O
termo ceticismo foi tão largamente utilizado que adquiriu vários
significados distintos, alguns até conflitantes entre si, através do
tempo. Numa acepção coloquial, ceticismo tem como sinônimos impiedade,
postura crítica, cientificismo, e outras coisas que exprimem uma atitude
de desconfiança em relação a certas crenças ou pretensas verdades. Seu
significado original, contudo, embora mantenha alguma relação com esses
termos, fica um pouco obscurecido por eles na medida em que possui
especificidades que eles não discriminam.
Sendo
assim, sem pretender corrigir a maneira coloquial de entender o
conceito, eu gostaria de apresentá-lo de maneira mais estrita, mais
próxima desse sentido original ao qual aludi. Minha intenção aqui será
expor brevemente o ceticismo filosófico, uma maneira de filosofar
criada na Antiguidade que tem grande força ainda hoje. Aliás, é
pensando nas correntes mais recentes do ceticismo que escrevo aqui.
Dividirei
este texto em três partes: a princípio, apresentarei o ponto de partida
do ceticismo, depois o modo como ele se firma, tentando delinear de
maneira bem introdutória o que ele seria, por fim, concluirei
ressaltando como ele está ligado à vida comum. Obviamente, como este é
um texto de divulgação, minha exposição será singela e evitará grandes
aprofundamentos e argumentações, tentando mais expor o que está
envolvido no assunto que realizar uma defesa ou questionamento da
posição cética.
Verdade e dogmatismo
O
ceticismo se inicia com uma das discussões mais antigas da Filosofia: a
busca pela verdade. No período em que surgiu, o movimento cético já
concorria diretamente com diversas outras correntes filosóficas as quais
acreditavam já tê-la encontrado e que sustentavam bons argumentos para
tal. Pirro, o alegado patrono do ceticismo, compunha sua filosofia no
mesmo período em que o gigante Aristóteles fazia o mesmo,
consequentemente, debatia com os seguidores de diversas filosofias do
período, fossem estas inspiradas em autores anteriores, ou mesmo em
contemporâneos. Sua maneira de filosofar, contudo, diferia dos demais na
medida em que problematizava não as verdades que afirmavam, meramente,
mas a própria possibilidade de sustentá-las da maneira como esses
filósofos faziam. Vou explicar melhor.
Quando
algum filósofo não-cético produz um discurso filosófico e chega a
alguma verdade, ele pretende que ela seja válida em qualquer tempo, em
qualquer circunstância e independentemente de ser pensada ou percebida.
Se Platão diz que a matéria é eterna, ou que existe um fundamento para a
beleza – o Belo em si – do qual todas as coisas belas participam, por
exemplo, ele pretende expressar realidades absolutamente verdadeiras e
não verdadeiras somente do seu ponto de vista, de sua própria opinião.
Tais coisas seriam sempre válidas e por isso não dependeriam de quem as
pensasse.
Esse
entendimento da verdade, como se pode notar, é bastante diferente dos
usos comuns que fazemos dessa palavra, de modo que quando afirmamos, por
exemplo, que nosso time do coração é o melhor do mundo, ou que não
ficaremos satisfeitos com a próxima pessoa a presidir o Brasil, não
estamos tratando do mesmo tipo de verdade a que eles se referem, embora,
é claro, tais afirmações possam ser verdadeiras. As verdades
filosóficas transcenderiam esse discurso comum das opiniões para
alcançar algo mais elevado e universal.
Segundo
esses filósofos, seria possível chegar a verdades fundamentais por meio
dessa atividade fantástica que é a Filosofia e, por pensarem assim,
tais filósofos foram denominados pelos céticos com o nome de dogmáticos. Bem, mas o que é um dogmático (segundo o ceticismo)? Basicamente, é um filósofo que sustenta duas posições:
1. ele acredita ter encontrado uma ou mais verdades absolutas
– quaisquer verdades: o mundo não é somente uma criação de minha mente,
verdade é dizer o que corresponde aos fatos, o mundo é composto de duas
ou mais substâncias e assim por diante.
2. ele acredita ser capaz de provar tais verdades absolutas,
quer dizer, o dogmático possui argumentos e justificativas que mostram
porque sua verdade absoluta é absoluta e como ela pode ser reconhecida,
por qualquer um, como tal.
Convém
dizer que o termo dogmatismo é tão amplo e vulgarizado quanto o próprio
termo ceticismo, mas como estamos discutindo posições filosóficas
bastante específicas, só importa dizer que, embora céticos diferentes
tenham designado o dogmatismo de maneiras diversas também, o dogmatismo
costuma expressar essa confiança numa verdade e em certa capacidade de
prová-la filosoficamente.
II
A posição cética: suspender o juízo
Os
dogmáticos disputaram entre si por séculos para saber quem tem razão em
diversos pontos: deuses, realidade, o fundamento do conhecimento e
muitas outras coisas, de modo que eles são, efetivamente, a corrente
filosófica predominante no mundo. Há e sempre houve muito mais
dogmáticos que céticos em qualquer departamento de Filosofia, em
qualquer faculdade, em qualquer estado, país ou época, pois o conflito
em que eles estão inseridos não os destrói, mas os atiça a desenvolver
novas formas de dogmatismos que venham derrotar os demais.
No
entendimento dos céticos, porém, o grande problema das filosofias
dogmáticas é que, embora elas creiam ter encontrado a verdade e seu
caminho, elas são muitas e contraditórias. Os céticos lhe dirigem uma
suspeita natural: se uma filosofia diz ter a verdade e outras também,
qual das duas tem razão? Mais ainda: com base em quê podemos criar um
critério para julgar qual delas tem razão? Se eu utilizar um critério
para julgar a verdade absoluta, não estarei também usando um critério
absoluto e entrando em conflito com outros critérios absolutos e,
consequentemente, outras filosofias? Como resolver essa diafonia?
Aos olhos do ceticismo, a descoberta da verdade por parte das
filosofias dogmáticas é também uma batata quente que elas tem que
carregar sem poder jogar às demais.
Diante
disso, considerando a profusão de disputas e discursos contrários, os
céticos creem que, pessoalmente, ainda não encontraram a Verdade entre
as filosofias disponíveis. Não que eles creiam que seja impossível
encontrá-la, que as verdades defendidas pelos outros sejam falsas ou
qualquer coisa assim, eles apenas acham que, eles mesmos, ainda não a
encontraram e que a disputa em torno dela, enquanto dissidência
irresolvível, lhes aparece, por ora, como irresolvível. Falta-lhes uma solução para essa bagunça toda.
Trata-se,
portanto, de uma experiência particular: de julgar uma aparência que
pode ou não ser verdadeira e sobre a qual eles continuam céticos, ou
seja, que eles continuam a investigar. O próprio termo ceticismo vem
daí: investigador.
O
que fazer, contudo, com os milhares de dogmas disponíveis? Que posição
tomar em relação a eles? Posso estar investigando a verdade, mas o que
devo pensar sobre as pretensas verdades alegadas pelos outros?
Segundo os céticos, enquanto investigamos a verdade, é preciso suspender o juízo
em relação àquilo que não conseguimos opinar ainda, em outras palavras,
é preciso não dar assentimentos à verdade ou à falsidade absoluta das
coisas. Os céticos não entram na disputa para dizer quem tem ou não
razão. Eles mesmos não sabem quem tem razão ou se eles mesmos tem razão,
apenas tomam uma atitude que lhe parece conforme com os meios que
dispõe.
III
Ceticismo e vida comum
Pelos
séculos através dos séculos os céticos tem sido conhecidos como
filósofos que duvidam de tudo, que defendem uma filosofia maluca e
insustentável. Descartes (1596-1650), convém dizer, ajudou muito a
popularizar essa imagem, embora ele mesmo não fosse nada cético.
Ocorre,
porém, que, se as filosofias dogmáticas requerem critérios absolutos
para a verdade, uma vez que ela mesmo deve ser absoluta, isso
implicaria, na maneira de entender do ceticismo, num afastamento
filosófico da vida comum. Para os céticos, os dogmáticos constroem
castelos abstratos e impenetráveis, onde se isolam de uma vida com as
demais pessoas, sendo o ceticismo uma maneira saudável de questionar os
critérios absolutos, a exigência de uma verdade que transcenda o tempo e
o espaço, e manter nossos pés bem presos ao chão.
Segue-se
disso uma proposta de vida que siga aquilo que nos aparece como
confiável segundo nossa própria experiência, mas que não se prenda
demasiadamente – dogmaticamente, aliás – nem a ela, nem aos nossos
delírios filosóficos. O ceticismo, portanto, seria uma espécie de
purgação filosófica, um remédio para os excessos da razão, que nos
manteria em uma constante reforma íntima de nossas opiniões encardidas,
de nossos dogmas mais arraigados. O cético poderá, inclusive, deixar de
ser cético um dia caso, numa de suas investigações, tope com a Verdade
absoluta numa das esquinas da vida. Nem mesmo essa impossibilidade está
excluída definitivamente de seu horizonte, ela está apenas suspensa
junto às outras, a todas as outras.
Adendo: algumas indicações de leitura
Smith, Plinio Junqueira. Ceticismo. Rio de janeiro: Zahar, 2004.
Um
livrinho simples e barato (uns R$10,00 em livrarias), escrito por um
dos maiores especialistas no assunto. Smith traça um perfil geral do
ceticismo tal como ele é discutido atualmente, principalmente na
filosofia analítica e na epistemologia contemporânea. O capítulo sobre
ética e vida comum, contudo, é uma das melhores partes do livro.
Pereira, Oswaldo Porchat. Rumo ao ceticismo. São Paulo: Unesp, 2006.
Um dos
poucos clássicos da filosofia brasileira, este livro reúne os artigos de
um dos filósofos mais importantes do país (felizmente ainda vivo).
Porchat mudou os rumos dos estudos sobre ceticismo no Brasil, fundou a
corrente filosófica conhecida como neopirronismo, formou uma geração de
filósofos de alto nível – como o próprio Plinio Smith, citado acima – e
se tornou uma referência latinoamericana de como é possível, não sendo
grego, europeu, ou estando morto, fazer boa filosofia.
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Fonte: http://ceticosblog.wordpress.com/24/05/2014
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