João Pereira Coutinho*
0 pensamento conservador no Brasil e
em Portugal
passou anos associado às ditaduras.
Graças a uma nova geração de
conservadores,
porém, isso felizmente está mudando
"Explicar o conservadorismo é uma atitude pouco conservadora. Não há
nada para explicar: quando existem valores ou instituições que
sobreviveram aos testes do tempo, não é o conservador que tem de
justificar essa sobrevivência.
São os outros, progressistas de várias escolas ou feitios, que devem
mostrar por que motivo o que existe e resiste tem de ser alterado ou
destruído.
No fundo, a diferença entre conservadores e progressistas pode ser
resumida em duas perguntas. Os progressistas, confrontados com uma
possibilidade de mudança, perguntam: ‘E por que não?’ Os conservadores
preferem a pergunta inversa: ‘E por que sim?’
Resumindo uma longa história, o conservadorismo é o tipo de ideologia
para pessoas que não estão apaixonadas por elas próprias. Não é fácil,
eu sei. Um dos projetos da modernidade foi colocar o indivíduo no centro
do palco, alimentando nele uma importância narcísica que seria cômica
se não tivesse conduzido a resultados tão trágicos.
O conservadorismo é a ideologia que relembra aos homens nossas
limitações intelectuais para conduzir a sociedade rumo a um fim
perfeito. Sabemos menos do que pensamos.
Controlamos menos do que desejamos. Nada disso seria problemático se a
política fosse uma atividade solitária, como pintar uma tela ou escrever
um romance.
Falhar, nessas áreas, pode ser instrutivo ou mesmo nobre. O problema é que a política tem
implicações sobre a vida de milhares ou milhões de seres humanos.
Falhar, em política, é usar vidas alheias na busca de projetos
individuais de poder.
Acreditar que uma espécie intelectualmente imperfeita pode conduzir a
humanidade para resultados perfeitos será sempre a típica receita para o
desastre.
Tendo isso em mente, duas categorias de seres humanos merecem destaque:
os revolucionários e os reacionários. Ambos têm um entendimento do
conservadorismo que oscila entre a ignorância e a má-fé.
Os primeiros identificam o conservadorismo com todo tipo de aberrações
autoritárias, ou mesmo totalitárias, que são o oposto do conservadorismo
cético e pluralista que se procura defender.
Pensar que Hitler ou Mussolini eram ‘conservadores’ não é apenas
ignorância filosófica. É tentar transformar o conservadorismo — uma
ideologia geneticamente antiutópica e antirrevolucionária — em algo que o
conservadorismo não é.
O mesmo se aplica à longa casta de reacionários que transportam para a
política o tipo de mentalidade radical que o conservadorismo condena.
Recusar o presente com nostalgias do passado — ou, no mínimo, com a
ideia insana de que é possível e desejável travar o progresso — é tão
perigoso e patológico como procurar utopias futuras.
Existe, porém, uma questão evidente que merece reflexão: por que motivo
a palavra ‘conservador’ (ou a vulgar expressão ‘ser de direita’)
adquiriu contornos tão pecaminosos no Brasil e no meu próprio país,
Portugal?
A resposta não é metafísica, mas histórica: com duas ditaduras de
direita no cardápio, houve uma espécie de deslegitimização da direita
nos dois países.
Como se o autoritarismo do regime militar brasileiro ou do Estado Novo
lusitano esgotasse todos os sentidos da palavra ‘direita’, reduzida a um
conceito repressivo.
Esse abuso é tão absurdo quanto acreditar que uma pessoa de esquerda
apoia, por definição, a abolição da propriedade privada, o fim da
liberdade individual ou o uso de campos de trabalhos forçados — como
foram os gulags na antiga União Soviética.
Um conservador não deve intrometer-se em discussões de fanáticos — de
esquerda ou de direita — que reduzem a complexidade da sociedade
política a uma luta maniqueísta entre bons e maus.
Um conservador sabe que é possível e desejável repudiar os
ex-presidentes Emílio Garrastazu Médici, no Brasil, e António de
Oliveira Salazar, em Portugal, da mesma forma que repudiamos Fidel
Castro e seu algoz Che Guevara.
Em suma, um conservador entende que defender ditadores não é coisa de gente civilizada.
Felizmente, existe hoje uma nova geração de conservadores — no Brasil e
em Portugal — que recusa esses maniqueísmos pela afirmação fundamental
de que existem valores básicos para o funcionamento de qualquer
sociedade decente e afluente.
Para essa geração, a democracia não está em discussão: como disse o
ex-premiê inglês Winston Churchill, a democracia continua sendo o pior
regime político, com a exceção de todos os outros.
É também uma geração que preza as liberdades individuais; que respeita
as diferentes concepções do bem que existem em qualquer sociedade
pluralista; e que não espera do Estado a solução milagrosa para todos os
problemas.
Esse último quesito é especialmente importante em dois países com
fortíssima tradição patrimonialista. No caso português, o Estado foi,
desde o início do século 12, o agente central da independência, da
segurança e da exploração econômica interna e externa.
Uma herança que os portugueses deixaram aos brasileiros, como se
comprova em qualquer pesquisa de opinião pública sobre o assunto: sempre
que a questão lida com uma maior intervenção estatal, existe uma
maioria que responde afirmativamente a essa intromissão.
É uma maioria que, apesar de tudo, está encolhendo à medida que a
corrupção, a ineficiência e a burocracia estatais continuam a fazer do
Brasil o eterno país de um futuro que continua adiado.
Razão tinha o intelectual americano Irving Kristol: as principais
lições políticas acontecem quando somos forçados a encarar a realidade.
É fato que essa nova geração de conservadores dos dois lados do
Atlântico vem encontrando em autores clássicos, como Edmund Burke e
Benjamin Disraeli, ou em contemporâneos, como John Kekes e Roger
Scruton, sólidos alicerces para a reflexão e a ação política.
Com eles, é possível aprender que a política não é um exercício
criativo, em que uma elite impõe sobre a comunidade um projeto, um
plano, uma visão. Como alguém dizia, sempre que um político tem visões, o
melhor é ele procurar um médico.
Governar é atender às necessidades reais de uma comunidade real. É
saber servir essa sociedade — e nunca servir-se dela para cumprir torpes
desejos ou ambições.
Governar é reformar o que não funciona, conservando o que merece ser
conservado. Governar é jamais impor sobre a vida de terceiros uma única
hierarquia de valores e comportamentos.
Governar é respeitar a lei e não ceder aos caprichos arbitrários dos
homens. Governar é garantir esse espaço de liberdade em que cada
indivíduo procura melhorar sua condição de vida e, ainda segundo o
grande economista Adam Smith, participar do sistema de liberdade natural
a que hoje damos o nome de mercado.
Finalmente, governar é exercer o poder — temporariamente, humildemente
—, e não detê-lo com a avareza doentia de quem se agarra a um tesouro
roubado. Quem se julga dono de um país só pode tratar os cidadãos como
servos ou escravos.
Tudo isso pode parecer pouco para quem tem da política uma visão
inflamada e romântica. A política não pode ser um exercício inflamado e
romântico, mas realista e prudente.
Até porque existem lugares mais adequados e privados para as inflamações saudáveis do romantismo.”
-----------------
*Professor da Universidade Católica Portuguesa
Fonte: http://exame.abril.com.br/02/05/2014
Nenhum comentário:
Postar um comentário