domingo, 5 de maio de 2013

Entrevistas marcantes: Baudrillard e o virtual

Juremir Machado da Silva*

 

Jean Baudrillard, o apocalíptico tranquilo

Erudito e brilhante em meio aos representantes de uma geração deslumbrada pelas metáforas rebuscadas, Jean Baudrillard aterroriza com suas ideias sobre o fim do fim, as massas indiferentes e sobre os fenômenos extremos. A entrevista reproduzida a seguir é o resultado de uma série de encontros com o autor de O Sistema dos Objetos, À Sombra das Maiorias Silenciosas, Esquecer Foucault, A Transparência do Mal, Da Sedução , etc. 

A primeira parte é produto de conversa acontecida em Porto Alegre, em 1993, por ocasião do seminário “A Decadência do Futuro e a Construção do Presente”, organizado pela Usina do Gasômetro. A segunda, mais longa, representa a continuação do diálogo, em Paris, em dezembro de 1994, pouco tempo antes da publicação de O Crime perfeito.

Jean Baudrillard, nascido em 1929, analisa os meios de comunicação de massa, as ilusões finalistas, os dilemas da comunidade europeia, a morte das utopias, a era da tecnologia, a pós-modernidade e o lugar de Nietzsche, Heidegger e Foucault na reflexão contemporânea. Baudrillard morreu em 2007.

Parte I

JMS – Em a Ilusão do Fim, o senhor escreveu que o fim chegou ao fim. Há algo de apocalíptico em sua posição sobre o fim da história ?
Jean Baudrillard – A minha perspectiva é clara : esperava-se uma solução final, um momento de ruptura que, apesar da catástrofe, abriria o caminho ao reino do bem. Descobrimos que a história não atingirá um ponto terminal, pois, por uma estranha reversão, ela já chegou ao fim. Nada há de apocalíptico nisso dado que não sou profeta e nem prevejo a superação do mal pelo bem ou o alcance do bem após a violência do mal. Sonhava-se com o cumprimento de metas históricas: mas a história não tem finalidade. Ela está aquém ou além do fim. A história perdeu o fim. A turbulência, o efeito perverso, deslocou o mundo real para o virtual. Vivemos uma sorte de simulação do real. Nada disso quer dizer que os acontecimentos chegaram ao fim ou que não haverá mais movimento. Sejamos cristalinos: um modelo linear de representação da realidade esgotou-se. Passamos à fase dos fenômenos extremos.

O senhor afirmou, em A Transparência do Mal, que a imagem antropológica mais significativa do século XX será a de um homem, em um dia de greve, sentado diante de sua televisão fora do ar. Qual a relação real entre massa e televisão ?
Jean Baudrillard – A tela vazia é uma metáfora: refere-se ao circuito destituído de sentido que se estabelece. O telespectador, refratário à mensagem, neutraliza a televisão pela inércia. A televisão converte o homem, por seu turno, em observador passivo. Quanto mais as pessoas observam a virtualidade da imagem, fixadas diante do televisor, mais elas se afastam dos acontecimentos reais. Mas não tenho nenhum ressentimento em relação aos meios de comunicação de massa. Estou convencido, entretanto, que eles não podem mobilizar e direcionar as massas. É demasiado simplista responsabilizar a televisão pelos males do mundo contemporâneo. Os meios de comunicação de massa fazem parte da catástrofe atual e todo mundo os faz, de uma certa maneira, pois cada um passa diante da câmera, em um ritual de psicodrama, para contar o seu caso, a sua crise, o desespero, a pequena história pessoal. A televisão é um entre outros mecanismos de construção do simulacro do real em que estamos mergulhados. Não cabe exagerar os seus poderes.

A política, que tanto interessou aos intelectuais até os anos 60, está morta? Ou se trata de um diagnóstico pós-moderno destituído de sentido ?
Jean Baudrillard – A ação política está morta. Não existem mais atores sociais no sentido clássico. A política tirava a sua razão dos projetos de organização com a finalidade de construção de uma sociedade específica. Hoje, infelizmente, não há controle sobre o organismo social, que se gere sozinho, autônomo e fechado. Ninguém é responsável individualmente por nada. A perversão, ou a reversão da história, acontecida neste final de século, assenta-se sobre a indiferença. Não anuncio nenhum estrondo, apenas o desinteresse. Entramos no transpolítico: o estágio em que o social, o político e o futuro entraram em decadência. É o tempo de vírus, da permanência do mesmo sob outra forma: os vícios dos grandes sistemas permanecem na proliferação dos microssistemas.

A Europa vive o drama da guerra, do racismo, do fracionamento nacional tardio, da xenofobia e da incomunicabilidade entre culturas que ocupam um mesmo território. O Estado-nação acabou ?
Jean Baudrillard – A Europa navega na ambiguidade. A Comunidade Europeia aparentemente está em curso, em construção, mas, de fato, começou a se desintegrar e avança para a destruição. Os anseios de separação nacional são compreensíveis na medida em que o socialismo real amordaçou aspirações seculares. Em todo caso, o fundamental é que com o Estado-nação ou sem ele o pior aparece no horizonte. A era planetária da economia determina que as noções de Primeiro e Terceiro Mundo sejam abandonadas. Na comunhão trágica dos acontecimentos, vazios de simbologia futurista, nada mostra uma saída, pois esta era uma esperança finalista. Os Direitos Humanos são apenas simulacros de uma democracia indigente e não resolverão os dilemas essenciais. Servem de fachada, de falsa, embora não premeditada, capa ao circuito fechado, hermético, do sistema perversamente autonomizado.

Com ironia, o senhor recomendou à esquerda que não chegue ao poder, preferindo o quase-poder, com a legitimidade moral dos perdedores respaldados por milhões de votos. Há, ainda, um lugar para a esquerda no mundo ocidental ?
Jean Baudrillard – A esquerda chegou atrasada ao poder. Coube-lhe, na Europa, administrar a impossibilidade da mudança, sem escapar ao capitalismo. No momento, evidente, não há poder para a esquerda conquistar. As grandes ideias, modernas, naufragaram. Um esquerdista na presidência de um país democrático não pode fazer nada de radicalmente diferente. O fim do político implica o desaparecimento da decisão. A liberdade é nula. Não há mais decisão final. A política deixa-se levar pela apatia. Pensava-se que o político desapareceria, engolido pelo social, mas ambos pereceram. Os negócios da política acontecem como que em um estado vazio, sem eco, sem ressonância e sem relevância. Claro, os políticos, em nome do marketing, procuram esconder o desaparecimento da política. A esquerda joga em campo dissipado, impotente para realizar as promessas, perdidas no passado teleológico da modernidade.

Parte II

O Mundo vive a era da tecnologia implacável. Do ponto de vista das origens da cultura ocidental pode-se falar em ruptura com a fonte de influência grega clássica? É esse o Crime Perfeito da realidade virtual?
Jean Baudrillard – Técnica é uma palavra vaga, mas as condições de exercício do pensamento e da sensibilidade mudaram completamente a partir do momento em que se instaurou uma polarização global em função da técnica, colocada como o elemento dominante. O pensamento, os sentidos, a percepção e a metafísica do Sujeito tornam-se cada vez menos relevantes, impotentes, diante da física ou metafísica tecnológica. Heidegger disse que no limite a técnica representa o estágio mais acabado da metafísica. Nesse sentido, entretanto, pode-se afirmar que há uma continuação do primado grego, sendo a época atual responsável pela realização das, sei lá como dizer, utopias racionais gregas. Não é mais, porém, a Ideia, o Mito, o Fantasma, o Pensamento ou o Sonho; trata-se da realidade tecnológica: eis a ruptura. Tudo está realizado ou virtualmente realizado. Para alguns isso significa uma catástrofe. Há, sem dúvida, uma dissociação do universo mental (subjetivo, reflexivo, filosófico…) pela passagem ao ato.

O Ocidente acostumou-se a louvar a influência grega a ponto de ancorar praticamente todo o seu saber nessa pátria mítica do pensamento. Teria a filosofia nascido na Grécia mas não a ciência?
Jean Baudrillard – Não sou um especialista em epistemologia grega. Posso, em todo caso, me colocar algumas questões: será que a cultura grega carregava o potencial do desenvolvimento técnico e do progresso? A técnica não é somente uma materialidade, é também uma ideia. A ideia do progresso infinito, da transformação do mundo, não pertence à Grécia. Quanto a isso algo mudou. Essa espécie de lógica transformadora, progressiva ao infinito, faz parte da nossa modernidade e é ela que nos conduz à catástrofe, no sentido neutro, a uma forma de revolução, literalmente falando, do Mundo, algo que não constava na filosofia contemplativa dos gregos, que acreditavam numa ordem das coisas. Nós, em contrapartida, queremos sempre perturbar essa ordem do mundo para atingir um modo superior de existência. Buscamos, em consequência, a desordem em nome da perfeição. Os gregos aceitavam o dado, as aparências e a ordem como objetos de contemplação positiva. A filosofia grega antiga é relativamente feliz e gera hipóteses sobre o mito original, mas partindo de uma relação amorosa com o universo, enquanto nós, modernos, investimos na reflexão com base numa visão infeliz. As diferenças são reais. Claro que existem ainda laços do Ocidente atual com a Grécia: o pensamento, a teoria e a razão, por exemplo. Embora os gregos não fossem tão razoáveis quanto se chega a imaginar por vezes. A razão convivia com o princípio do caos. Eles nunca se propuseram de fato a reduzir, a mutilar, o caos para assegurar a hegemonia definitiva da razão. Esse fantasma catastrófico nos pertence.

Precisar certos termos nestes tempos de babel comunicacional é importante: ciência e tecnologia são para o senhor sinônimos, causa e consequência ou podem reger-se por princípios até mesmos opostos?
Jean Baudrillard – São coisas diferentes: a ciência é formal, estabelece e critica os dispositivos de pensamento; a tecnologia é a passagem ou a precipitação no real. Elas estão, portanto, ligadas embora possuam especificidades. Inseparáveis, podem bater-se. A tecnologia existe em todas as culturas, mesmo sob formas muito simples. Já a aliança entre ciência e tecnologia em profundidade faz parte do nosso imaginário. Logicamente diferentes, ciência e tecnologia encontraram unicamente em nossa cultura um tal entrelaçamento, que é, aliás, perigoso para a ciência. A ciência torna-se cada vez mais uma análise ambígua do mundo; a certeza quebrou-se e o princípio de realidade desapareceu. A tecnologia, porém, existe por um princípio de realização incondicional. Divergência: a ciência corre o risco de ser absorvida ou devorada pela tecnologia, que costuma andar com mais rapidez. 

Quando os cientistas exigem mais verbas dos governos com base em uma argumentação presa ao valor do progresso, da descoberta da Verdade ou da emancipação humana, o que é a norma, persiste um cômodo raciocínio do passado, uma crença iluminista residual ou a impossibilidade de outro embasamento?
Jean Baudrillard – É preciso insistir, como Bruno Latour, na elaboração de uma sociologia da ciência. Trata-se também de uma instituição de poder, uma rede que vive, necessita de alimentação e representa interesses econômicos, políticos e sociais. A comunidade científica funciona através de uma espécie de cumplicidade. Um dia será interessante organizar a “operação mãos limpas” dessa esfera das sociedades. O objetivo é racional, as práticas nem sempre. A engrenagem trabalha como todas as outras: é comercial, passível de negociação e eventualmente de corrupção.

No turbilhão tecnológico, sempre mais potente, fala-se sem parar de realidade virtual. É a confirmação de suas ideias, expostas em livros célebres de sociologia, ou o senhor inquieta-se com a vulgarização de conceitos como o de simulacro? O que é o virtual? O novo real?
Jean Baudrillard – Para mim tudo isso entra na linha da hiper-realidade. A virtualidade é o último estágio dessa simulação hiper-racional do mundo. Eu me reconheço um pouco no que falam por aí ainda que isso me pareça inferior e até me aborreça pois é demasiado verdadeiro, como escrevi no Pensamento Radical, e muito belo para ser verdade. O virtual é a passagem total a uma realidade absoluta, uma forma de perfeição operacional do mundo, válida para os meios de comunicação de massa, mas não só, e que põe fim à realidade ou a ilusão do referencial e do sensível.

Estamos longe do substantivo, do real, do sensível. Não aceito a versão eufórica dessas análises e não faço uma crítica moralista e nostálgica da virtualidade, que integra a imoralidade, a obscenidade do operacional. Não podemos ser ingênuos e acreditar como Pierre Lévy que as novas tecnologias representam a nova democracia e nem ficar totalmente contra, o que implicaria uma recusa passadista. Do ponto de vista da vivência cotidiana, o que é outra coisa, sou contra na medida em que não me adapto: não consigo sequer me servir de um computador. Continuo fora disso tudo.

Em termos teóricos é interessante tentar saber até onde irá esse processo de virtualização: até uma eventual catástrofe? Não sei. Tudo que diz respeito ao delírio me seduz. A virtualidade é um delírio, um fantasma coletivo do desaparecimento: escapar à angústia, à realidade, ao nascimento e à morte. Pela virtualidade faz-se a economia de tudo isso, que será fabricado ou passível de dominação. Quando tudo puder ser calculado, o homem poderá retirar-se. Estar presente sem o estar. Eis o fantasma coletivo, o delírio do qual faço parte e ao qual, ao mesmo tempo, sou completamente indiferente. Não procuro reconciliar essa oposição; temos sempre uma moral dupla como dizia Descartes. No plano existencial, claro, pode haver uma nostalgia do objeto perdido. Teoricamente deve-se jogar o jogo e ir ao extremo da simulação. 

Virtual e pós-modernidade para muitos analistas caminham juntos. O fato que Nietzsche e Heidegger, tidos como referências do pensamento pós-moderno, não tenham escapado às vinculações diretas ou indiretas, postuladas ou não, com concepções de extrema-direita, e que representem a nostalgia de uma pré-modernidade mítica, estabelece problema ético para um pensador radical ?
Jean Baudrillard – Não. O problema só existe em termos da vulgaridade das acusações feitas quanto às relações de um tipo de pensamento e determinadas escolhas políticas. Fora do terreno das ideologias não é possível estabelecer tais laços. Nietzsche e Heidegger para mim nada têm a ver com a pós-modernidade, se ela existe. Também não a integro. Além disso, não me ocupo dessa história de um liberalismo frouxo do pensamento contemporâneo. O processo sumário feito contra Heidegger e Nietzsche parece-me escandaloso. Existem dois problemas. As pessoas são metidas na pós-modernidade e em consequências tornam-se culpadas disso e daquilo. Empurram-me para a pós-modernidade porque tratei do simulacro e da simulação; não é necessário, entretanto, ser pós-moderno para descobrir a lógica do virtual. A produção industrial moderna comporta já algo do simulacro. Nada se pode, enfim, contra a doxa. Quem está no paradoxo sofre com a redução imposta pela doxa aos seus dogmas. Todas as críticas, positivas ou negativas, do pós-modernismo são elaboradas sob o signo da doxa.

Diz-se, por exemplo, que a pós-modernidade é conservadora. A prova disso seria o recurso a Heidegger e Nietzsche. Como pode uma época da tecnologia reinante encontrar sustentação no pensamento que teme a técnica?
Jean Baudrillard – Conheço bem isso, pois fui tratado de reacionário, fascista e outros insultos. É idiota, redutor e serve para criar uma luminosidade falsa, uma ilusão de compreensão. Protesto contra essa falsa inteligibilidade das coisas e digo que seria melhor então tornar tudo menos inteligível. Quem pensa compreender algo graças ao conceito de pós-modernidade, sejamos claros, nada compreende. É importante quebrar essa lógica. Pode-se usar Heidegger e principalmente Nietzsche para romper com essa mecânica demagógica. 

E a relação de Heidegger, Nietzsche e o universo da tecnologia absoluta?
Jean Baudrillard – É verdade que a análise do código, do sistema e por aí afora leva facilmente, o que não data de Heidegger, mas da posição crítica e nostálgica existente desde o nascimento da técnica, ao problema dos efeitos perversos da tecnologia. Heidegger examina a questão ontológica. A análise crítica distanciada, negativa, depressiva da tecnologia justifica-se, mas eu prefiro tomar a temática de outra maneira, não a partir de uma perspectiva positiva, mas irônica. Atrás da imensa máquina da tecnologia existe talvez um duplo jogo: pode ser que o importante não seja o objeto perdido e sim que os objetos tecnológicos jogam o seu jogo através da técnica. Nós acreditamos transformar o mundo pela técnica, o Sujeito crê, e possivelmente ocorra o inverso: o objeto joga pela técnica e esta torna-se um objeto irônico e paradoxal. Podemos guardar em relação à técnica as duas visões conhecidas: a que condena a destruição do real e, de outra parte, a que descobre a perspectiva irônica.
Aceito melhor a reversibilidade contida na ideia de que o objeto tecnológico transforma o Sujeito que imagina dominá-lo. Penso que isso nos libera um pouco da sombra heideggeriana. As coisas podem continuar verdadeiras e justam e não ser mais interessantes. Passa-se então a outras hipóteses, mesmo contraditórias. Heidegger para os heideggerianos representa o fim do pensamento: depois dele não existiria mais nada. Bobagem.

 "Esqueci Nietzsche e não me submeteria 
e colocar nos meus textos quatro notas 
por páginas com citações dele."

As sociedades ocidentais contemporâneas apontadas como pós-modernas ou submetidas ao império da tecnologia e do liberalismo selvagem são também criticadas em função de um suposto egoísmo, do narcisismo juvenil, do fechamento tribal de certos grupos, da vigência da lei do mais forte e da morte do princípio da solidariedade. O Nietzsche pós-moderno seria esse que prega o vitalismo da potência contra as estratégias dos fracos?
Jean Baudrillard – Nietzsche transmuta os valores pelo excesso. Além do Bem e do Mal conduz ao outro lado da distinção entre bem e mal. O pós-moderno, se existe, não está além mas aquém do bem e do mal. Não estamos nem mesmo ao nível de uma posição moral, do verdadeiro e do falso, mas no nem verdadeiro e nem falso, nem bem e nem mal. Não se está, portanto, além como queria Nietzsche. O pós-moderno é o inverso. A transformação ocorreu: o fim da oposição de valores aconteceu, mas negativamente, no sentido do aquém. Depressivamente. Em todo caso, pouco me importa, pois na história do pensamento pega-se o que se quer. Li Nietzsche, em alemão, quando tinha entre 20 e 30 anos. Conhecia bem o seu pensamento. Depois, não mais abri os seus livros. Nietzsche existe, mas não me refiro mais a ele. Nem mesmo os maiores pensadores merecem ser tomados como referência. Pode-se, em contrapartida, pensar a partir de situações as mais diversas: anedotas, acontecimentos, etc. O importante é o modo de pensar, não as referências. Posso ter preferências secretas por pensadores, mas no limite a história das ideias não me interessa. Escolho Nietzsche a Heidegger. O essencial é o pensamento de cada um. Esqueci Nietzsche e não me submeteria e colocar nos meus textos quatro notas por páginas com citações dele.

O Ocidente tornou-se, mesmo se não é pós-moderno, mais conservador depois dos anos sessenta?
Jean Baudrillard – Pior: o Ocidente caiu na metástase. Não é mais o estático, o conservador. A metástase vai além: trata-se de um processo virulento, catastrófico. Vivemos um fenômeno extremo, absolutamente não-estático. Nada de fim. Ao contrário: aceleração extremista. Exterminação. Vivemos o delírio da velocidade, do caos, em contraposição ao conservadorismo. Paradoxalmente, talvez como reação ao câncer, tenta-se tudo conservar enquanto patrimônio. Tudo é transformado em peça de museu, pois quer-se tudo salvar. O conservador tradicional pretendia guardar os valores básicos, que não estavam mortos. Hoje, quer-se reabilitar valores que já morreram. É pior: uma lógica do arrependimento. Deseja-se imortalizar tudo na medida em que tudo é efêmero. 

Salvação arqueológica do presente?
Jean Baudrillard – Sim. S.O.S. valores. S.O.S. intelectuais. Essa história do patrimônio é fantástica: uma estratégia radical da salvação. Memoriza-se tudo. Fixa-se tudo. Antes, alguma coisa acontecia na história e depois tornava-se eventualmente parte do patrimônio. Agora, vai diretamente ao reino da conservação.

Ainda sobre Nietzsche. Os franceses, Foucault, Deleuze, Derrida…, salvaram-no de um certo esquecimento ou ao menos de uma perspectiva de análise simbolizada pela crítica do vitalismo feita por Lukács. Por quê?
Jean Baudrillard – Ah, sim. Os alemães sempre interpretaram-no de uma maneira ambígua. Já os franceses fizeram dele um autor cult da subversão, quase mais revolucionário do que Marx. Eu continuo a pensar que o construtivismo do pensamento de Foucault, mesmo se ele é muito crítico, na sua ligação com Nietzsche, produziu uma reflexão radical, mas que é ainda um instrumento de poder intelectual. Ele fez uma excelente análise do poder, mas terminou por ser a encarnação mesma do poder. 

 "O Mundo sem o mal seria absurdo e 
 desinteressante: o paraíso. 
Este é uma outra face do aborrecimento e da morte.
Ou da liquidação de tudo. 
A morte é uma qualidade; 
o bem sem o mal é como um sujeito sem objeto. 
Não há sabor, é o neutro."

A análise do poder feita por Foucault nunca o convenceu?
Jean Baudrillard – Não. Eu nunca pensei que se tratasse de uma análise pertinente. Para mim o fundamento do poder desapareceu pela volatilização do político. Era inútil, portanto, ir buscá-lo nas manifestações microscópicas do cotidiano. Ressalva que faço também à microfísica do desejo de Deleuze e de Guattari. É muito bonito, embora corresponda a uma fase ulterior da mesma lógica, quando estamos, na minha opinião, além disso tudo, o que se pode ver observando o desenvolvimento da cena política, uma zona morta, pela qual ninguém mais se interessa e mesmo as referências a Berlusconi e o poder audiovisual desintegram-se com facilidade. O terreno político está liquidado. Lidamos não com a perpetuação do poder sob uma outra forma e sim com o seu desaparecimento. A leitura de Foucault era definitiva e demasiado abrangente para ser verdadeira. Tínhamos que atravessá-la ou tomar um caminho transversal. Tentei fazê-lo, não contra Foucault, e pensei mesmo em defendê-lo quando o “politicamente correto” censurou-o a propósito de usa posição no caso do Irã. 

Foucault para o senhor fez uma crítica da modernidade ou do capitalismo? A questão faz sentido na medida em que muitos marxistas, após a queda do socialismo soviético, redescobriram Foucault, antes condenado, e assumiram boa parte de suas posições.
Jean Baudrillard – Os arrependidos são muitos. Os pós-modernos reivindicam a herança de Foucault. Os marxistas em busca de uma nova roupagem também. Tudo isso faz parte da ordem da recuperação das coisas e das operações intelectuais fraudulentas. Mas Foucault não construiu uma crítica do capitalismo; ela é mais interessante. Na medida em que não estamos mais em uma situação típica do capitalismo falta-nos um instrumento de reflexão adaptado, não ao pós-capitalismo, mas aos dados novos, pois saímos de um sistema de produção, de penúria ou de falta e entramos na extrema realidade. Precisamos descobrir a maneira de pensar os fenômenos extremos. A estratégia de Foucault era paradoxal e, contudo, necessitamos de algo ainda mais entranhado no paradoxo. Já o situacionismo, que era forte, perdeu a validade por ser radical, do Sujeito crítico, sem explorar o paradoxal. Precisamos de uma radicalidade objetiva derivada diretamente das coisas. Eis o meu problema. Foucault não me inspira na atualidade.

O poder dos meios de comunicação de massa continua a produzir análises que parecem repetitivas e incapazes de iluminar de fato o fenômeno em questão. A morte de Guy Débord serviu a multiplicação dos comentários sobre os efeitos nefastos da sociedade do espetáculo. A televisão é uma “simulação da consciência”?
Jean Baudrillard – Não sei. O que é a consciência? No senso comum, em todo caso, a consciência é um eco e uma representação do real. Para mim, entretanto, se essa palavra tem um sentido, deve ser outra coisa. Uma forma, talvez, de desafio à nossa realidade. A televisão é, ao mesmo tempo, a última fase da representação e a negação da representação. A tela não é um espelho, não é reflexiva, mas superficial. Nada a ver com a consciência, claro, que é uma diferença – uma divergência, um desafio, um antagonismo, etc – enquanto os meios de comunicação de massa, regidos pelo princípio da simultaneidade, mergulham-nos num mundo em tempo real, oposto ao da lógica da consciência. Esta implica separação, distância, descolamento, dissociação, é um pouco esquizofrênica e vem sempre de um outro lugar. 

Na realidade teorizada pelo senhor seria possível levar a fragmentação, o vitalismo e o relativismo ao extremo sem mergulhar no Mal?
Jean Baudrillard – Vitalismo nada quer dizer para mim. Sempre pensei o elogio da morte no sentido da reversibilidade, das trocas simbólicas e que implica a reversão da vida e da morte. Falar da vida pela vida não me sensibiliza; nem da morte pela morte. Na reversão proporcionada pelos dois termos é que entro. O vitalismo enquanto ideologia da vida pela vida é como a arte pela arte: aberrações. O mal significa a inexistência de reconciliação possível. O Mundo sem o mal seria absurdo e desinteressante: o paraíso. Este é uma outra face do aborrecimento e da morte. Ou da liquidação de tudo. A morte é uma qualidade; o bem sem o mal é como um sujeito sem objeto. Não há sabor, é o neutro.

O senhor escreveu que Madonna talvez não tenha um corpo, em Madonna Érotisme et Pouvoir, livro organizado por Michel Dion. O indivíduo na era da virtualidade possui um corpo real?
Jean Baudrillard – Não acredito que cada um se confunda com o próprio corpo. Existe um jogo com a corporalidade. Há uma forma de sedução de cada sujeito com o seu corpo. Não quero afirmar que Madonna perdeu o seu corpo enquanto nós conservamos o nosso. Digo que ela não o possui por tentar ser inteiramente corpo pela identificação a este enquanto sexo. Trata-se de um tipo de erro mental. Não é que Madonna seja forçada a construir esse corpo, mas se ela não o tem suficientemente é por só pensar na sua construção. Estamos, outra vez, na simulação. Os instrumentos de Madonna remetem à tortura, à força, ao fórceps. Eu gosto muito dela. É um emblema ou figura heroica do fracasso relativo à obtenção de um corpo. Madonna não é um personagem de sedução como Marilyn. Inteligente e irônica, representa o ponto extremo da técnica e da tecnologia. Talvez Madonna seja uma versão irônica da era tecnológica. Aspecto que estava ausente da composição do personagem Marilyn Monroe e mesmo de Cicciolina, ainda que esta fizesse um uso irônico da pornografia. Ao extremo corresponde sempre uma variante irônica. 
----------------
* Sociólogo. Prof. Universitário. Escritor. 
Fonte:  http://www.correiodopovo.com.br/blogs/juremirmachado/03/05/2013

Nenhum comentário:

Postar um comentário