Rubem Alves*
Thoureau, que amava muito a natureza,
escreveu que se um homem resolver viver nas matas para gozar o mistério
da vida selvagem será considerado pessoa estranha ou talvez louca. Se,
ao contrário, se puser a cortar as árvores para transformá-las em
dinheiro (muito embora vá deixando a desolação por onde passe), será
tido como homem trabalhador e responsável. Lembro-me disso todas as
manhãs, pois na minha caminhada para o trabalho passo por um ipê rosa
florido.
A beleza é tão grande que fico ali parado, olhando sua copa contra o
céu azul. E imagino que os outros, encerrados em suas pequenas bolhas
metálicas rodantes, em busca de um destino, devem imaginar que não
funciono bem.
Gosto dos ipês de forma especial. Questão de afinidade. Alegram-se
em fazer as coisas ao contrário. As outras árvores fazem o que é normal —
abrem-se para o amor na primavera, quando o clima é ameno e o Verão
está pra chegar, com seu calor e chuvas. O ipê faz amor justo quando o
inverno chega, e a sua copa florida é uma despudorada e triunfante
exaltação do cio.
Conheci os ipês na minha infância, em Minas, os pastos queimados
pela geada, a poeira subindo das estradas secas e, no meio dos campos,
os ipês solitários, colorindo o Inverno de alegria. O tempo era
diferente, moroso como as vacas que voltam em fim de tarde. As coisas
andavam ao ritmo da própria vida, nos seus giros naturais. Mas agora, de
repente, esta árvore de outros espaços irrompe no meio do asfalto,
interrompe o tempo urbano de semáforos, buzinas e ultrapassagens, e eu
tenho de parar ante esta aparição do outro mundo. Como aconteceu com
Moisés, que pastoreava os rebanhos do sogro, e viu um arbusto pegando
fogo, sem se consumir.
Ao se aproximar para ver melhor, ouviu uma voz que dizia: “Tira as
sandálias dos teus pés, pois a terra em que pisas é santa”. Acho que não
foi sarça ardente. Deve ter sido um ipê florido. De fato, algo arde,
sem queimar, não na árvore, mas na alma. E concluo que o escritor
sagrado estava certo. Também eu acho sacrilégio chegar perto e pisar as
milhares de flores caídas, tão lindas, agonizantes, tendo já cumprido
sua vocação de amor.
Mas sei que o espaço urbano pensa diferente. O que é milagre para
alguns é canseira para a vassoura de outros. Melhor o cimento limpo que a
copa colorida. Lembro-me de um pé de ipê, indefeso, com sua casca
cortada a toda volta. Meses depois, estava morto, seco. Mas não importa.
O ritual de amor no Inverno espalhará sementes pela terra e a vida
triunfará sobre a morte, o verde arrebentará o asfalto.
A despeito de toda a nossa loucura, os ipês continuam fiéis à sua
vocação de beleza, e nos esperarão tranquilos. Ainda haverá de vir um
tempo em que os homens e a natureza conviverão em harmonia.
Agora são os ipês rosa. Depois virão os amarelos. Por fim, os brancos.
Cada um dizendo uma coisa diferente. Três partes de uma brincadeira musical, que certamente teria sido composta por Vivaldi ou Mozart, se tivessem vivido aqui.
Primeiro movimento, 'Ipê Rosa', andante tranquilo, como o coral de Bach que descreve as ovelhas pastando. Ouve-se o som rural do órgão.
Segundo movimento, 'Ipê Amarelo', rondo vivace, em que os metais, cores parecidas com as do ipê, fazem soar a exuberância da vida.
Terceiro movimento, 'Ipê Branco', moderato, em que os violoncelos falam de paz e esperança.
Cada um dizendo uma coisa diferente. Três partes de uma brincadeira musical, que certamente teria sido composta por Vivaldi ou Mozart, se tivessem vivido aqui.
Primeiro movimento, 'Ipê Rosa', andante tranquilo, como o coral de Bach que descreve as ovelhas pastando. Ouve-se o som rural do órgão.
Segundo movimento, 'Ipê Amarelo', rondo vivace, em que os metais, cores parecidas com as do ipê, fazem soar a exuberância da vida.
Terceiro movimento, 'Ipê Branco', moderato, em que os violoncelos falam de paz e esperança.
Penso que os ipês são uma metáfora do que poderíamos ser. Seria bom se pudéssemos nos abrir para o amor no Inverno...
Corra o risco de ser considerado louco: vá visitar os ipês. E diga-lhes que eles tornam o seu mundo mais belo. Eles nem o ouvirão e não responderão. Estão muito ocupados com o tempo de amar, que é tão curto. Quem sabe acontecerá com você o que aconteceu com Moisés, e sentirá que ali resplandece a glória divina.
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* Escritor. Educador.
Fonte: Correio Popular, acesso 10/05/2014
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