Dissertação mapeia movimentos sociais que atuam no âmbito da Copa do Mundo
Gentrificação
é um termo derivado do inglês que não consta nos dicionários de
português: refere-se a um fenômeno que altera a realidade de um bairro
ou região com a criação de novos pontos comerciais ou edifícios,
valorizando os custos de bens e serviços e dificultando a permanência da
população de baixa renda no local. O fenômeno vem ocorrendo nos
preparativos da Copa do Mundo a ser disputada em 12 cidades brasileiras e
das Olimpíadas no Rio de Janeiro, havendo a estimativa de remoção
forçada de mais de 170 mil pessoas, seguindo a ideia de “limpar o
terreno” para grandes projetos urbanos. Acima dos impactos econômicos,
fundiários, urbanísticos e ambientais, sobressaem-se os sociais.
“A
Copa Fifa 2014 para além da política esportiva: estudo do dissenso
entre os interesses da ‘cidade empresarial’ e os citadinos através da
análise da ação dos movimentos sociais” é o título da dissertação de
mestrado de Juliana Cristina Barandão, orientada pelo professor Lino
Castellani Filho e apresentada na Faculdade de Educação Física (FEF). “A
realização de megaeventos esportivos em solo brasileiro, desde os Jogos
Pan-Americanos de 2007 e a Copa das Confederações de 2013, evidencia o
surgimento de um modelo de planejamento de cidade pautado na
racionalidade econômica e na gestão empresarial do espaço urbano”,
afirma a autora da dissertação.
Juliana Barandão explica que, em
contraposição à gentrificação, entidades e movimentos sociais se
articularam para debater, acompanhar e questionar os projetos,
denunciando aspectos que violem os direitos dos setores desprivilegiados
da população. “O objetivo da pesquisa é o mapeamento dos movimentos
sociais que fizeram e ainda fazem este embate político nas doze
cidades-sedes da Copa do Mundo de 2014. A fonte principal é o portal do
Comitê Popular da Copa e das Olimpíadas, site onde os comitês populares
de cada cidade-sede dialogam em rede nacional – a Articulação Nacional
dos Comitês Populares da Copa (Ancop).”
A Copa Fifa terá jogos em
Belo Horizonte, Brasília, Cuiabá, Curitiba, Fortaleza, Manaus, Natal,
Porto Alegre, Recife, Rio de Janeiro, Salvador e São Paulo, todas as
cidades com comitês locais criados por movimentos sociais, universidades
e entidades da sociedade civil. “São os próprios comitês populares que
alimentam o portal com notícias sobre as lutas, vitórias e derrotas em
torno dos projetos”, informa a mestra em educação física. “E, pelas
notícias, percebemos que a princípio os movimentos não são contrários à
realização da Copa no Brasil; prevalece a ideia de que em nosso país o
futebol possui um forte poder simbólico, que também os afeta. As
críticas se relacionam à forma como o megaevento está sendo organizado.”
Diante
do senso comum de que a realização de megaeventos esportivos impõe às
cidades-sedes um modelo de estruturação e gestão, a autora da
dissertação, com base em estudos acadêmicos, conclui o contrário: que as
cidades, por já possuírem um planejamento estratégico pautado na
racionalidade econômica, veem nos megaeventos uma oportunidade de
implementação e legitimação do seu projeto de desenvolvimento. E que as
entidades e movimentos sociais, por sua vez, veem a oportunidade de
discutir demandas sociais, participando dos comitês e buscando soluções
que contentem todas as partes. “Na matriz da Copa no Brasil estão
projetos guardados há muitos anos e que em outro contexto não seriam
aprovados – é um contexto de exceção, em que as regras podem ser mudadas
e tudo pode.”
Juliana Barandão afirma que alguns movimentos
criticam não apenas as remoções, mas a forma como são executadas, sem o
cumprimento de leis internacionais ratificadas pelo Brasil e que dizem
respeito, entre outros aspectos, ao aviso com antecedência e
participação dos moradores no processo e na definição do local para
realocação. “Entidades procuram dialogar com o poder público propondo
alternativas como de reduzir a dimensão de projetos para que menos
famílias sejam afetadas. Há comunidades vivendo em áreas ocupadas de
maneira pacífica, sem oposição dos proprietários e por prazo superior a
cinco anos – premissa para a usucapião urbana. Geralmente, eram áreas
consideradas franjas urbanas (periféricas) que valorizaram com o
crescimento das cidades, tornando-se alvos da cobiça dos especuladores.”
Segundo
a pesquisadora, os motivos alegados para a remoção forçada
evidentemente são outros: favorecer a mobilidade urbana, proteger as
populações de riscos ambientais e inclusive melhorar suas condições de
vida. Em tese, a Copa Fifa 2014 e os Jogos Olímpicos do Rio podem deixar
legados para as cidades sedes na área social, novas e modernas
instalações esportivas, incremento das intervenções urbanas e
capacitação do setor empresarial. “Ocorre que em muitos casos estes
megaeventos têm gerado efeitos negativos sobre diversos segmentos
sociais, especialmente sobre os historicamente excluídos, como moradores
de assentamentos informais, migrantes, moradores de rua, trabalhadores
sexuais e comunidades indígenas.”
Trabalho e precarização
O
problema da moradia talvez seja o que mais afeta as comunidades, mas
Juliana Barandão observa que o portal do Comitê Popular da Copa também
traz notícias sobre as paralisações de trabalhadores nos estádios em
construção, por conta de direitos trabalhistas e denúncia de condições
similares às de trabalho escravo. “Sejam empregados e subempregados em
grandes obras como estádios e rodovias, sejam trabalhadores informais
reprimidos no exercício de sua atividade econômica, observa-se um padrão
de crescente precarização, conduzido por empresas e consórcios
contratantes e pelo próprio Estado. Se é verdade que os megaeventos
poderiam oferecer uma oportunidade de inclusão social dos trabalhadores,
geração de empregos e ampliação de direitos, não tem sido esta a
realidade no Brasil.”
A autora da dissertação considera que estes
efeitos perversos são ampliados através da imposição, pelo público e
comitês promotores, do que Carlos Vainer chama de “estado de exceção”
instituído especialmente no contexto dos megaeventos, que permite a
flexibilização das leis e suspensão de direitos antes e durante os
jogos. “A chamada Lei Geral da Copa aprovou a isenção dos encargos para a
Fifa, alterou o critério de entrada de estrangeiros no país para os
eventos, a lei de descontos para estudantes e idosos (com a estipulação
de cotas), permitiu a venda de bebida alcoólica nos estádios (depois de
tanta luta para proibi-la) e limitou uma área exclusiva no entorno dos
locais de competição para a entidade, prejudicando os comerciantes que
já estavam estabelecidos ali.”
A Lei da Copa, na opinião de
Juliana Barandão, não é apenas contrária ao Código de Defesa do
Consumidor e ao Estatuto do Torcedor, como flexibiliza a legislação das
próprias práticas urbanísticas no Brasil. “No Estatuto da Cidade foi
aprovada a possibilidade de aplicação de operações urbanas consorciadas,
ou seja, de um conjunto de intervenções pelo poder público em parceria
com proprietários, moradores, usuários permanentes e investidores
privados, com o objetivo de alcançar em uma área transformações
urbanísticas estruturais, melhorias sociais e valorização ambiental. E
para essas parcerias está prevista a modificação de índices e
características de parcelamento, uso e ocupação de solo, regularização
de construções ou reformas executadas em desacordo com a legislação
vigente.”
De acordo com Juliana, a Articulação Nacional e os
Comitês Populares locais estão atentos às violações do ordenamento
jurídico brasileiro e ao estado de exceção, somando-se ações que partem
de instâncias do próprio governo, visando questões como das isenções
ficais à Fifa. “As novas legislações visam conceder exceções e
privilégios para assegurar o lucro da Fifa e de seus parceiros
comerciais e patrocinadores em detrimento dos interesses da população
brasileira. Encontrei 34 notícias postadas sobre o tema, entre elas da
urbanista e professora da USP Raquel Rolnik, relatora da Comissão
Especial de Direito à Moradia da ONU. Ela dirá que não era prioridade do
Brasil organizar um evento tão dispendioso; que em 1950 o Brasil
organizou a Copa que podia, e que a mesma postura poderia ter sido
adotada agora. Já há indicações de quatro estádios superfaturados e que
deverão ficar como elefantes brancos, em cidades que nem possuem times
nas séries A ou B.”
Portal tem notícias de 255 entidades
Juliana Barandão informa em sua dissertação de mestrado que no Portal Popular da Copa e das Olimpíadas
estão indicados todos os comitês das 12 cidades-sedes, bem como
notícias, cartilhas, panfletos e documentos relacionados à Copa do Mundo
2014 e Jogos Olímpicos 2016, produzidos sobre os seguintes temas: luta e
resistência, remoções e despejos, trabalho e precarização, exceções e
ilegalidades, discriminação e segregação, recursos públicos para
interesses privados, criminalização e repressão, elitização e
mercantilização da cidade, autoritarismo e processos decisórios e
ameaças à soberania.
As notícias possibilitaram identificar
255 entidades/organizações sociais articuladas em torno da temática da
Copa 2014, a partir da denúncia de violações dos direitos humanos e da
resistência de comunidades afetadas pela organização do evento, seja
pela necessidade de remoções em decorrência das obras para os estádios e
mobilidade urbana; pelo aumento da especulação imobiliária e,
consequentemente, expulsão de parcela da população para as franjas
periféricas; pelo alto custo do evento financiando por recursos
públicos; e pelo ataque ao sistema jurídico vigente, aos direitos
sociais e de certa forma à soberania do país.
Publicação
Dissertação: “A Copa Fifa 2014 para além da política esportiva: estudo do dissenso entre os interesses da ‘cidade empresarial’ e os citadinos através da análise da ação dos movimentos sociais”
Autora: Juliana Cristina BarandãoOrientador: Lino Castellani FilhoUnidade: Faculdade de Educação Física (FEF)
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Texto: LUIZ SUGIMOTO
Fotos: Fábio Rodrigues Pozzeborn/Agência Brasil
Antoninho Perri
Edição de Imagens: Diana Melo
Fonte: http://www.unicamp.br/unicamp/ju/597/limpando-o-terreno
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