Antonio Prata*
Quem mais perdeu com a morte da carta não foi o amor ou a amizade, meus caros; foi o carteiro
QUE INJUSTO é o mundo: tanta saliva gasta discutindo se o Kindle acabará
com o livro e se o iPad engolirá o jornal, mas nem uma lágrima rolada
pela carta, essa personagem central dos últimos séculos, que foi
solapada pelo e-mail e sumiu sem que nos déssemos conta, sem que
pudéssemos velá-la ou guardar luto. Partiu da vida para entrar na
história e não deixou, vejam só, sequer uma carta de despedida.
Claro que ainda nos chegam envelopes por baixo da porta, todos os dias,
mas isto que agora encontramos próximo ao capacho assemelha-se tanto a
uma carta como um jingle a uma sinfonia. Contas, propagandas, cardápio
de restaurante chinês: tristes arremedos das gloriosas folhas de papel
que outrora relataram o descobrimento de continentes, alimentaram amores
impossíveis, aproximaram amigos distantes; ringues nos quais
travaram-se as mais apaixonadas pelejas intelectuais.
Não, não cederei à tentação barata da nostalgia dizendo que o mundo era
melhor antes, que as emoções escritas à mão são mais verdadeiras que as
digitadas no teclado. Uma longa carta que levou três semanas para chegar
da Europa não bate todos os encontros que nos proporciona o e-mail numa
única tarde: um link enviado por meu pai, com uma gravação do hino do
Linense, as fotos do Paulinho com a Glória no colo, as notícias do
Chico, da Belle e da primavera em Chicago, as primeiras impressões da
Cla na tríplice fronteira, o vídeo dos Corsaletti, assando seis porcos
no rolete, num sítio em Anastácio.
Quem mais perdeu com a morte da carta não foi a amizade, meus caros, não
foi o amor nem a profundidade: o grande órfão do declínio postal foi o
carteiro. Esse distinto profissional, que em sua época áurea era um
pouco enfermeiro, bombeiro, cupido -um serafim de baixo escalão,
trazendo em sua bolsa verde a preciosa literatura cotidiana-,
profanou-se, transformou-se em traficante, cobrador, garoto-propaganda
de drenagens linfáticas e Chops sueys.
Havia uma ingenuidade na figura do carteiro, algo que pertencia
essencialmente ao século 20 e que não cabe no 21: um homem a pé ou de
bicicleta, um personagem do Jacques Tati, que vinha entregar à mão um
bilhete escrito também à mão. Tudo isso se foi com um clique. Para o
nosso bem, é verdade, mas se foi; era bonito e deve, portanto, ser
lembrado.
É com este intuito que eu sugiro que a categoria processe a Microsoft
por danos morais. Ou melhor, que processe os herdeiros de Samuel Finley
Breese Morse, que por volta de 1835, em Poughkeepsie (NY) inventou o
telégrafo, tornando possível enviar informações através de um fio -e deu
no que deu.
O processo não visaria uma compensação material, mas simbólica (afinal,
os carteiros não perderam os empregos, apenas a aura). Que seja
construída, na praça mais simpática de cada cidade, uma escultura
discreta, dedicada à memória de todo aquele que arriscou a vida pelo
mundo, no frio cortante e no calor escaldante, perseguido por cachorros e
à mercê de malfeitores, para que matássemos nossas saudades: um
Monumento ao Carteiro Desconhecido. E -quem sabe?-, também ao século 20,
que mal terminou e já nos parece tão estranhamente distante.
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* Colunista Folha
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