domingo, 25 de maio de 2014

O significado do ceticismo

Calvin e a Matematica
O termo ceticismo foi tão largamente utilizado que adquiriu vários significados distintos, alguns até conflitantes entre si, através do tempo. Numa acepção coloquial, ceticismo tem como sinônimos impiedade, postura crítica, cientificismo, e outras coisas que exprimem uma atitude de desconfiança em relação a certas crenças ou pretensas verdades. Seu significado original, contudo, embora mantenha alguma relação com esses termos, fica um pouco obscurecido por eles na medida em que possui especificidades que eles não discriminam.
 
Sendo assim, sem pretender corrigir a maneira coloquial de entender o conceito, eu gostaria de apresentá-lo de maneira mais estrita, mais próxima desse sentido original ao qual aludi. Minha intenção aqui será expor brevemente o ceticismo filosófico, uma maneira de filosofar criada na Antiguidade que tem grande força ainda hoje. Aliás, é pensando nas correntes mais recentes do ceticismo que escrevo aqui.

Dividirei este texto em três partes: a princípio, apresentarei o ponto de partida do ceticismo, depois o modo como ele se firma, tentando delinear de maneira bem introdutória o que ele seria, por fim, concluirei ressaltando como ele está ligado à vida comum. Obviamente, como este é um texto de divulgação, minha exposição será singela e evitará grandes aprofundamentos e argumentações, tentando mais expor o que está envolvido no assunto que realizar uma defesa ou questionamento da posição cética.

I
Verdade e dogmatismo

O ceticismo se inicia com uma das discussões mais antigas da Filosofia: a busca pela verdade. No período em que surgiu, o movimento cético já concorria diretamente com diversas outras correntes filosóficas as quais acreditavam já tê-la encontrado e que sustentavam bons argumentos para tal. Pirro, o alegado patrono do ceticismo, compunha sua filosofia no mesmo período em que o gigante Aristóteles fazia o mesmo, consequentemente, debatia com os seguidores de diversas filosofias do período, fossem estas inspiradas em autores anteriores, ou mesmo em contemporâneos. Sua maneira de filosofar, contudo, diferia dos demais na medida em que problematizava não as verdades que afirmavam, meramente, mas a própria possibilidade de sustentá-las da maneira como esses filósofos faziam. Vou explicar melhor. 

Quando algum filósofo não-cético produz um discurso filosófico e chega a alguma verdade, ele pretende que ela seja válida em qualquer tempo, em qualquer circunstância e independentemente de ser pensada ou percebida. Se Platão diz que a matéria é eterna, ou que existe um fundamento para a beleza – o Belo em si – do qual todas as coisas belas participam, por exemplo, ele pretende expressar realidades absolutamente verdadeiras e não verdadeiras somente do seu ponto de vista, de sua própria opinião. Tais coisas seriam sempre válidas e por isso não dependeriam de quem as pensasse.
 
Esse entendimento da verdade, como se pode notar, é bastante diferente dos usos comuns que fazemos dessa palavra, de modo que quando afirmamos, por exemplo, que nosso time do coração é o melhor do mundo, ou que não ficaremos satisfeitos com a próxima pessoa a presidir o Brasil, não estamos tratando do mesmo tipo de verdade a que eles se referem, embora, é claro, tais afirmações possam ser verdadeiras. As verdades filosóficas transcenderiam esse discurso comum das opiniões para alcançar algo mais elevado e universal. 

Segundo esses filósofos, seria possível chegar a verdades fundamentais por meio dessa atividade fantástica que é a Filosofia e, por pensarem assim, tais filósofos foram denominados pelos céticos com o nome de dogmáticos. Bem, mas o que é um dogmático (segundo o ceticismo)? Basicamente, é um filósofo que sustenta duas posições:

1. ele acredita ter encontrado uma ou mais verdades absolutas – quaisquer verdades: o mundo não é somente uma criação de minha mente, verdade é dizer o que corresponde aos fatos, o mundo é composto de duas ou mais substâncias e assim por diante. 
 
2. ele acredita ser capaz de provar tais verdades absolutas, quer dizer, o dogmático possui argumentos e justificativas que mostram porque sua verdade absoluta é absoluta e como ela pode ser reconhecida, por qualquer um, como tal. 

Convém dizer que o termo dogmatismo é tão amplo e vulgarizado quanto o próprio termo ceticismo, mas como estamos discutindo posições filosóficas bastante específicas, só importa dizer que, embora céticos diferentes tenham designado o dogmatismo de maneiras diversas também, o dogmatismo costuma expressar essa confiança numa verdade e em certa capacidade de prová-la filosoficamente. 
 
II
A posição cética: suspender o juízo
Os dogmáticos disputaram entre si por séculos para saber quem tem razão em diversos pontos: deuses, realidade, o fundamento do conhecimento e muitas outras coisas, de modo que eles são, efetivamente, a corrente filosófica predominante no mundo. Há e sempre houve muito mais dogmáticos que céticos em qualquer departamento de Filosofia, em qualquer faculdade, em qualquer estado, país ou época, pois o conflito em que eles estão inseridos não os destrói, mas os atiça a desenvolver novas formas de dogmatismos que venham derrotar os demais. 

No entendimento dos céticos, porém, o grande problema das filosofias dogmáticas é que, embora elas creiam ter encontrado a verdade e seu caminho, elas são muitas e contraditórias. Os céticos lhe dirigem uma suspeita natural: se uma filosofia diz ter a verdade e outras também, qual das duas tem razão? Mais ainda: com base em quê podemos criar um critério para julgar qual delas tem razão? Se eu utilizar um critério para julgar a verdade absoluta, não estarei também usando um critério absoluto e entrando em conflito com outros critérios absolutos e, consequentemente, outras filosofias? Como resolver essa diafonia? Aos olhos do ceticismo, a descoberta da verdade por parte das filosofias dogmáticas é também uma batata quente que elas tem que carregar sem poder jogar às demais. 

Diante disso, considerando a profusão de disputas e discursos contrários, os céticos creem que, pessoalmente, ainda não encontraram a Verdade entre as filosofias disponíveis. Não que eles creiam que seja impossível encontrá-la, que as verdades defendidas pelos outros sejam falsas ou qualquer coisa assim, eles apenas acham que, eles mesmos, ainda não a encontraram e que a disputa em torno dela, enquanto dissidência irresolvível, lhes aparece, por ora, como irresolvível. Falta-lhes uma solução para essa bagunça toda. 

Trata-se, portanto, de uma experiência particular: de julgar uma aparência que pode ou não ser verdadeira e sobre a qual eles continuam céticos, ou seja, que eles continuam a investigar. O próprio termo ceticismo vem daí: investigador.

O que fazer, contudo, com os milhares de dogmas disponíveis? Que posição tomar em relação a eles? Posso estar investigando a verdade, mas o que devo pensar sobre as pretensas verdades alegadas pelos outros? 

Segundo os céticos, enquanto investigamos a verdade, é preciso suspender o juízo em relação àquilo que não conseguimos opinar ainda, em outras palavras, é preciso não dar assentimentos à verdade ou à falsidade absoluta das coisas. Os céticos não entram na disputa para dizer quem tem ou não razão. Eles mesmos não sabem quem tem razão ou se eles mesmos tem razão, apenas tomam uma atitude que lhe parece conforme com os meios que dispõe.

III
Ceticismo e vida comum
Pelos séculos através dos séculos os céticos tem sido conhecidos como filósofos que duvidam de tudo, que defendem uma filosofia maluca e insustentável. Descartes (1596-1650), convém dizer, ajudou muito a popularizar essa imagem, embora ele mesmo não fosse nada cético. 

Ocorre, porém, que, se as filosofias dogmáticas requerem critérios absolutos para a verdade, uma vez que ela mesmo deve ser absoluta, isso implicaria, na maneira de entender do ceticismo, num afastamento filosófico da vida comum. Para os céticos, os dogmáticos constroem castelos abstratos e impenetráveis, onde se isolam de uma vida com as demais pessoas, sendo o ceticismo uma maneira saudável de questionar os critérios absolutos, a exigência de uma verdade que transcenda o tempo e o espaço, e manter nossos pés bem presos ao chão. 

Segue-se disso uma proposta de vida que siga aquilo que nos aparece como confiável segundo nossa própria experiência, mas que não se prenda demasiadamente – dogmaticamente, aliás – nem a ela, nem aos nossos delírios filosóficos. O ceticismo, portanto, seria uma espécie de purgação filosófica, um remédio para os excessos da razão, que nos manteria em uma constante reforma íntima de nossas opiniões encardidas, de nossos dogmas mais arraigados. O cético poderá, inclusive, deixar de ser cético um dia caso, numa de suas investigações, tope com a Verdade absoluta numa das esquinas da vida. Nem mesmo essa impossibilidade está excluída definitivamente de seu horizonte, ela está apenas suspensa junto às outras, a todas as outras.

Adendo: algumas indicações de leitura

Smith, Plinio Junqueira. Ceticismo. Rio de janeiro: Zahar, 2004. 
Um livrinho simples e barato (uns R$10,00 em livrarias), escrito por um dos maiores especialistas no assunto. Smith traça um perfil geral do ceticismo tal como ele é discutido atualmente, principalmente na filosofia analítica e na epistemologia contemporânea. O capítulo sobre ética e vida comum, contudo, é uma das melhores partes do livro. 

Pereira, Oswaldo Porchat. Rumo ao ceticismo. São Paulo: Unesp, 2006.
Um dos poucos clássicos da filosofia brasileira, este livro reúne os artigos de um dos filósofos mais importantes do país (felizmente ainda vivo). Porchat mudou os rumos dos estudos sobre ceticismo no Brasil, fundou a corrente filosófica conhecida como neopirronismo, formou uma geração de filósofos de alto nível – como o próprio Plinio Smith, citado acima – e se tornou uma referência latinoamericana de como é possível, não sendo grego, europeu, ou estando morto, fazer boa filosofia.
---------------
Fonte: http://ceticosblog.wordpress.com/24/05/2014

Nenhum comentário:

Postar um comentário