sábado, 17 de maio de 2014

Faz a fama e deita-te na cama

 Eugénia de Vasconcellos
 
O meu sobrinho mais velho tem cinco anos e está no primeiro ano. Os colegas quase todos têm seis anos, um ou outro, sete.

O meu sobrinho mais velho usa botas ortopédicas – eu também usei.

O meu sobrinho mais velho todas as noites faz a bomba, tem asma. E, apesar de muito alto, é escanzelado.

O meu sobrinho mais velho colou folhas e fez um livro: em cada página uma história com título e um desenho. Sozinho.

O meu sobrinho mais velho preocupa-me.

O meu sobrinho mais velho tem uma ideia muito particular do que é um jogo de futebol: se a equipa dele marca, fica feliz; se a equipa adversária marca também, ou seja, qualquer das duas equipas não o quer na equipa.

O meu sobrinho mais velho quis participar na corrida obrigatória do colégio, apesar de poder não o fazer – a tal da asma.

O meu sobrinho mais velho tem pais pedagógicos que lhe disseram: o importante é participar e acabar a corrida.

O meu sobrinho mais velho acreditou, chegou em último e feliz da vida – há photos que o comprovam.
O meu sobrinho mais velho ficou muito triste quando os meninos gozaram com ele por chegar em último.

O meu sobrinho mais velho é… diferente: muito bonito, muito bebé, nada competitivo, um estranho bom aluno, foge para a sala do segundo ano, mas só se interessa pelas coisas lá dele e, zás, gosta muito de todos os meninos e meninas.

O meu sobrinho mais velho levou uns pontapés dos meninos de quem gosta.

O meu sobrinho mais velho, repito, tem pais pedagógicos que lhe disseram: defende-te mas não ataques.

O meu sobrinho mais velho e eu tivemos uma conversa: nós somos privilegiados, nós somos bons, queremos sê-lo, devemos. Os meninos pequenos e as pessoas grandes, às vezes, confundem ser bom com ser parvo. Não percebem, não têm sorte como nós. Nós não somos parvos, somos bons. Para continuarmos a sermos bons, agora, é preciso fingirmos que somos maus. Fixa: faz a fama e deita-te na cama. Faz de conta que somos maus. Boa? Quem tem botas ortopédicas? Quando te derem um pontapé tu dás outro. Com força, sim? E amanhã, mas só amanhã, tá?, porta-te muito mal na sala: fala alto, não faças os trabalhos. O professor vai mandar-te sair – e isso está certo, enfias-te no segundo ano e não dizes nada a ninguém. E leva os bichinhos no bolso.

O meu sobrinho hoje teve dois erros no ditado: plain/plane. Ó.

O meu sobrinho mais velho levou bichos de conta, tão lindos, para a mesa de trabalho. O meu sobrinho mais velho pregou dois valentes pontapés em dois meninos que lhe deram pontapés mais uma vez.

O meu sobrinho mais velho conseguiu ir para a rua não uma, mas duas vezes.

O meu sobrinho mais velho se, azarucho do caneco, der em escritor, será de best-sellers.
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* Escritora protuguêsa
Fonte:https://blu180.mail.live.com

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