pode ser uma solução. Há também a promessa de que, no futuro,
possamos gerar bebês fora do útero, em um processo que já existe,
chamado ectogênese. Mas, se chegarmos a esse ponto, isso significa que
modificamos a espécie de tal forma que ela sequer é capaz de se
reproduzir naturalmente. E isso é muito preocupante.
Isso quer dizer que os avanços médicos e o progresso industrial dos últimos séculos não nos trouxeram um mundo melhor? A
ciência nos trouxe um progresso considerável em muitas áreas, como a
descoberta dos antibióticos. Mas, sem controle, ela pode ter um impacto
negativo. O que me preocupa é que voltamos ao cientificismo do século
XIX, ou seja, uma época em que tínhamos uma fé inquebrável na ciência e
acreditávamos que ela poderia resolver tudo. O progresso científico é
indispensável, mas, junto a ele, é indispensável haver ética. Temos que
refletir sobre o significado dos avanços científicos para nossa
sociedade.
Com esse tipo de pensamento a ciência não seria uma aliada da evolução, mas um fator que nos levaria ao retrocesso? Nos
deixamos levar pelo progresso da ciência. Ela começou a caminhar por
conta própria, sem controle. O melhor exemplo é a agricultura: o cultivo
intensivo alimentou muita gente, mas não nos demos conta de que não
poderíamos misturar tantas moléculas ao nosso prato sem saber as
consequências. A fecundação in vitro é maravilhosa, podemos examinar o
genoma do embrião e descobrir doenças graves. No entanto, sem uma
reflexão ética, ela pode nos levar a um momento em que seja permitido
escolher o sexo do bebê ou o melhor DNA. E isso se chama eugenia. O
grande problema é que todas essas coisas não estão em um futuro
distante. Elas estão acontecendo, agora, mas ainda não nos demos conta.
A evolução pode regredir?
A ideia de que estamos evoluindo em um caminho perverso está longe de
ser um consenso na comunidade científica. Os que defendem essa proposta
partem do princípio de que um dos componentes fundamentais da evolução,
a seleção natural, que elege os mais aptos a produzir descendentes, foi
superada. Afinal, a ciência e medicina modernas permitem não só que os
menos capacitados sobrevivam como também tenham filhos para perpetuar
seus genes.
Alguns antropólogos e biólogos, por outro lado, acreditam que a
seleção natural é uma força que jamais deixará de agir, apesar de poder
ser modificada. "É inquestionável que a cultura — que compreende a
tecnologia, a medicina e a indústria — está mudando a intensidade da
seleção natural e as características mais afetadas por ela.
Transformamos de tal modo o ambiente que a cultura se tornou um agente
importante para a seleção", afirmou ao site de VEJA o biólogo Stephen
Stearns, professor da Universidade Yale, nos Estados Unidos, e um dos
principais nomes da biologia evolutiva.
Para Stearns e aqueles que pensam como ele, isso não quer dizer que a
evolução tenha tomado um caminho negativo e possa voltar atrás ou
parar. "Temos hoje uma nova compreensão dos processos evolutivos e
sabemos que eles, assim como a seleção natural, estão acontecendo o
tempo todo. Não há uma boa ou má direção para a evolução, que é apenas
um movimento contínuo de transformação dos seres", diz o biólogo
evolucionista Ian Rickard, da Universidade Durham, na Inglaterra.
"Acreditar que esse movimento é positivo ou negativo é atribuir valores
que ele não possui. Evolução não tem a ver com progresso e esse é um
equívoco comum, assim como é complicado admitir que haja uma dicotomia
entre o que é natural e o que é feito pelo homem. Desde sempre os homens
mudam o ambiente, assim como o ambiente muda o homem e isso faz parte
da evolução."
Biblioteca
Mutants – à quoiressemblerons-nous demain?
Mutants
Autor: JEAN-FRANÇOIS BOUVET
Editora: FLAMMARION
__________________
Fontew: http://veja.abril.com.br/noticia/ciencia/o-futuro-e-de-velhos-gordos-e-inferteis
Nenhum comentário:
Postar um comentário