Montserrat Martins*
Tem quem não entenda os protestos e ache que é coisa de baderneiros
ou golpistas. Vamos aos fatos, então. Quando o Brasil foi escolhido como
sede e assinou o protocolo para a Copa do Mundo, lá em 2007, o governo
afirmou que nenhum dinheiro público seria gasto, que as obras seriam da
iniciativa privada, o que seria perfeitamente possível, dado o potencial
de negócios gerado por uma competição desse porte. Só que nada disso
ocorreu, não houve planejamento e após 7 anos, quando chegou a hora do
“vamos ver”, tudo estava por ser feito. O governo que prometera nada
gastar na Copa, acabou desviando dos cofres públicos pelo menos 25
bilhões de reais (quase o orçamento anual do RS). “Desviando” é o termo
certo, já que a promessa era que a iniciativa privada investisse na Copa
e se beneficiasse com esse empreendimento.
A revolta contra a falta de investimentos em saúde e educação não é
retórica, a associação entre os fatos é verídica. Dez bilhões deixaram
de ser investidos em saneamento, valor que foi gasto apenas em estádios.
Não é mesmo uma “revolta sem causa” e também não é uma manifestação
eleitoral, já que os protestantes não tem partido, na sua grande
maioria, nem tem apoio da mídia.
O povo brasileiro sempre foi criticado por sua passividade,
questionamento que uma peça de teatro clássica consagrou, “Esperando
Godot”. Estamos sempre esperando que chegue alguém e nos salve, faça por
nós o que não temos a iniciativa de fazer. Nos falta convicção, para
não dizer que falta coragem, nos falta autoestima, nos falta identidade.
Acontece que não adianta nos reunirmos todos os dias para esperar Godot
que nunca chega. Um dia teremos de acordar e fazer por nós mesmos.
Os protestos não são uma solução em si mesmos, é óbvio. Serviram para
enterrar a famigerada PEC 37 que iria tirar o poder de investigação do
Ministério Público, o que já é alguma coisa. Mas principalmente
sinalizaram que a era do “pão e circo” deve ficar para trás, para a
política clássica romana, que não é essa a política que queremos para o
século XXI.
Há mais um detalhe perverso, ainda. Na tradicional cultura do “pão e
circo”, o povo tinha direito ao lazer, à alegria. O mais paradoxal desse
enorme gasto em elefantes brancos é que o povo não vai poder entrar
neles, porque o “padrão Fifa” é caro e elitista, apenas para quem pode
pagar. Quer dizer, o governo investe uma fortuna mas ao invés de
oferecer circo, tira os estádios – construídos com dinheiro público – do
povo, que antes do “padrão Fifa” tinha direito pelo menos a ir numa
geral ou “coréia” e gritar pelo seu time, ao vivo. Agora, chega a ser
humilhante ver as obras suntuosas do esporte que é a paixão popular, mas
da qual o povão acaba de ser excluído.
“Não vai ter Copa” é um meme, não quer dizer que os jogos não vão
ocorrer, literalmente. Quer dizer que a Copa imaginada como consagração
da velha política vai se voltar contra ela, como já aconteceu durante a
Copa das Confederações, a Copa que “não houve”, porque o governo não
pode faturar em cima, ao contrário, teve de passar o tempo todo dando
explicações. Que venham as seleções, os turistas, que conheçam as
belezas naturais do nosso país, que movimentem o comércio, que se
apaixonem pelo Brasil e até mesmo que nossa Seleção ganhe a Copa, como
já ganhou a das Confederações. Que aconteça tudo isso sem sermos feitos
de bobos, achando tudo lindo e gratos ao governo por desviar verbas
públicas de coisas mais importantes para nós.
O “pão e circo” acabou, é isso que quer dizer “não vai ter Copa”, que
não é contra um governo, é contra um jeito muito antigo de governar.
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* Montserrat Martins, Colunista do Portal EcoDebate, é Psiquiatra.Foto: Manifestação na Avenida Paulista dia 20 de junho de 2013. Foto: Marcos Santos/USP Imagens
Fonte: http://www.ecodebate.com.br/2014/05/23/
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