domingo, 11 de maio de 2014

Rapto, mito e história

 FRANCISCO MARSHALL*
 
No dia 14 de abril de 2014, cerca de 234 (segundo algumas fontes, até 276) meninas entre 16 e 18 anos foram raptadas da escola em que prestavam exame, na cidade de Chibok, nordeste da Nigéria. O crime foi cometido pela Congregação do Povo Tradicional pela Pregação e Guerra Santa, conhecida como Boko Haram, ou “a educação ocidental é pecaminosa”, no idioma Hausa, falado por mais de 52 milhões de africanos. Poucos dias depois, o mesmo grupo raptou mais oito meninas, entre oito e 15 anos, em Waraba, um vilarejo na mesma região. Outras escolas foram alvo do mesmo grupo recentemente, bem como manifestantes que pediam reação das forças de segurança, 52 deles atingidos por bombas e mortos em um protesto na cidade de Gambokou, na mesma região. As fronteiras com Camarões e Chade ajudam na fuga dos bandidos e em sua conexão com os mercados que lhes interessam, de aldeias e grupos tradicionais onde conseguem vender as meninas para fins matrimoniais, por preços na faixa de US$ 12. Algumas meninas fugiram durante o rapto, outras depois, ainda assim não há pistas de seu paradeiro. Mundo afora, cresce a indignação com mais essa barbárie, e o temor de que se repita.

O líder do grupo terrorista criado em 2002, Mohammed Yusuf, assassinado em 2009, atacava a educação ocidental e combatia não só as ideias de Darwin como as noções de que a Terra é redonda e de que a chuva vem de água evaporada pelo Sol. O grupo ataca escolas, igrejas cristãs e demais marcas da presença ocidental nesta região, norte e nordeste da Nigéria, Camarões e Chade. O líder atual, Abubakar Shekau, é um clérigo letrado, e assumiu responsabilidade pelo sequestro das meninas nigerianas.

Há causas complexas para essa violência. Prioritariamente, os fatores tópicos: tensão política, criada ou agravada por choques culturais, e a constituição, por meio do tráfico de armas e de redes terroristas internacionais, de grupos altamente armados e relativamente bem financiados. Insuflados por fanatismo religioso e pelo poder de suas metralhadoras e bombas, esses grupos realizam sem temor os seus piores desígnios; neste caso, contra meninas indefesas, raptadas para variadas violências sexuais, do estupro ao escravismo doméstico. A editoria do PrOA pediu-me para analisar a relação deste rapto com o rapto das Sabinas, tema da história lendária romana, de grande fortuna iconográfica. É neste ponto que o problema se amplia e toca em questões culturais que incluem a civilização ocidental, inclusive em nossa ordem cotidiana, e merecem análise.

O rapto matrimonial é a memória de um rito muito antigo, compartilhado entre povos indo-europeus e presente em diversos mitos e vocabulários, como atestado por George Dumézil e Émile Benveniste. Sua finalidade é propiciar o desligamento da mulher do lar paterno rumo a uma nova unidade doméstica, presidida por outro homem. Esse rito exigia ruptura, por vezes dramatizada na forma de raptos nupciais. O matrimônio não era a festa em que noivo e noiva consagravam sua união e amores, e sim o processo pelo qual a noiva era conduzida ao novo lar, muitas vezes mediante o pagamento de um dote e arranjos familiares; a ordem dos clãs era mais importante que o indivíduo. Com a indenização e com o pacto nupcial acertado, o pai da noiva poderia conduzi-la e entregá-la ao noivo e futuro marido, o que ainda hoje acontece no casamento tradicional, no Brasil como em todo o ocidente cristão. A tradição recente prescrevia também que a noiva deveria entrar na nova casa, após o casamento, carregada nos braços do novo marido, outra memória daqueles ritos antigos, e dos raptos praticados entre gregos, romanos, persas, arianos, eslavos e outros povos da família indo-europeia. Assim considerado, o rapto é parte de um rito de passagem em que se assinala o protagonismo do marido na produção de um novo lar.

A assim chamada Primavera (1476), obra-prima de Alessandro Botticelli (1445 – 1510), testemunha este rito; o episódio à direita, que dá início aos ritos amorosos desenvolvidos na pintura, sob o domínio de Vênus, é a ilustração do poema de Ovídio (o Fasto V, de 2 de maio) que narra como o vento Zéfiro rapta a ninfa Chloris (nome grego), mas logo após arrepende-se e a desposa, quando ela, então, transforma-se em Flora (nome latino). Rapto matrimonial, como foram também o rapto de Ariadne por Teseu e também o rapto de Helena por Alexandre Páris, desencadeador da guerra de Troia.

O caso das Sabinas é apresentado pelo historiador Tito Lívio e pelo biógrafo Plutarco (Vida de Rômulo) como parte dos acontecimentos cruciais da origem de Roma; em Tito Lívio (Ab Urbe Condita, geralmente traduzido como A História de Roma), os sabinos e outros povos vizinhos dos latinos, na Roma recém-fundada por Rômulo, foram convidados para uma festa em honra de Netuno, durante a qual os guerreiros latinos atacaram e raptaram as moças sabinas, e derrotaram os homens desta tribo; por interferência do rei (Rômulo), pactuou-se um a um o matrimônio delas com homens romanos, com os quais elas poderiam gerar homens livres, e Roma reproduzir-se; este mito de soberania representa também a progressiva hegemonia romana sobre os povos adjacentes. O rapto, no mito clássico, ilustra o processo por meio do qual a supremacia masculina conquista a posse de uma mulher, como parte do rito nupcial e da reprodução da ordem social.

Não há dúvidas quanto à sujeição das mulheres nestes processos, sua subordinação a uma autoridade patriarcal convertida em célula estável da ordem social. Tal cultura matrimonial consagra a assimetria de gêneros e predispõe uma série de violências contra a condição feminina, não tão chocantes quanto o rapto das meninas, mas bastante lesivas. Por estas razões, é notável a informação de que as meninas raptadas pelos terroristas do Boko Haram destinaram-se, ao menos em parte, a um mercado matrimonial junto a grupos tradicionais em aldeias e vilarejos vizinhos; embora sejam de etnia e tradição cultural muito diversa da indo-europeia, de tipo centro-africano e muçulmano, estes guerrilheiros são expressão do mesmo comportamento androcrático, ora levado a extremos de boçalidade, como parte de um conjunto de atos terroristas.

O rapto na escola, além de estrategicamente fácil, acentua o efeito de resgatar as mulheres para a tradição no momento em que se emancipavam, no ambiente de uma tradição cultural exótica; as moças faziam prova de física na escola. No fundo cultural e histórico deste ato parece haver sinais da questão social maior, em que homens conquistam e sujeitam mulheres como parte de uma tradição legítima, pacificada em mitos e ritos no ocidente, eventualmente realizada como violência guerreira.
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* Historiador e arqueólogo, professor da UFRGS
Imagem:  Manifestantes protestam em Chibok, na Nigéria, com cartazes pedindo a volta das mais das mais de 200 meninas raptadas de uma escola local pelo grupo terrorista Boko Haram
Fonte: ZH online, 11/05/2014

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