Perry Anderson*
“A vida não é o que se viveu, mas o que se lembra,
e
como isso é lembrado para ser contado.”
Como formas de escrever
sobre o passado, memórias e autobiografias são empreitadas diferentes,
apesar de na prática não se sobreporem. No limite, um livro de memórias
pode recriar um mundo ricamente povoado por pessoas, sem contudo falar
muito sobre o próprio autor. Uma autobiografia, em compensação, pode
assumir a forma de um retrato puro de si, no qual o mundo e os outros
aparecem apenas como uma mise-en-scène para a aventura íntima
do narrador. Ao recontar sua vida, romancistas já produziram atos de
bravura em ambos os gêneros. Entre as obras modernas, To Keep the Ball Rolling [Para Manter a Bola Rolando], de Anthony Powell – quatro volumes agradáveis, embora lacônicos –, é uma obra-prima do primeiro gênero. O breve As Palavras, de Sartre, é talvez o maior exemplo do segundo. Viver para Contar,
de Gabriel García Márquez, é classificado como livro de memórias por
seus editores, mas há certa dúvida de que, no conjunto, se enquadre
nessa categoria. Márquez é, obviamente, um lendário contador de
histórias. Além disso, possui uma aguda inteligência autorreflexiva,
como podemos observar emCheiro de Goiaba, em que reproduz suas conversas biográficas com Plinio Apuleyo Mendoza.
Em Viver para Contar,
Márquez exerce com comedimento esse outro lado de seus dons. Por opção
artística, construiu um livro de memórias mais próximo, na forma, de um
romance do que jamais se tenha escrito. Começa com a chegada de sua mãe a
Barranquilla, a fim de levar o filho – então com 22 anos – para vender a
casa da família em Aracataca, viagem que fez com que se tornasse o
escritor que é hoje; e termina com o ultimato escrito por ele durante um
voo para Genebra, cinco anos depois, e que transformou uma paixão
esquiva de adolescência em sua futura esposa. Entre esses dois coups de théâtre paralelos,
o autor rememora sua vida até o momento em que deixou a Colômbia, em
1955, numa narrativa que obedece não aos padrões desordenados da
experiência ou da memória, com toda a sua irregularidade, mas às regras
de uma composição perfeitamente simétrica. O livro é dividido em oito
capítulos de tamanhos praticamente idênticos – um arranjo que
corresponde menos ainda à maneira como qualquer vida poderia ser de fato
vivida, como que para sublinhar o fato de estarmos diante de outro
artifício supremo.
*
Desde o início de sua
carreira, Márquez vem praticando dois estilos de escrita relativamente
distintos: a prosa figurativamente carregada, já visível de maneira
brilhante em seu primeiro livro de ficção, A Revoada: O Enterro do Diabo, que teve sua publicação rejeitada na época, com a concessão de que era “poética”; e a concisão objetiva de histórias como Ninguém Escreve ao Coronel ou reportagens como Notícia de um Sequestro. Se, tecnicamente, o registro de Viver para Contar fica
entre os dois, o tom e o efeito do conjunto – e isso decorre da
concepção das memórias – têm a grandeza viva e suntuosa de seus grandes
romances. Estamos ali no mundo de Cem Anos de Solidão ou de O General em seu Labirinto,
com sua densidade metafórica e seus diálogos típicos: sentenças curtas e
sublimes, que funcionam quase como epigramas, de pungência inimitável e
ironia bem-humorada.
O que o livro conta é a
história da juventude de Márquez na Colômbia. Retratos vívidos de seus
pais e avós criam um ambiente familiar dos mais estranhos. Então é
mostrada sua infância, até os 8 anos, com o avô na zona bananeira da
costa do Caribe; os primeiros dias de escola e a pobreza em
Barranquilla, as férias num interior paradisíaco; a subida do rio
Magdalena até um liceu nos Andes; o ingresso na universidade em Bogotá;
uma descrição em primeira mão dos tumultos apocalípticos na capital após
o assassinato do principal político populista do país, Jorge Eliécer
Gaitán; o retorno à costa para fugir dos distúrbios; os primeiros anos
como jornalista em Cartagena; o entusiasmo literário e a dissipação
boêmia em Barranquilla; e, por fim, o trabalho regular como repórter em
Bogotá e a ida ao exterior para cobrir a conferência de Genebra, em
1955. Tudo isso com uma grande variedade de incidentes impressionantes,
detalhes intrigantes e uma sorte extravagante que poucas obras de ficção
seriam capazes de igualar.
No entanto, o resultado não é um Bildungsroman [romance
de formação] do autor, cuja personalidade raramente está em foco, mas a
recriação de um universo assombroso, a costa caribenha da Colômbia na
primeira metade do século XX. Quem acha que a contraparte factual da
ficção de Márquez é, na melhor das hipóteses, uma pálida cópia dela pode
ficar tranquilo. Uma cena impressionante atrás da outra, um personagem
inesquecível atrás do outro, cascatas de gestos que vão além da lógica e
coincidências que vão além da razão fazem de Viver para Contar um
primo dos grandes romances. Esse primeiro volume é um grande e bem
planejado edifício de imaginação literária. É tentador, assim, lê-lo
apenas como uma obra de arte, independentemente de seu status de
documento biográfico.
*
Isso, contudo, seria
diminuir seu interesse. Para entender o porquê, pode-se compará-lo com
as memórias do escritor latino-americano ao qual é mais comumente
associado, e que perde somente para ele em fama. Peixe na Água,
de Mario Vargas Llosa, publicado há mais de uma década, tem uma
estrutura menos convencional. Escrito após a derrota de sua candidatura à
Presidência do Peru, em 1990, alterna capítulos sobre a sua infância e a
adolescência, e a campanha para liderar o país quando tinha mais de 50
anos – um recurso de contraponto que ele usou mais de uma vez em seus
livros de ficção, de Tia Julia e o Escrevinhador até O Paraíso na Outra Esquina.
Nesse formato, os três anos de campanha presidencial ocupam mais espaço
do que os 22 anos até a idade adulta. Só isso já faz desse um livro de
memórias muito diferente do de Márquez. Ainda mais impressionantes,
então, são as semelhanças entre suas primeiras experiências,
misteriosamente próximas em muitos aspectos.
Ambos os escritores
passaram os primeiros anos cruciais da meninice sob o teto de um avô que
os adorava, o patriarca da família – um deles um veterano da guerra
civil na Colômbia, o outro um fazendeiro e prefeito na Bolívia e no
Peru. Os pais, que tinham empregos semelhantes (um era operador de
telégrafo, o outro era operador de rádio) e fizeram casamentos
semelhantes (contra a vontade da família da noiva, de classe social
superior), eram ausentes: um vazio na estrutura emocional da infância,
em que mesmo as mães desempenhavam papel secundário. A iniciação sexual
veio cedo, em bordéis sobre os quais escrevem com afeição maliciosa.
Mais tarde, casaram-se ambos com moças de sua cidade natal. Quando
adolescentes, foram enviados contra a vontade para colégios internos
pelos pais. Formaram-se com alegria nas províncias e experimentaram a
chegada à capital como um infortúnio.
*
Na
universidade, mergulharam numa vida paralela de jornalismo e farras
noturnas. Os dois mostraram habilidade para novelas de rádio, inspirados
pelo mesmo dramalhão – El Derecho de Nacer, de
Félix B. Caignet (sem conotações anacrônicas antiaborto) [No Brasil,
exibida no formato de radionovela e telenovela, em diferentes versões,
com o título O Direito de Nascer]. Em ambos os casos, a grande
descoberta literária da juventude foiFaulkner, cujos romances eles dizem
que os marcaram mais fundo do que qualquer outro. Cada um encerra suas
memórias no mesmo ponto decisivo, quando o escritor – logo depois de
descobrir alguma coisa sobre o interior desconhecido de sua terra (El
Chocó e Amazonas) – deixa o país natal em direção à Europa, para nunca
mais voltar a fixar residência ali.
Uma série de paralelos
desse tipo é um convite para algum futuro Plutarco das letras
latino-americanas. Mas o que eles evidenciam, afinal, são os contrastes
dos dois romancistas e de suas memórias. Apesar de todas as semelhanças
entre as constelações familiares, Vargas Llosa tem – pelo lado materno –
uma herança social mais privilegiada, um clã da elite de Arequipa que
produziu o primeiro presidente peruano do pós-guerra, Bustamante y
Rivero. Classe e cor o situavam mais alto na escala social, naquela que
era uma sociedade rigidamente racista, do que um menino mestiço da
Colômbia poderia chegar. A educação formal também os separou. Márquez
explica quão desafeiçoado era dos estudos na universidade, onde seu pai
insistira que cursasse direito e a qual acabou por abandonar. Vargas
Llosa, ao contrário, teve um brilhante cursus estudantil e
tornou-se assistente do maior historiador de Lima antes mesmo de se
formar. A universidade foi uma experiência central para ele, enquanto
para Márquez não significou nada. Essa diferença explica por que ele foi
para a Europa muito mais cedo, com uma bolsa de estudos em Madri. E
também por que, uma vez na Europa, nunca mais a deixou, tendo vivido
essencialmente em Paris, Londres e Madri, viajando a passeio para Lima.
Márquez, ao contrário, logo retornou à América Latina, terminando por se
estabelecer no México.
*
As
trajetórias divergentes têm seus correlatos atmosféricos no trabalho de
cada um. Na vida dos autores, a história de seu país – medida em termos
de matança, repressão, frustração, corrupção – dificilmente poderia ser
mais sinistra, e isso, é claro, encontra expressão em seus romances.
Mas os retratos que Márquez faz de sua terra natal, mesmo em seus piores
momentos, são repletos de um afeto lírico, um amor imutável, que não
têm equivalentes no mundo de Vargas Llosa, no qual a relação do escritor
com sua terra de origem é sempre tensa e ambígua.
A razão dessa diferença
pode ser encontrada em parte em suas situações individuais. Se, por um
lado, a configuração das famílias de origem era de uma similaridade
impressionante, a voltagem emocional era oposta. A mãe de Márquez,
retratada de forma adorável por ele, era claramente uma mulher de grande
força de caráter, capaz de administrar um marido determinado, ainda que
inconstante, e onze crianças, tanto na prosperidade como na penúria.
O pai de Vargas Llosa, que sem uma palavra abandonou a esposa no quinto
mês de gestação e, dez anos depois, apareceu inesperadamente para
retomá-la e cooptá-lo, foi, em contraste, um pesadelo traumático: temido
pela esposa e odiado pelo filho. Sem nenhum apego por sua terra natal,
acabou por emigrar para os Estados Unidos e morreu como faxineiro em
Pasadena.
Mesmo o melodrama da
primeira experiência sexual dos dois escritores, com roteiros conhecidos
de honra e ultraje latinos, reflete esse contraste. Quando Vargas Llosa
se casou com a tia – naquela família semidesenraizada, não por
coincidência uma boliviana –, seu pai sacou um revólver, denunciou-o à
polícia em Lima e ameaçou matá-lo com cinco tiros, como um cão raivoso.
García Márquez, apanhado in flagrante com a esposa negra de um
policial do interior, também teve de encarar uma pistola, assim como as
palavras: “Traição na cama se resolve na bala.” Mas o sargento que
sofreu a afronta deixou o menino apavorado escapar com a humilhação – em
gratidão a um serviço médico prestado pelo pai de Márquez, e quando
vistos pela última vez, bebiam juntos.
As duas cenas, composições
de um machismo teatral, ilustram duas sociedades diferentes. A poesia e a
humanidade do episódio colombiano capturam o espírito geral de Viver para Contar, assim como os laços de seu autor com a comunidade em que cresceu. Já o título de Peixe na Água inverte a história que na verdade conta. Isso é expresso de maneira mais precisa na primeira edição, intitulada Um Peixe Fora d’Água –
uma inversão que não é a menos importante das estranhezas das memórias
de Vargas Llosa como um todo. Embora escrito num momento de aguda
decepção política, e inevitavelmente um tanto descolorido por ela, o
livro é atravessado pelo horror a boa parte da vida peruana – social e
cultural, bem como política –, que expressa de modo claro sentimentos
havia muito existentes.
As consequências literárias
dessa diferença não são as que se esperam. O rótulo de “realismo
fantástico” – hoje desgastado pelo uso – é habitualmente atribuído aos
romances de Márquez. Nunca se ajustou bem a Vargas Llosa, que não
reconhece o adjetivo. “Tenho uma fraqueza invencível pelo assim chamado
realismo”, observa ele em Peixe na Água. Um dos contrastes mais
significativos da ficção de ambos decorre dessas opções distintas – ou
talvez as dite. O grosso do trabalho de Vargas Llosa situa-se no
presente peruano, contemporâneo à sua própria experiência. A principal
exceção são os deslocamentos, não apenas no tempo, como também no espaço
– o Brasil de A Guerra do Fim do Mundo ou a França e os mares do sul de O Paraíso na Outra Esquina.
Em compensação, nenhum dos
grandes romances de García Márquez representa a época em que ele próprio
se tornou escritor. Macondo desaparece na Grande Depressão. O patriarca
pertence ao mundo rústico de Juan Vicente Gómez. Os tempos do cólera
são vitorianos. O general expira com o fim da Restauração. A modernidade
é alérgica à mágica. Os poderes de Márquez sempre necessitaram de uma
volta ao passado para serem exercidos com plena liberdade.
*
É
claro que, na mente do público, o que provavelmente distingue os dois
escritores é a imagem convencional de suas posições políticas – García
Márquez como amigo de Fidel Castro, Vargas Llosa como devoto de Margaret
Thatcher, figuras respectivamente da esquerda ecumênica e da direita
liberal. Tal polaridade existe, é claro. Mas, ao olhar para a escrita em
vez de para as filiações, percebemos um contraste mais impressionante.
Vargas Llosa foi desde cedo, e assim permanece, um animal político. Como
estudante em Lima durante a ditadura de Odría, foi um ativo militante
comunista, levado para o partido por Héctor Béjar, que mais tarde, nos
anos 60, comandaria a primeira guerrilha peruana; ao chegar à Europa,
mergulhou na teoria marxista na qualidade de entusiasta da Revolução
Cubana. No começo dos anos 70, quando rompeu com a esquerda por causa de
Cuba, não se recolheu à literatura simplesmente, como outros, mas
tornou-se um admirador apaixonado de Hayek e Friedman, e um dos
principais defensores do capitalismo de livre mercado na América Latina.
Sua candidatura à Presidência do Peru, com o apoio da direita
tradicional, não foi um capricho repentino, mas consequência de uma
década de atividade pública consistente. Logicamente, sua ficção – desde
o primeiro retrato da academia militar em A Cidade e os Cachorros, passando pelas conspirações revolucionárias em Conversa na Catedral e História de Mayta, até A Festa do Bode – usa os conflitos políticos contemporâneos diretamente como tema organizador.
Esse nunca foi o caso de García Márquez, e Viver para Contar ajuda
a explicar o porquê, apesar de permanecer algum mistério. Ele retrata
um jovem, vindo da costa para o altiplano durante a adolescência, tão
absorvido pelos temas literários – primeiro e acima de tudo pela poesia –
a ponto de não ter praticamente nenhum interesse pelos assuntos
públicos. A Colômbia já se encontrava num estado de grande tensão
política em seus últimos anos de escola e, assim que chegou à
universidade, o país sucumbiu à guerra civil. Em seu capítulo mais
poderoso, Viver para Contarpinta um panoramaao estilo de Goya
do terremoto social que engolfou Bogotá quando Gaitán, seu político mais
popular, foi assassinado, em 1948. De sua pensión a três
quarteirões de distância, García Márquez correu para a cena, chegando a
tempo de presenciar o linchamento do assassino e a irrupção de uma maré
de tumultos e saques que varreu a cidade. Mas sua reação, tal como se
recorda, foi simplesmente voltar à pensão para terminar o almoço.
Encontrando-o na rua, um parente mais velho – o qual se tornou um dos
líderes da junta revolucionária que tentou direcionar os tumultos para
um levante contra o governo conservador – instigou-o a participar dos
protestos estudantis contra o assassinato. Em vão. Aterrorizado com a
destruição e as mortes em massa nos dias seguintes, quando o Exército
entrou na cidade para restaurar a ordem, seu único desejo era fugir.
A violênciaque devastou a
Colômbia na década seguinte, opondo os liberais aos conservadores que se
mantinham no poder, ceifou 300 mil vidas – uma catástrofe pior do que
qualquer outra que o Peru tenha sofrido. Esse foi o pano de fundo
histórico do início da carreira de Márquez como jornalista e escritor.
Mas ele parece ter continuado misteriosamente intacto. Apesar de ser
colunista regular de um diário de Cartagena, escreve que “no meu
ofuscamento político da época, eu nem sabia que a lei marcial havia sido
imposta de novo no país”. Em Barranquilla, pouco depois, “a verdade de
minha alma era que o drama da Colômbia me atingia como um eco remoto, e
me comoveu apenas quando transbordou em rios de sangue”. Essa confissão
nos desarma, mas a distinção não se sustenta: o drama da Colômbia era o
derramamento de sangue. Parece que a realidade foi que o jovem
literato, inteiramente envolvido em descobertas e experimentos da
imaginação, de fato ignorava o destino de seu país naqueles anos.
Era mais fácil agir assim
nas cidades costeiras, já que o litoral do Caribe, embora não estivesse
imune às chacinas sectárias, foi poupado do pior da violência que
grassava nas fronteiras cafeeiras das terras altas. A identificação de
Márquez com sua região – “o único lugar em que realmente me sinto em
casa” – conferiu à sua escrita uma intensidade luminosa, mas parece
também tê-lo protegido, ou cegado, dos padrões e forças mais amplos da
nação. “A Colômbia sempre foi um país com uma identidade caribenha que
se abria para o mundo pelo cordão umbilical do Panamá”, escreve. “Sua
amputação forçada nos condenou ao que somos hoje: uma nação com uma
mentalidade andina, cujas circunstâncias favorecem que o canal entre os
dois oceanos pertença não a nós, mas aos Estados Unidos.”
O lamento é palpável e
significativo. Não é exagero dizer que as terras elevadas dos Andes, que
formam o cerne da sociedade colombiana, permanecem uma espécie de livro
fechado para Márquez. Não há dúvida de que vem daí, em parte, o
silêncio em Viver para Contar a respeito da guerra civil durante a qual se passa boa parte da história.
*
A única aventura de Márquez na história contemporânea, Notícia de um Sequestro,
humana e cativante como relato do episódio final da carreira de Pablo
Escobar, confirma certo mal de altitude intelectual. Falta-lhe a
compreensão do contexto social da guerra da droga na Colômbia ou mesmo
uma visão crítica da oligarquia que a comandava. Lendo o livro, ficamos
tentados a achar que, no fundo, Márquez permanece tão apolítico quanto
era no início.
Isso é um erro, como mostra a sequência de Viver para Contar.
Mas tanto suas memórias quanto sua ficção sugerem uma mente com uma
maravilhosa sensibilidade intuitiva para o temperamento, as cores e os
detalhes do mundo em que cresceu, sem muita consideração pela definição
de suas relações ou estruturas. Por esse relato, é difícil situar com
precisão a família de Márquez na escala social. Seu avô, apesar de ser
representado como um patriarca com alguma substância, parece não ter
sido originalmente mais do que um artesão, ainda que ourives; a base
econômica da lendária casa de Aracataca – o pai é descrito como alguém
que pediu a mão de uma “filha de família rica” – é obscura. Os altos e
baixos das venturas do pai, da extrema pobreza ao conforto modesto –
aparentemente sem relação com a proliferação dos onze filhos –, são
apenas um pouco menos incompreensíveis. Com o passar do tempo, as
conexões entre o clã se revelam: um tio na polícia de Cartagena, capaz
de arranjar empregos; um professor em Bogotá, dono de uma grande
livraria. Cabe a nós tentar adivinhar como se encaixava o jovem Gabito
nessa hierarquia complicada de classe e cor.
O que dizer, finalmente, do
autorretrato que emerge dessas memórias? Ele é curiosamente oblíquo.
Márquez oferece um relato abrangente do desenvolvimento de sua vocação
literária, do tempo de escola até mais ou menos seus 20 anos, e muitos
incidentes cativantes ou encontros arrebatadores em sua jornada rumo à
maturidade. Mas não está tão claro como ele era enquanto menino ou
jovem. A autoconfiança que seu avô lhe deu na infância parece nunca
tê-lo abandonado, salvo nas brevíssimas turbulências da adolescência.
Mas há poucos sinais de ambição deliberada. Ele se fecha em sua timidez,
mas obviamente era companhia animada, já que nunca lhe faltaram amigos.
Mas não revela o quanto se empenhou em procurá-los ou até que ponto era
visto apenas como um boêmio inconsequente.
Nas transações com o sexo
oposto, as iniciativas de sedução partem na maioria das vezes das
mulheres. Apesar de dizer que quando voltou a Barranquilla “tinha a
timidez de uma codorna, que eu tentei contrabalançar com arrogância
insuportável e franqueza brutal”, ele parece ter se dado bem em geral
com parentes mais velhos e amigos, em todos os lugares por que passou.
Com exceção de um conflito com o pai sobre a escolha de sua carreira,
nenhuma grande discussão marca esse progresso. Ele cita apenas
ocasionalmente os lados mais vulcânicos de sua personalidade – “acessos
de raiva sem nenhum motivo”, “birras pueris” –, mas não oferece mais
detalhes.
*
Em vez de fazer uma autoanálise detida, Márquez oferece um espelho generoso aos seus contemporâneos. Viver para Contar contém
uma abundante galeria de parentes, amantes, colegas, mentores e
aliados, capturados num parágrafo ou em uma ou duas páginas. Isso basta
para deixar impacientes os leitores anglo-saxões, mas é uma lealdade
atraente, que distingue suas memórias das de Vargas Llosa. Um Peixe na Água,
pensado desde o início para um público internacional, é mais tênue
nesse sentido. As memórias de Márquez são destinadas aos leitores
colombianos antes de tudo.
Elas anunciam seu princípio
de construção no início, num manifesto gravado como epígrafe na
abertura do livro: “A vida não é o que se viveu, mas o que se lembra, e
como isso é lembrado para ser contado.” Tomado literalmente, é um
convite à memória seletiva, com todas as facilidades de uma amnésia
conveniente. Não há motivo para supor que Márquez tenha abusado de sua
máxima. Mas é sempre legítimo perguntar em que medida as memórias
correspondem aos fatos. Independentemente de quanta licença concedamos a
um artista em sua reconstrução do passado, não valorizaríamos do mesmo
modo o resultado se tudo se revelasse imaginário.
Nesse caso, a narrativa dá
ensejo a alguns pontos de interrogação na margem. Sexo, política,
literatura: cada um deixa uma penumbra de incerteza em seu entorno.
Comentando “os modos de caçador furtivo” de seu pai, Márquez diz que
houve um período em que ficou tentado a imitá-lo, mas logo descobriu que
se tratava da “mais árida forma de solidão”. Nada em seu relato
corresponde a essa breve afirmação. Em Cheiro de Goiaba, ele diz que, quando estava na universidade, pertenceu a uma célula do Partido Comunista Colombiano. Não há vestígio disso emViver para Contar.
Entre os autores que o
formaram, ele enfatiza Faulkner. Mas a afirmação de que “cada sentença
deve ser responsável pela estrutura toda” e o uso celestial do adjetivo
(ele diz ter aversão a advérbios), que é a marca de sua prosa, derivam
de Borges, que ele pouco menciona. A saída do grupo de Barranquilla que
produzia a revista literária Crónica, cadinho de seu primeiro
florescimento como escritor, é apresentada como uma partida amigável,
sem dificuldades ou ressentimentos. No entanto, entrega que renunciou ao
cargo de editor num acesso de raiva algum tempo antes, por razões não
especificadas. A ruptura pode ter sido mais dolorosa do que ele sugere.
Tais discrepâncias têm
importância? A epígrafe as absolve. Mas uma vida e uma história nunca
são a mesma coisa, e os interstícios entre elas – mais largos ou mais
estreitos – são inevitavelmente parte do interesse de cada uma. Na luz
resplandecente dessas memórias, há um brilho tênue à distância, próprio
da latitude.
* Ensaio publicado originalmente em
Espectro: da direita à esquerda no mundo das ideias, de Perry Anderson.
Espectro: da direita à esquerda no mundo das ideias, de Perry Anderson.
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* Perry Anderson é um historiador inglês nascido em 1938. Professor da
UCLA, Estados Unidos, foi editor da New Left Review, a principal revista
de esquerda do mundo anglófono. Ensaista político, Anderson é conhecido
por seu trabalho em história intelectual, e filia-se à tradição do
Marxismo Ocidental do pós-1956. É autor, entre outros, de Espectro e
Afinidades seletivas, ambos publicados pela Boitempo.
Fonte: http://blogdaboitempo.com.br/2014/04/17/lembrancas-tropicais-gabriel-garcia-marquez/
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