sábado, 10 de maio de 2014

As pessoas do BEM


 J.J. Camargo*
 
Cada vez que um fato inacreditavelmente cruel sacode a comunidade, recomeça a discussão sobre a degeneração social e a perda dos valores, e aonde vamos parar.

Minha convicção é de que não conseguimos piorar, porque o conjunto está protegido por uma espécie de barreira ou um firewall intransponível: nascemos puros e, por mais que nos esforcemos para piorar, não conseguimos destruir tudo o que de bom, felizmente, existe por aí. E quando degeneramos, lá vem a geração seguinte para recompor.

A perplexidade com que discutimos, por exemplo, que um pai possa ter matado um filho, mostra apenas que estamos querendo analisar uma aberração com os nossos corações de pais amorosos. E claro que assim tudo parecerá absurdamente incompreensível. Outra causa evidente de distorção é a barulheira do mal e a discrição silenciosa do bem.

Por isso, a dona Mercedes nunca será manchete de jornal. Porque ela é um oceano de bondade, e nem todo o mal que lhe façam mudará o jeito bonachão de acreditar e acolher as pessoas, quaisquer pessoas. Pena que, sendo assim, ela não mereça nem uma notinha de rodapé.

Quando o Inácio bateu à sua porta pela primeira vez, pedindo comida, ganhou um prato improvisado com sobras da janta e se regalou. Há muito não comia nada tão gostoso. No dia seguinte, a queixa se ampliara, estava muito frio, se houvesse também um agasalho velho, seria ótimo. De pedaço em pedaço, o Inácio ganhou um cantinho ao lado da despensa, recebeu com bom humor o ultimato para um banho, e se instalou. Dias depois, contou que estava preocupado com a Milonga, uma cadelinha que deixara com o vizinho debaixo da ponte, mas que ficara sabendo, se negava a comer desde que o dono sumira.

Dona Mercedes respirou fundo e mandou trazer. Ela própria sentia falta de um cãozinho em casa e estava cansada do silêncio que se implantara ali depois que decidira que não tinha mais saúde para manter ativa a pensão que chegara, nos bons tempos, a alojar 15 estudantes.

Agora, a dupla de inquilinos improvisados estava lá para preencher aquele vazio silencioso da solidão.

Soube dessa história quando a Mercedes me procurou, meio constrangida, mas precisando da ajuda do ex-pensionista que, lhe contaram, trabalhava na Santa Casa e entendia de pulmão. Sua preocupação se justificava: descobrira que o Inácio, um fumante inveterado, andava escarrando sangue. Com a intenção de também matar a saudade da pensão, fui ver seu hóspede em casa.

Estava pele e osso, tinha um tumor de pulmão de pequenas células, com expectativa de resposta a quimioterapia, mas péssimo estado geral. Convivemos durante o tempo em que a medicação conseguiu conter o tumor mas, depois de quase dois anos, a doença parecia fora de controle. Quando foi internado em fase final, porque necessitava de oxigênio, Mercedes estava conformada: “O Inácio foi um presente de Deus no fim da minha vida. Nunca conheci uma pessoa mais generosa. Cuidou da Milonga e de mim, com um carinho que a minha família negou. Agora sei que ele também sabe que vai morrer, porque hoje, antes de sairmos de casa, ele pediu um tempo com a Milonga e tenho quase certeza que a sacrificou. Ela também está muito fraca, com um câncer na mama, e realmente não comia nada que não fosse dado por ele. Estou com medo de voltar para casa e descobrir que fiquei sozinha outra vez. E olha que quando minha solidão ficar insuportável, vou anunciar uma greve de fome, só para que venhas me ver!”.

Que desperdício ter negligenciado um convívio tão doce.

Ainda bem que o Inácio tinha mais tempo livre!
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* Médico
Fonte: ZH online, 10/05/2014
Imagem da Internet

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