Entrevista*
“Já não é o homem que dá sentido à tecnologia, mas a tecnologia ao homem, e passaremos de uma tecnologia feita pelo homem a um homem feito pela tecnologia”, afirma Andrés Herrero, autor de “La felicidade tecnológica: de un capitalismo sin futuro a un futuro sin futuro”.
Por que esse título?
Porque se atribuiu à tecnologia o papel de nos fazer felizes e nós
estamos exigindo mais dela do que de nós mesmos. A missão da tecnologia é
ampliar nossas possibilidades vitais, facilitar-nos a existência e nos
trazer comodidade e bem-estar, mas não conformados com isso, pretendemos
que preencha-nos a vida, organize e dê um sentido a ela, à custa de
sacrificar, em tudo ou em parte, nossa liberdade.
Qual é o tema do livro e o que o incentivou a escrevê-lo?
Queria comprovar o quanto havia de verdade na tese do filósofo francês Jacques Ellul, de que a tecnologia se tornou uma força autônoma que cresce e se desenvolve independente da vontade do homem.
E a que conclusão você chegou?
A de que a tecnologia não possui vontade, nem aspirações que não
sejam humanas, nem tampouco se rebelou contra o seu criador, mas, sim,
foi este que, conduzido por sua vontade de domínio e possessão,
contagiou-a com todos os seus desequilíbrios e loucuras.
A felicidade pode ser tecnológica?
A tecnologia está se tornando a droga mais poderosa, jamais
conhecida, e para muitos a única felicidade ao seu alcance, com a
vantagem acrescida de contribuir com uma gratificação imediata, que se
pode comprar.
A felicidade tecnológica opera como sucedâneo daquilo que antes nos
era proporcionado por nossos semelhantes, que ao se transformarem em
competidores, tornaram-se perigosos, desse modo, quanto mais longe
deles, melhor...
O capitalismo nos obriga a satisfazermos a nós próprios, algo que sem
a tecnologia não teria sido fácil, já que a tecnologia com sua
prodigiosa capacidade para satisfazer todas as nossas necessidades,
desde a comida até a diversão, tornou-se a aliada indispensável para
conseguir implantar, em escala global, seu modelo individualista de
sociedade.
A tecnologia moderna tem muito de masturbação solitária. Nossa vida
transcorre diante de uma tela. O frente a frente se transformou em
contatos virtuais. Da mesma forma como estreitamos os laços com a
tecnologia, afrouxamos com aqueles que nos rodeiam, acostumando-nos a
aproveitar deles como nossos aparelhos. Abrimos mão de nossos congêneres
com a mesma facilidade em que descartamos nossos aparelhos obsoletos.
As máquinas nos trazem mais felicidade que os humanos, e antes nos
separarmos de nossos filhos, ou de nossa parceira, do que da televisão
ou do celular... e se é o caso aliviar carências afetivas, contamos com
as redes sociais e os amigos de um click... O que mais podemos pedir?
O que a tecnologia representa para você?
A tecnologia faz parte de nós mesmos e é nossa maneira de estar no
mundo. Não é, pois, um elemento externo, alheio, mas, sim, orgânico, que
metabolizamos e assimilamos em um longo processo de adaptação.
Integra-se em nós da mesma forma que nós a ela.
A tecnologia configurou as bases materiais de cada sociedade
histórica humana, desde a tribo mais remota até o estado mais moderno.
Não existe sociedade humana alguma, por mais primitiva que seja, sem
tecnologia. A linguagem é uma tecnologia. Por isso, pretender escapar ou
renunciar a ela, é uma quimera.
A tecnologia se tornou nossa segunda natureza e muito rápido a
primeira. Deixou de operar em um nível privado para passar a um nível
coletivo. Se até agora era a natureza que modificava o ser humano, no
futuro será a tecnologia a encarregada disso. Trocamos os papéis e já
não é o homem que dá sentido à tecnologia, mas, sim, a tecnologia ao
homem. Estamos a ponto de passar de uma tecnologia feita pelo homem, a
um homem feito pela tecnologia; de modelar nosso ambiente, para
modelarmos a nós próprios... contudo, o problema é: de acordo com que
padrão faremos isso?
Porque falar de tecnologia é falar de interesses, e quando o
particular se impõe ao geral, a sorte está lançada. O exemplo nós temos
bem próximo. Do mesmo modo em que tratamos nosso planeta, de forma não
sustentável, mas suicida, não vejo razão alguma para pensar que nós
teremos sorte melhor do que ele, nem me estranharia que uma tecnologia
de domínio como a nossa, acabasse nos transbordando e nos asfixiando.
Você se alinha com os tecnófilos ou com os tecnófobos? Critica a tecnologia ou apenas a sua má utilização?
Discordo tanto do fanatismo de seus detratores tenazes, como de seus
partidários irreflexivos, porque penso que ambos se enganam na mesma
proporção. Nem estamos fatalmente determinados pela tecnologia, sem que
possamos nos defender diante dela, nem a tecnologia é um mero
instrumento que podemos manejar livremente, a nosso bel-prazer. O
razoável seria que nos concebêssemos coletivamente, não empresarial e
nem militarmente, o tipo de tecnologia que necessitamos, ao invés de
desenvolvermos tecnologias que não podemos controlar os seus efeitos,
como a nuclear, a biotecnologia ou a nanotecnologia.
Entretanto, mais do que como força autônoma, eu qualificaria a
tecnologia como força descontrolada. Não é a mesma coisa um carro sem
freios e um carro que conduz a si mesmo, que decide aonde quer ir. O
primeiro é real, o segundo absurdo.
Cabe lembrar que a tecnologia dominante na sociedade é sempre a tecnologia da classe dominante.
No entanto, independentemente disso, a responsabilidade por ela
corresponde a nós, e com a mesma firmeza que proibimos os comportamentos
humanos prejudiciais, devemos invalidar os desenvolvimentos
tecnológicos nocivos como a bomba atômica, a cadeira elétrica ou os
transgênicos, sem nos esquecermos das indústrias contaminantes ou dos
paraísos fiscais.
A tecnologia não é um cheque em branco, do qual podemos dispor da
forma como bem entendemos, mas ao ser uma força que emana do homem, na
qual este projeta sua vontade e materializa suas ambições, nunca poderá
ser neutra, inócua ou inocente. Por sua condição dinâmica e sua enorme
plasticidade, a tecnologia nunca será um meio, a não ser que alguém
considere que seu coração ou os seus rins são. Podemos manejá-la até
certo ponto, mas sem esquecer que ela não apenas obedece ao que lhe é
ordenado, mas também o que não está no script, porque a tecnologia,
assim como a natureza, possui suas próprias leis e estabelece um marco
que nos condiciona na hora de atuar.
Há tempo, Ellul e McLuhan formularam suas leis:
- Para que a tecnologia sirva-lhe, por sua vez, você deve servi-la;
- Todo avanço em um campo supõe um retrocesso em outro
- Ainda que se tente minimizar, a parte negativa não pode ser separada da benéfica;
- Ao alcançar o ponto crítico, suas vantagens se invertem...; etc.
- Todo avanço em um campo supõe um retrocesso em outro
- Ainda que se tente minimizar, a parte negativa não pode ser separada da benéfica;
- Ao alcançar o ponto crítico, suas vantagens se invertem...; etc.
Como você avalia a oposição natureza/tecnologia?
Tão artificial e gratuita como a oposição homem/natureza, fruto
inevitável de nossa incapacidade para viver e respeitar, para produzir e
compartilhar.
Não deixa de ser um cruel paradoxo que quanta mais tecnologia se tenha, mais seja preciso trabalhar...
Outro castigo que não é a tecnologia que nos impõe, mas, sim, nossos
semelhantes. Também temos mais riquezas, alimentos e bens do que nunca
e, no entanto, mais pessoas passam fome, carecem de rendas e teto, etc.
Condenaremos a tecnologia por reduzir o esforço que subsistir nos
requer? Nós a acusaremos por facilitar a nossa existência? Ou, então,
desejamos estar permanentemente ocupados, produzindo, sendo que as
máquinas podem fazer as tarefas mecânicas, repetitivas e penosas melhor
do que nós? Seria um disparate. O fato de haver multiplicado o número de
desempregados é culpa nossa, dos humanos, que repartimos muito mal o
trabalho e as riquezas, não das máquinas.
O capitalismo fez da tecnologia seu braço armado e seu capataz,
aumentando exponencialmente o peso do poder sobre as pessoas, seu grau
de domesticação, dependência, manipulação e exploração. As máquinas nos
controlam com maior precisão que nossos amos.
Contudo, embora a tecnologia seja poder, não é o poder. O poder
reside nos escritórios, não nos circuitos integrados; nas elites e não
nos bits. Que ninguém se engane: a tecnologia não é o inimigo.
Cito textualmente: “A produtividade cresce em menor medida
que a nossa ambição”... Por acaso, carregamos incorporado no sangue
competir, devorar, chegar ao mais alto, pisar nos demais para ser mais
que eles, como uma espécie de gene maligno impresso em nossa natureza,
que não podemos extirpar?
Embora em nós coexistam todos os tipos de tendências, o capitalismo
fomenta, potencializa e recompensa o pior do homem: o seu egoísmo, a
vontade de poder, a cobiça, o engano, o abuso e a falta de escrúpulos.
Como você definiria o capitalismo?
Como um sistema de exploração mais científico do que os anteriores,
que se vale de mecanismos impessoais como o mercado, a competitividade, a
eficiência e a produtividade para intensificar a depredação ao máximo e
extrair até a última gota a utilidade de cada ser, vivo ou inanimado.
A “Felicidad Tecnológica” disseca o capitalismo,
mostrando que é um sistema intrinsecamente perverso que não tem
regulamentação, mas também examina com autocrítico que o comunismo e o
anarquismo falharam, com o objetivo de construir um novo modelo, síntese
de ambos: o ‘equissocialismo’, baseado na democracia
horizontal, no socialismo e na equidade, em que não seja possível
acumular nem dinheiro, nem poder, e em que a tecnologia se subordine às
demandas e necessidades coletivas.
Você não acredita na democracia representativa?
É claro que sim. Acredito que representa fielmente os interesses dos
que mandam. O terreno político de jogo está minado desde a origem.
O 0,01% da humanidade é dona do mundo: de tudo e de todos. Assim como
é proprietária da terra, dos bancos e das fábricas, também é do estado,
da política, das eleições, das leis, da justiça... Essa oligarquia
manipula tudo e nós, os demais, somos apenas seus comparsas. A riqueza
governa, embora não seja o governo. E sem igualdade econômica não é
possível a democracia.
Não vivemos numa democracia, nem existem os direitos humanos: se você
tem dinheiro, tem comida, teto, educação e saúde, caso contrário, morre
de fome e se vê na rua. Apenas se tem os direitos que são conquistados e
defendidos; o resto é papel molhado, contos de fadas.
A única coisa pior do que sermos enganados, é auto-enganarmos. Os direitos humanos não são mais do que o ópio do povo.
Vamos conversar sobre o ‘equissocialismo’. O que é?
Para explicá-lo, voltarei brevemente ao passado.
O estado é um aparato de poder. Centralizar e concentrar as energias
da sociedade nele gera inevitavelmente desigualdade. Desde a época dos
faraós e inclusive antes, passando pelos gregos, romanos, feudalismo,
capitalismo e comunismo, sempre houve uma elite por cima e uma maioria
submetida por baixo. Essa foi a tônica universal de funcionamento. Do
mesmo modo no sistema político: império, reino, república, feudalismo,
capitalismo, comunismo ou democracia, o que não muda é o regime de
dominação. O povo nunca foi soberano, mas, sim, sempre foi oprimido:
escravo, vassalo, súdito ou assalariado, esse foi o seu papel.
Felizmente, pela primeira vez na história, podemos rastrear a
trajetória completa da humanidade, para analisar no que falhamos como
espécie, para não repetir os erros do passado, superar fórmulas
fracassadas, como o capitalismo, o comunismo ou o anarquismo, e nos
concebermos e nos organizarmos socialmente de outro modo, em pé de
igualdade, vencendo os dois obstáculos que até o momento nos impediram: o
poder e a riqueza, ou, o que é o mesmo, a fatal combinação das
hierarquias com a propriedade privada.
Rejeito os políticos profissionais, os partidos políticos e o estado,
e advogo por estruturar a sociedade em comunidades pequenas de até
50.000 habitantes, com ampla autonomia e meios de produção socializados,
trabalhando em regime cooperativo.
Divisão em comunidades que responde à necessidade de nos organizarmos
socialmente em rede, de forma horizontal, participativa e, ao mesmo
tempo, eficaz.
Como podemos alcançar a sociedade ‘equissocialista’ que você defende?
Obviamente para chegar a uma sociedade diferente temos que nos organizarmos de forma diferente.
A segunda premissa é que temos que batalhar pela mudança em todos os
terrenos: institucional e cidadão, político e trabalhista, econômico e
midiático, cultural e educativo, etc.
E para isso é preciso organizar um Movimento Equissocialista
que canalize todas as energias na mesma direção. Estamos falando de um
projeto muito mais amplo que um partido em seu sentido tradicional, que
integre em seu seio o ativismo nas instituições com o da rua e dos
trabalhadores, quebrando a dicotomia representantes/representados,
chefes/subordinados.
Seu funcionamento interno deverá ser totalmente transparente, as
decisões importantes adotadas majoritariamente (será implementado o voto
pela internet), todas as candidaturas individuais, e todos os cargos
revogáveis, não acumuláveis e nem reelegíveis, para impedir a
perpetuação nos mesmos e a constituição de um “aparato” que se aproprie
do movimento.
O movimento terá um partido, um sindicato, uma televisão e um banco
que atuarão como seus veículos, além de contar com empresas de produção e
consumo, hospitais, escolas, etc., que respeitando sua filosofia,
diretrizes e objetivos, disporão de plena liberdade para se organizar
internamente do modo mais conveniente. Haverá um salário mínimo e máximo
para todos os empregados, que será aprovado pela assembleia geral do
movimento, assim como as condições trabalhistas e os altos e baixos que
se produzirem nelas.
Em uma situação ideal, qualquer um de seus membros, além de
participar e votar na assembleia geral do movimento, poderá trabalhar em
alguma de suas empresas, votar nela e participar da gestão, ter conta
no banco do grupo, abastecer-se com produtos do mesmo, etc.
Porém, até que o movimento não tenha alcançado suficiente implantação
e respaldo na sociedade, e as pessoas possam ver que existe outra forma
de fazer as coisas, não será possível reconverter os atuais estados e
nações em comunidades, inaugurando uma nova etapa para a espécie humana.
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* A entrevista é de Miguel Ángel Llana Suárez, publicada por Rebelión, 07-05-2014. A tradução é do Cepat.
Fonte: IHU online, 08/05/2014
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