Juremir Machado da Silva*
Cobri várias vezes o Festival de Cinema de Cannes.
Na época, anos 1990, grandes cineastas podiam fazer filmes ruins e diretores adorados podiam retirar-se no auge da fama.
Sem contar que filósofos, como Bernard-Henri Lévy, ousavam fazer filmes.
Na condição de repórter, eu me deliciava e entediava ao mesmo tempo.
Escrevi um texto assim: “Enquanto Giuseppe Tornatori experimenta as
delícias e as agruras do efeito causado por seu filme Uma Pura
Formalidade , amado e odiado, Clint Eastwood faz belas festas e
Bernard-Henri Lévy milita. Os críticos do diretor italiano acusam-no de
esbanjar clichês e de ter feito um filme reacionário em que o escritor
torturado agradece ao comissário violento e elogia-o pelo bom trabalho.
Tornatori justifica-se: era um falso policial e o personagem já estava
morto. A investigação era metafórica; os métodos, replicam os
insatisfeitos, continuam lá: a verdade extraída na porrada”.
Claro que ninguém acreditou.
Eu descobria o mundo das estrelas com certo olhar enviesado: “Mais
tranquilos são os dias de Eastwood. Em companhia de Catherine Deneuve e
de Gilles Jacob, o poderoso chefão do Festival, além de outros
convidados, o ator americano comemorou o 41° aniversário da esposa e o
4° ano da filha. Rolou Coca-Cola e whisky. O importante é o lugar da
festa: o Éden Roc, verdadeira fortaleza das estrelas nos altos de
Cannes. Um refúgio contra curiosos. Quatro jornalistas são selecionados
para, a cada dia, encontrarem lá alguns monstros do cinema”.
Mas foi o filósofo que mais me atraiu: “Bernard-Henri Lévy, em tempos
de luta pela Bósnia, não dispensa a vida luxuosa. Intelectual do
terceiro tipo, conforme a expressão que gosta de usar, não prega o
engajamento permanente e nem a socialização da miséria. Discutir a
barbárie mundial no Éden Roc não lhe parece absurdo. Filósofo e
escritor, nascido na Argélia, em 1948, Lévy explica Bosna , apresentado
na mostra Um Certo Olhar.
JMS – O senhor lamenta ter que sair do livro para o cinema com o objetivo de defender a causa dos bósnios?
Bernard-Henri Lévy – Não. Ainda que eu me preocupe, como Pasolini, 20
anos antes da chegada de Berlusconi ao poder na Itália, com a barbárie
imposta pela televisão. Penso que a lógica do cinema é outra: esse
milagroso conjunto de imagens e palavras. O objetivo do filme é de
apresentar a realidade da guerra: os sérvios são os agressores; os
bósnios, os agredidos.
JMS – O seu filme faz muitas referências à Guerra Civil Espanhola.
Trata-se de uma legitimação de Bosna ou de uma estratégia para chamar a
atenção da opinião pública?
BHL – As imagens de 1936 nos vieram naturalmente. Elas me
sensibilizam. O mais importante é que essas associações aparecem também
para os combatentes bósnios. Defendem-se e estimulam-se com os exemplos
de resistência da Espanha e da luta contra o fascismo. A memória deve
servir para bem medir a tragédia do presente. Essa é a razão do processo
Touvier. A Europa, infelizmente, conforme a expressão de Soljenitsin,
acompanha o avanço da covardia.
JMS – Bosna é um filme com valor estético ou um documentário
manifesto contra o cinismo europeu, a purificação étnica e o massacre de
Sarajevo?
BHL – O crime dos bósnios é não ter petróleo. O presidente Mitterrand
tem razão ao dizer que esta afirmação é simplista. Mas a verdade é que
nenhum interesse vital da Europa foi atingido. Os bósnios aceitam perder
a ajuda humanitária em troca do fim do embargo de armamentos. Um povo
atacado vilmente precisa defender-se”.
Anos depois, intermediei uma vinda de BHL ao Brasil.
Os renunciantes é que me fascinavam: “Havia muita expectativa em
relação a Três Cores: Vermelho , de Krzysztof Kieslowski. O diretor
repete Berlim: muita emoção. Aplausos e vaias depois da projeção.
Narrativa da redescoberta do amor por um juiz aposentado que passa o
tempo a espionar as conversas telefônicas de seus vizinhos até encontrar
uma modelo fulminante. Vermelho , com Irene Jacob e Jean-Louis
Trintignant, tem a qualidade da generosidade e do comedimento: vozes e
imagens nada arriscam e ficam ao abrigo do erro. Há uma certa ironia,
mas a história é demasiado simples e deixa, em comparação com Branco e
Azul , uma sensação de falta. Kieslowski descobriu a fórmula, não
destituída de atrativos, que encanta muitos críticos ainda ditos de
vanguarda: nada de sentimentos transbordantes, de cenas barrocas ou
vulgares ou de invenções inusitadas. A sofisticação consiste em algo
cool. Vermelho lembra um homem bonito e educado, maneiras inglesas de
mito ou clichê, que com seu smoking impecável parte em busca do amor sem
poiera a pegar. Ambiente asséptico.
Sobre o futuro, três respostas de Krzysztof Kieslowsky, 53 anos:
– O senhor abandonará de fato o cinema após Vermelho ?
K. Kieslowsky – Sim. Farei outra coisa. Estou fatigado e quero
descansar em uma cadeira na campanha. Voltarei para a Polônia. Chega.
Fumarei, enfim, meu cigarro em paz.
- Vermelho não é um filme demasiado cool?
Kieslowsky – É um filme justo. Reconheço a singeleza da história. Ela
é bela exatamente por isso. Sempre quis captar a alma dos seres. Revelo
as minhas inseguranças.
- A luz é algo fundamental e poético em Vermelho ?
Kieslowsky – Basta ver. Utilizo-a evidentemente para atingir
determinados objetivos. A cada um o trabalho de percebê-los. Mais do que
a luz, importa o amor e o conflito.
Que tempos!
O futuro era o próximo festival.
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* Sociólogo. Prof. Universitário. Escritor.
Fonte: Correio do Povo online, 22/05/2014
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