"Eis aí uma reação interessante. Ele não buscava isso? 'Esta
função? Não exatamente. Por que alguém iria querer algo assim? Sim.
Havia obviamente uma parte boba, vã, imatura dentro de mim que dizia:
‘Olha, um emprego importante, que legal!’ E o resto de mim dizia: ‘Qual
é? Conta outra!’'. Então por que aceitou? 'Porque, pensei, as pessoas em
que eu confiei disseram: ‘Dá uma chance a esta ideia’. Porque se outras
pessoas pensaram e rezaram bastante por isso, eu suponho que ao menos
devesse considerar a proposta como um chamado. Fui diretamente conversar
com o meu confessor quando chegou o momento e lhe disse: ‘Que tal?’ A
resposta foi: ‘Segue adiante’'."
A reportagem é de Cole Moreton, publicada pelo jornal The Telegraph, 27-04-2014. A tradução é de Isaque Gomes Correa.
Rowan Williams é um homem mudado. Ao final de seu período de arcebispo de Canterbury,
ele estava cansado e sobrecarregado, ferido pela imprensa e exausto
pelos esforços de tentar manter unida uma igreja que se divide.
Hoje se encontra bem, acolhedor e mesmo parece andar de cabeça
erguida em sua casa surpreendentemente moderna nas dependências da Faculdade Magdalene, em Cambridge, onde é professor. Estaria sendo esta vida mais fácil? “Sim”, responde, sorrindo. “O que você acha?”
Não há acólitos ou assessores em torno dele aqui como havia em Lambeth.
Ele é apenas um padre, sozinho vestido com uma camisa clerical preta,
sorrindo através de uma espessa barba branca, com olhos brilhando sob
aquelas sobrancelhas famosas enquanto toma seu chá.
“Sim, é um alívio não estar sob exame público o tempo todo. É muito
bom estar neste tipo de ambiente, onde o diálogo, a exploração das
ideias e o ensino vão em frente”.
Williams concordou em ter uma conversa à vontade para marcar a publicação pela editora Carcanet
de uma nova edição de seus poemas, alguns dos quais foram escritos
durante seus 10 anos no cargo. O que ele achou dos tempos de arcebispo?
“Tive muito trabalho”, diz ele, secamente. Com certeza este é o trabalho
mais importante que um religioso pode ter, correto? “Humm, não”.
Eis aí uma reação interessante. Ele não buscava isso? “Esta função?
Não exatamente. Por que alguém iria querer algo assim? Sim. Havia
obviamente uma parte boba, vã, imatura dentro de mim que dizia: ‘Olha,
um emprego importante, que legal!’ E o resto de mim dizia: ‘Qual é?
Conta outra!’”. Então por que aceitou? “Porque, pensei, as pessoas em
que eu confiei disseram: ‘Dá uma chance a esta ideia’. Porque se outras
pessoas pensaram e rezaram bastante por isso, eu suponho que ao menos
devesse considerar a proposta como um chamado. Fui diretamente conversar
com o meu confessor quando chegou o momento e lhe disse: ‘Que tal?’ A
resposta foi: ‘Segue adiante’”.
Isso sugere que ele não sentiu um chamado direto por si mesmo. “Como
muitos padres de minha geração, há um pressuposto de que estamos bem
próximos de ouvir o chamado de Deus a partir do lugar para onde a Igreja
quer que vamos. Assim, não acho que eu teria perdido o sono caso isso
não tivesse acontecido. Certamente muito menos sono do que eu perdi
desempenhando esta função”.
Escrever poemas é uma compulsão e um refúgio, muitas vezes feito nas
longas viagens. “Vou fazer uma confissão: Normalmente eu não carrego
telefone celular. Então, quando estou numa longa viagem de trem, de
propósito considero este momento como um tempo em que não estou
disponível”.
Os arcebispos viajam bastante. “Sim. Era uma das graças esperadas de uma existência terrivelmente nem sempre cheia de graça”.
A primeira coletânea foi publicada em 2002, quando sua nomeação há
pouco tinha sido anunciada. Então aconteceu durante o período de lua de
mel? “Houve um tempo para a lua de mel? [Risos] Nem parece que houve”.
Algumas pessoas disseram que ele ere um cara muito legal para este
serviço, demasiado inteligente e até mesmo muito correto para ter que se
responsabilizar por uma igreja cujos membros eram capazes de brigar
como um saco de gatos. Outros achavam que era demasiado inexperiente a
ponto de não ter utilidade alguma. “Lembro disso, com certeza. Eu era
algo do tipo: ‘Meu Deus, ele escreve poemas. O quanto isso pode piorar?”
Isso ainda o incomoda. “Não acho que poemas são inúteis. É uma das
formas com que nos relacionamos mais intensamente com aquela entidade um
tanto criticada chamada mundo”.
Ele tem arrependimentos de quando era arcebispo, período que terminou
em dezembro de 2012. No começo deste ano ele disse que amigos gays e
lésbicas ficaram desapontados com ele. O que ele quer dizer? “Exatamente
o que disse. É isso o que eles disseram a mim. A ainda dizem. Há
amizades que ficaram realmente prejudicadas por isso”.
O arcebispo não permitiu que seu amigo Jeffrey John se tornasse bispo de Reading no ano de 2003, por medo de que a nomeação de um bispo homossexual
pudesse causar uma ruptura na instituição. “Acho que as pessoas
esperavam que eu desse a esta questão mais prioridade do que dei. Mas
não creio que um arcebispo possa ser um ativista nesse sentido”.
Williams caiu – ou foi empurrado – para dentro da
maior controvérsia de seu período como arcebispo em 2008, quando teria
dito que era “inevitável” que aspectos como a Lei Sharia
fosse introduzida nos tribunais ingleses. As manchetes foram incisivas;
bispos se manifestaram contra ele e houve pedidos para que renunciasse.
O religioso se sentiu lesado, tendo refeita a sua palestra original em
termos muitos mais cuidadosos e exploratórios. Pareceu desistir e
retirou-se após mencionar a Lei Sharia, como que
assumindo que tudo o que dissera foi mal interpretado. Isso é justo?
“Sim. Embora isso não seja tudo o que aconteceu”.
A associação chamada Law Society recentemente publicou diretrizes para a aplicação da Lei Sharia
em disputas envolvendo testamentos, e assim sua previsão se tornou, de
fato, realidade. Ele se sente vingado? “Um pouco. É claro, cerca de seis
meses depois daquela palestra, o chefe de Justiça disse algo bastante
semelhante. Mas eu considerei que [a controvérsia original] foi um
momento bastante surreal”.
Havia no mínimo 77 milhões de pessoas ao redor do mundo observando-o
na antiga função, algumas das quais esperando que ele fosse tão
infalível quanto um papa dos tempos antigos e outras culpando-o por tudo
o que acontecia. Qualquer um dormiria com mais facilidade sendo um
professor universitário. Sua função é presidir reuniões, supervisionar a
estratégia da universidade e angariar fundos, diz ele. “Há um monte de
coisas envolvidas no fazer esta instituição funcionar como uma
comunidade. Precisamos conhecer os colegas e alunos, entreter, estar
presente, resolver problemas. Queremos fazer florescer o lugar”.
Com 63 anos, ele também leciona e é chanceler da Universidade de South Wales, bem como presidente da Christian Aid.
Depois de ficar longe dos holofotes por um tempo, recentemente começou a
comentar sobre assuntos nacionais tais como educação e desenvolvimento
internacional, tendo o cuidado de não se intrometer no caminho de seu
sucessor, Justin Welby. “A última coisa que quero fazer é estar disputando atenção ou posição com as prioridades dele”.
Isso o diferencia de seu predecessor, Carey. Mas quero saber o que Williams diz sobre o assunto da semana, levantado pelo primeiro-ministro e que vem tendo a participação de ateus tais como Philip Pullman e Nick Clegg. A Inglaterra ainda é um país cristão?
Ele pensa por alguns instantes, levanta a cabeça, olha para um lado e
para o outro. E então fala: “Se eu disser que este país é pós-cristão,
isso não significa necessariamente ‘não cristão’. Isso quer dizer que a
memória cultural é, ainda, fortemente cristã. E, de certa forma, a
presença cultural é bastante cristã.
Mas é pós-cristão no sentido de que a prática habitual da maior parte da população não acontece mais.
“Aqui é preciso se cuidar bastante”, diz alguém que está acostumado a
fazer isso. “Um país cristão pode parecer um país de crentes
comprometidos, e nós não somos isso. Da mesma forma, não somos uma nação
de secularistas dedicados. Creio que somos muito menos seculares do que
imaginam os membros mais otimistas da Associação Humanista Britânica”.
Imaginemos todas aquelas flores vistas nos lugares de acidentes ao
longo das estradas, diz ele. “São um dos sacramentos modernos mais
interessantes que se desenvolveu. Há poucos anos eu disse que estávamos
sendo assombrados pelo cristianismo, e eu ainda continuo tendo esta
mesma opinião”.
Com certeza a palavra “assombrado” implica algo que está morto,
certo? “De forma alguma foi isso o que eu quis dizer. Se tivesse dito:
‘Essa é uma melodia assombrosa’, eu não necessariamente significaria que
ela estivesse morta. Quero dizer que continua por aí de forma
persistente”.
Então, somos um país cristão ou não? Sim ou não? “Um país cristão
como uma nação de crentes? Não. Um país cristão no sentido de ainda
estar muito saturado pela visão de mundo e por sua configuração? Sim”.
Será que com o tempo perderemos nossa fé? “Dado que, hoje, temos um
geração mais jovem que sabe menos sobre este legado do que as pessoas
com menos de 45 anos, pode haver uma diminuição da consciência e
comprometimento”.
Apesar disso, Williams
está esperançoso. “O outro lado é que as pessoas podem redescobrir o
cristianismo com um certo frescor, porque não será aquele ‘assunto
extremamente chato que nós aprendemos na escola e que desprezamos’.
Percebo alguns sinais disso ao conversar com os mais jovens aqui na
universidade e nas escolas que visito. Há uma curiosidade a respeito do
cristianismo”.
Aqui o religioso lembra a alegria dos alunos de ensino fundamental
quando ouviram a história do Filho Pródigo, história que nunca tinham
ouvido. “Há uma possibilidade real de as pessoas se envolverem novamente
e de ouvirem as coisas como se fossem a primeira vez”.
Qual deve ser a atitude da Igreja? “Sei que isto soa um tanto
anglicano, mas não deve ser nem complacente nem de pânico. Ainda temos
os pés no imaginário do país e em sua cultura. É interessante que a
maioria dos membros de outras religiões não se sentem ameaçados pelas
alusões à herança cristã, e às vezes percebem que isso é até uma
vantagem para eles”.
Carey diz que os cristãos neste país se sentem como uma minoria
perseguida. Isso é verdade? “Alguns cristãos em particular tiveram
momentos difíceis. Houve realmente alguma bobagem e inflexibilidade por
parte de algumas organizações. Mas eu sempre dou um passo atrás quando
falam em perseguição”, diz Williams.
“Assim como arcebispo Justin Welby,
presenciei perseguição real. Já estive junto de pessoas cujas igrejas
foram fechadas, cujos amigos foram espancados e mortos. Estive no Paquistão e no Sudão do Sul.
Isso é perseguição. Então, embora eu lamente por aqueles que são
marginalizados ou que são tratados de forma injusta aqui, não podemos
falar de perseguição. É sempre um pouco sedutor pensarmos que somos
vítimas”.
O que ele acha da recente declaração de fé feita pelo
primeiro-ministro? “Esta declaração não iria influenciar meu voto. Não
mesmo”.
E um poeta. É mais fácil ler seu livro agora, sem a distração pelo
fato de ele ser bispo. Os poemas são, às vezes, oblíquos mas, em outras
vezes, diretos, dependendo de se os versos tiverem mais influências de Bob Dylan ou R.S. Thomas, W H Auden ou Geoffrey Hill.
Os mais emocionantes são aqueles que lidam com os eventos pessoais,
tais como um caso de amor fracassado ou da paisagem ao redor dele no dia
em que ouviu que sua mãe estava morrendo, no ano de 1999.
“Estávamos de férias. Lembro de pegar um trem e ir para a região de Swansea,
onde passei o último dia ao lado dela. Meu pai teve uma parada cardíaca
no mesmo dia antes de ela morrer. Foi um dia complicado”.
Dos dois morreram na mesma época, de forma que nenhum viveu para ver o filho, o acadêmico, se tornar o arcebispo de Canterbury.
O que seu pai teria pensado disso? “Eu acho que ele teria ficado muito
feliz, de verdade”. Em seguida, depois de um momento de reflexão, repete
para si mesmo muito calmamente: “Sim, ele ficaria muito feliz”.
Hoje Williams
está trabalhando numa nova coletânea. Ele escreve a mão e fala da dor
de ter que tirar fora estrofes inteiras. “É um daqueles momentos
difíceis. A gente para e pensa: ‘Oh, este é bom. Este inteligente. Não,
este não. Este é besteira”.
Isso é surpresa. A palavra que começa com “m” aqui não seria
apropriada para um arcebispos, mas neste caso parece como uma explosão
de humanidade vindo de um mestre, entregue com um sorriso e um aceno de
cabeça. Agora ele está livre para ser grosseiro se assim quiser; mas
também para desfrutar o dar e receber do diálogo sem a pressão de estar
se cuidando o tempo todo.
Ele ainda está falando em editar poemas, mas não consigo as palavras
corretas para descrever sua experiência de arcebispo, quando diz:
“Trata-se de reconhecer aquelas palavras que são mais inteligentes porém
sem serventia. Isso é realmente importante. E eu nem sempre tenho
certeza de que consigo”.
E Rowan Williams dá risada de suas próprias falhas, um homem liberto, mas feliz.
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Fonte: IHU onlinr, 08/05/2014
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