quinta-feira, 22 de maio de 2014

Quando os homens sabiam ousar ou desistir

Juremir Machado da Silva*
Cobri várias vezes o Festival de Cinema de Cannes.

Na época, anos 1990, grandes cineastas podiam fazer filmes ruins e diretores adorados podiam retirar-se no auge da fama.

Sem contar que filósofos, como Bernard-Henri Lévy, ousavam fazer filmes.

Na condição de repórter, eu me deliciava e entediava ao mesmo tempo.

Escrevi um texto assim: “Enquanto Giuseppe Tornatori experimenta as delícias e as agruras do efeito causado por seu filme Uma Pura Formalidade , amado e odiado, Clint Eastwood faz belas festas e Bernard-Henri Lévy milita. Os críticos do diretor italiano acusam-no de esbanjar clichês e de ter feito um filme reacionário em que o escritor torturado agradece ao comissário violento e elogia-o pelo bom trabalho. Tornatori justifica-se: era um falso policial e o personagem já estava morto. A investigação era metafórica; os métodos, replicam os insatisfeitos, continuam lá: a verdade extraída na porrada”.

Claro que ninguém acreditou.

Eu descobria o mundo das estrelas com certo olhar enviesado: “Mais tranquilos são os dias de Eastwood. Em companhia de Catherine Deneuve e de Gilles Jacob, o poderoso chefão do Festival, além de outros convidados, o ator americano comemorou o 41° aniversário da esposa e o 4° ano da filha. Rolou Coca-Cola e whisky. O importante é o lugar da festa: o Éden Roc, verdadeira fortaleza das estrelas nos altos de Cannes. Um refúgio contra curiosos. Quatro jornalistas são selecionados para, a cada dia, encontrarem lá alguns monstros do cinema”.

Mas foi o filósofo que mais me atraiu: “Bernard-Henri Lévy, em tempos de luta pela Bósnia, não dispensa a vida luxuosa. Intelectual do terceiro tipo, conforme a expressão que gosta de usar, não prega o engajamento permanente e nem a socialização da miséria. Discutir a barbárie mundial no Éden Roc não lhe parece absurdo. Filósofo e escritor, nascido na Argélia, em 1948, Lévy explica Bosna , apresentado na mostra Um Certo Olhar.

JMS – O senhor lamenta ter que sair do livro para o cinema com o objetivo de defender a causa dos bósnios?
Bernard-Henri Lévy – Não. Ainda que eu me preocupe, como Pasolini, 20 anos antes da chegada de Berlusconi ao poder na Itália, com a barbárie imposta pela televisão. Penso que a lógica do cinema é outra: esse milagroso conjunto de imagens e palavras. O objetivo do filme é de apresentar a realidade da guerra: os sérvios são os agressores; os bósnios, os agredidos.

JMS – O seu filme faz muitas referências à Guerra Civil Espanhola. Trata-se de uma legitimação de Bosna ou de uma estratégia para chamar a atenção da opinião pública?
BHL – As imagens de 1936 nos vieram naturalmente. Elas me sensibilizam. O mais importante é que essas associações aparecem também para os combatentes bósnios. Defendem-se e estimulam-se com os exemplos de resistência da Espanha e da luta contra o fascismo. A memória deve servir para bem medir a tragédia do presente. Essa é a razão do processo Touvier. A Europa, infelizmente, conforme a expressão de Soljenitsin, acompanha o avanço da covardia.

JMS – Bosna é um filme com valor estético ou um documentário manifesto contra o cinismo europeu, a purificação étnica e o massacre de Sarajevo?
BHL – O crime dos bósnios é não ter petróleo. O presidente Mitterrand tem razão ao dizer que esta afirmação é simplista. Mas a verdade é que nenhum interesse vital da Europa foi atingido. Os bósnios aceitam perder a ajuda humanitária em troca do fim do embargo de armamentos. Um povo atacado vilmente precisa defender-se”.

Anos depois, intermediei uma vinda de BHL ao Brasil.

Os renunciantes é que me fascinavam: “Havia muita expectativa em relação a Três Cores: Vermelho , de Krzysztof Kieslowski. O diretor repete Berlim: muita emoção. Aplausos e vaias depois da projeção. Narrativa da redescoberta do amor por um juiz aposentado que passa o tempo a espionar as conversas telefônicas de seus vizinhos até encontrar uma modelo fulminante. Vermelho , com Irene Jacob e Jean-Louis Trintignant, tem a qualidade da generosidade e do comedimento: vozes e imagens nada arriscam e ficam ao abrigo do erro. Há uma certa ironia, mas a história é demasiado simples e deixa, em comparação com Branco e Azul , uma sensação de falta. Kieslowski descobriu a fórmula, não destituída de atrativos, que encanta muitos críticos ainda ditos de vanguarda: nada de sentimentos transbordantes, de cenas barrocas ou vulgares ou de invenções inusitadas. A sofisticação consiste em algo cool. Vermelho lembra um homem bonito e educado, maneiras inglesas de mito ou clichê, que com seu smoking impecável parte em busca do amor sem poiera a pegar. Ambiente asséptico.

Sobre o futuro, três respostas de Krzysztof Kieslowsky, 53 anos:

– O senhor abandonará de fato o cinema após Vermelho ?
K. Kieslowsky – Sim. Farei outra coisa. Estou fatigado e quero descansar em uma cadeira na campanha. Voltarei para a Polônia. Chega. Fumarei, enfim, meu cigarro em paz.

- Vermelho não é um filme demasiado cool?
Kieslowsky – É um filme justo. Reconheço a singeleza da história. Ela é bela exatamente por isso. Sempre quis captar a alma dos seres. Revelo as minhas inseguranças.

- A luz é algo fundamental e poético em Vermelho ?
Kieslowsky – Basta ver. Utilizo-a evidentemente para atingir determinados objetivos. A cada um o trabalho de percebê-los. Mais do que a luz, importa o amor e o conflito.

Que tempos!

O futuro era o próximo festival.
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* Sociólogo. Prof. Universitário. Escritor.
Fonte: Correio do Povo online, 22/05/2014
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