Juremir Machado da Silva*
Jean Baudrillard, o apocalíptico tranquilo
Erudito e brilhante em meio
aos representantes de uma geração deslumbrada pelas metáforas
rebuscadas, Jean Baudrillard aterroriza com suas ideias sobre o fim do
fim, as massas indiferentes e sobre os fenômenos extremos. A entrevista
reproduzida a seguir é o resultado de uma série de encontros com o autor
de O Sistema dos Objetos, À Sombra das Maiorias Silenciosas, Esquecer Foucault, A Transparência do Mal, Da Sedução , etc.
A primeira parte é produto
de conversa acontecida em Porto Alegre, em 1993, por ocasião do
seminário “A Decadência do Futuro e a Construção do Presente”,
organizado pela Usina do Gasômetro. A segunda, mais longa, representa a
continuação do diálogo, em Paris, em dezembro de 1994, pouco tempo antes
da publicação de O Crime perfeito.
Jean Baudrillard, nascido em
1929, analisa os meios de comunicação de massa, as ilusões finalistas,
os dilemas da comunidade europeia, a morte das utopias, a era da
tecnologia, a pós-modernidade e o lugar de Nietzsche, Heidegger e
Foucault na reflexão contemporânea. Baudrillard morreu em 2007.
Parte I
JMS – Em a Ilusão do Fim, o senhor escreveu que o fim chegou ao fim. Há algo de apocalíptico em sua posição sobre o fim da história ?
Jean Baudrillard – A
minha perspectiva é clara : esperava-se uma solução final, um momento
de ruptura que, apesar da catástrofe, abriria o caminho ao reino do bem.
Descobrimos que a história não atingirá um ponto terminal, pois, por
uma estranha reversão, ela já chegou ao fim. Nada há de apocalíptico
nisso dado que não sou profeta e nem prevejo a superação do mal pelo bem
ou o alcance do bem após a violência do mal. Sonhava-se com o
cumprimento de metas históricas: mas a história não tem finalidade. Ela
está aquém ou além do fim. A história perdeu o fim. A turbulência, o
efeito perverso, deslocou o mundo real para o virtual. Vivemos uma sorte
de simulação do real. Nada disso quer dizer que os acontecimentos
chegaram ao fim ou que não haverá mais movimento. Sejamos cristalinos:
um modelo linear de representação da realidade esgotou-se. Passamos à
fase dos fenômenos extremos.
O senhor afirmou, em A Transparência do Mal,
que a imagem antropológica mais significativa do século XX será a de um
homem, em um dia de greve, sentado diante de sua televisão fora do ar.
Qual a relação real entre massa e televisão ?
Jean Baudrillard – A
tela vazia é uma metáfora: refere-se ao circuito destituído de sentido
que se estabelece. O telespectador, refratário à mensagem, neutraliza a
televisão pela inércia. A televisão converte o homem, por seu turno, em
observador passivo. Quanto mais as pessoas observam a virtualidade da
imagem, fixadas diante do televisor, mais elas se afastam dos
acontecimentos reais. Mas não tenho nenhum ressentimento em relação aos
meios de comunicação de massa. Estou convencido, entretanto, que eles
não podem mobilizar e direcionar as massas. É demasiado
simplista responsabilizar a televisão pelos males do mundo
contemporâneo. Os meios de comunicação de massa fazem parte da
catástrofe atual e todo mundo os faz, de uma certa maneira, pois cada um
passa diante da câmera, em um ritual de psicodrama, para contar o seu
caso, a sua crise, o desespero, a pequena história pessoal. A televisão é
um entre outros mecanismos de construção do simulacro do real em que
estamos mergulhados. Não cabe exagerar os seus poderes.
A política, que tanto
interessou aos intelectuais até os anos 60, está morta? Ou se trata de
um diagnóstico pós-moderno destituído de sentido ?
Jean Baudrillard – A
ação política está morta. Não existem mais atores sociais no sentido
clássico. A política tirava a sua razão dos projetos de organização com a
finalidade de construção de uma sociedade específica. Hoje,
infelizmente, não há controle sobre o organismo social, que se gere
sozinho, autônomo e fechado. Ninguém é responsável individualmente por
nada. A perversão, ou a reversão da história, acontecida neste final de
século, assenta-se sobre a indiferença. Não anuncio nenhum estrondo,
apenas o desinteresse. Entramos no transpolítico: o estágio em que o
social, o político e o futuro entraram em decadência. É o tempo de
vírus, da permanência do mesmo sob outra forma: os vícios dos grandes sistemas permanecem na proliferação dos microssistemas.
A Europa vive o drama da
guerra, do racismo, do fracionamento nacional tardio, da xenofobia e da
incomunicabilidade entre culturas que ocupam um mesmo território. O
Estado-nação acabou ?
Jean Baudrillard – A
Europa navega na ambiguidade. A Comunidade Europeia aparentemente está
em curso, em construção, mas, de fato, começou a se desintegrar e avança
para a destruição. Os anseios de separação nacional são compreensíveis
na medida em que o socialismo real amordaçou aspirações seculares. Em
todo caso, o fundamental é que com o Estado-nação ou sem ele o pior
aparece no horizonte. A era planetária da economia determina que as
noções de Primeiro e Terceiro Mundo sejam abandonadas. Na comunhão
trágica dos acontecimentos, vazios de simbologia futurista, nada mostra
uma saída, pois esta era uma esperança finalista. Os Direitos Humanos
são apenas simulacros de uma democracia indigente e não resolverão os
dilemas essenciais. Servem de fachada, de falsa, embora não premeditada,
capa ao circuito fechado, hermético, do sistema perversamente
autonomizado.
Com ironia, o senhor
recomendou à esquerda que não chegue ao poder, preferindo o quase-poder,
com a legitimidade moral dos perdedores respaldados por milhões de
votos. Há, ainda, um lugar para a esquerda no mundo ocidental ?
Jean Baudrillard – A
esquerda chegou atrasada ao poder. Coube-lhe, na Europa, administrar a
impossibilidade da mudança, sem escapar ao capitalismo. No momento,
evidente, não há poder para a esquerda conquistar. As grandes ideias,
modernas, naufragaram. Um esquerdista na presidência de um país
democrático não pode fazer nada de radicalmente diferente. O fim do
político implica o desaparecimento da decisão. A liberdade é nula. Não
há mais decisão final. A política deixa-se levar pela apatia. Pensava-se
que o político desapareceria, engolido pelo social, mas ambos
pereceram. Os negócios da política acontecem como que em
um estado vazio, sem eco, sem ressonância e sem relevância. Claro, os
políticos, em nome do marketing, procuram esconder o desaparecimento da
política. A esquerda joga em campo dissipado, impotente para realizar as
promessas, perdidas no passado teleológico da modernidade.
Parte II
O Mundo vive a era da
tecnologia implacável. Do ponto de vista das origens da cultura
ocidental pode-se falar em ruptura com a fonte de influência grega
clássica? É esse o Crime Perfeito da realidade virtual?
Jean Baudrillard – Técnica
é uma palavra vaga, mas as condições de exercício do pensamento e da
sensibilidade mudaram completamente a partir do momento em que se
instaurou uma polarização global em função da técnica, colocada como o
elemento dominante. O pensamento, os sentidos, a percepção e a
metafísica do Sujeito tornam-se cada vez menos relevantes, impotentes,
diante da física ou metafísica tecnológica. Heidegger disse que no
limite a técnica representa o estágio mais acabado da metafísica. Nesse
sentido, entretanto, pode-se afirmar que há uma continuação do primado
grego, sendo a época atual responsável pela realização das, sei lá como
dizer, utopias racionais gregas. Não é mais, porém, a Ideia, o Mito, o
Fantasma, o Pensamento ou o Sonho; trata-se da realidade tecnológica:
eis a ruptura. Tudo está realizado ou virtualmente realizado. Para
alguns isso significa uma catástrofe. Há, sem dúvida, uma dissociação do
universo mental (subjetivo, reflexivo, filosófico…) pela passagem ao
ato.
O Ocidente acostumou-se a
louvar a influência grega a ponto de ancorar praticamente todo o seu
saber nessa pátria mítica do pensamento. Teria a filosofia nascido na
Grécia mas não a ciência?
Jean Baudrillard – Não
sou um especialista em epistemologia grega. Posso, em todo caso, me
colocar algumas questões: será que a cultura grega carregava o potencial
do desenvolvimento técnico e do progresso? A técnica não é somente uma
materialidade, é também uma ideia. A ideia do progresso infinito, da
transformação do mundo, não pertence à Grécia. Quanto a isso algo mudou.
Essa espécie de lógica transformadora, progressiva ao infinito, faz
parte da nossa modernidade e é ela que nos conduz à catástrofe, no
sentido neutro, a uma forma de revolução, literalmente falando, do
Mundo, algo que não constava na filosofia contemplativa dos gregos, que
acreditavam numa ordem das coisas. Nós, em contrapartida, queremos
sempre perturbar essa ordem do mundo para atingir um modo superior de
existência. Buscamos, em consequência, a desordem em nome da perfeição. Os
gregos aceitavam o dado, as aparências e a ordem como objetos de
contemplação positiva. A filosofia grega antiga é relativamente feliz e
gera hipóteses sobre o mito original, mas partindo de uma relação
amorosa com o universo, enquanto nós, modernos, investimos na reflexão
com base numa visão infeliz. As diferenças são reais. Claro que existem
ainda laços do Ocidente atual com a Grécia: o pensamento, a teoria e a
razão, por exemplo. Embora os gregos não fossem tão razoáveis quanto se
chega a imaginar por vezes. A razão convivia com o princípio do caos.
Eles nunca se propuseram de fato a reduzir, a mutilar, o caos para
assegurar a hegemonia definitiva da razão. Esse fantasma catastrófico
nos pertence.
Precisar certos termos
nestes tempos de babel comunicacional é importante: ciência e tecnologia
são para o senhor sinônimos, causa e consequência ou podem reger-se por
princípios até mesmos opostos?
Jean Baudrillard – São coisas diferentes: a ciência é formal, estabelece
e critica os dispositivos de pensamento; a tecnologia é a passagem ou a
precipitação no real. Elas estão, portanto, ligadas embora possuam
especificidades. Inseparáveis, podem bater-se. A tecnologia existe em
todas as culturas, mesmo sob formas muito simples. Já a aliança entre
ciência e tecnologia em profundidade faz parte do nosso imaginário.
Logicamente diferentes, ciência e tecnologia encontraram unicamente em
nossa cultura um tal entrelaçamento, que é, aliás, perigoso para a
ciência. A ciência torna-se cada vez mais uma análise ambígua do mundo; a
certeza quebrou-se e o princípio de realidade desapareceu. A
tecnologia, porém, existe por um princípio de realização incondicional.
Divergência: a ciência corre o risco de ser absorvida ou devorada pela
tecnologia, que costuma andar com mais rapidez.
Quando os cientistas exigem
mais verbas dos governos com base em uma argumentação presa ao valor do
progresso, da descoberta da Verdade ou da emancipação humana, o que é a
norma, persiste um cômodo raciocínio do passado, uma crença iluminista
residual ou a impossibilidade de outro embasamento?
Jean Baudrillard – É
preciso insistir, como Bruno Latour, na elaboração de uma sociologia da
ciência. Trata-se também de uma instituição de poder, uma rede que
vive, necessita de alimentação e representa interesses econômicos,
políticos e sociais. A comunidade científica funciona através de uma
espécie de cumplicidade. Um dia será interessante organizar a “operação
mãos limpas” dessa esfera das sociedades. O objetivo é racional, as
práticas nem sempre. A engrenagem trabalha como todas as outras: é
comercial, passível de negociação e eventualmente de corrupção.
No turbilhão tecnológico,
sempre mais potente, fala-se sem parar de realidade virtual. É a
confirmação de suas ideias, expostas em livros célebres de sociologia,
ou o senhor inquieta-se com a vulgarização de conceitos como o de
simulacro? O que é o virtual? O novo real?
Jean Baudrillard – Para
mim tudo isso entra na linha da hiper-realidade. A virtualidade é o
último estágio dessa simulação hiper-racional do mundo. Eu me reconheço
um pouco no que falam por aí ainda que isso me pareça inferior e até me
aborreça pois é demasiado verdadeiro, como escrevi no Pensamento Radical,
e muito belo para ser verdade. O virtual é a passagem total a uma
realidade absoluta, uma forma de perfeição operacional do mundo, válida
para os meios de comunicação de massa, mas não só, e que põe fim à
realidade ou a ilusão do referencial e do sensível.
Estamos longe do substantivo, do
real, do sensível. Não aceito a versão eufórica dessas análises e não
faço uma crítica moralista e nostálgica da virtualidade, que integra a
imoralidade, a obscenidade do operacional. Não podemos ser ingênuos e
acreditar como Pierre Lévy que as novas tecnologias representam a nova
democracia e nem ficar totalmente contra, o que implicaria uma recusa
passadista. Do ponto de vista da vivência cotidiana, o que é outra
coisa, sou contra na medida em que não me adapto: não consigo sequer me
servir de um computador. Continuo fora disso tudo.
Em termos teóricos é
interessante tentar saber até onde irá esse processo de virtualização:
até uma eventual catástrofe? Não sei. Tudo que diz respeito ao delírio
me seduz. A virtualidade é um delírio, um fantasma coletivo do
desaparecimento: escapar à angústia, à realidade, ao nascimento e à
morte. Pela virtualidade faz-se a economia de tudo isso, que será
fabricado ou passível de dominação. Quando tudo puder ser calculado, o
homem poderá retirar-se. Estar presente sem o estar. Eis o fantasma
coletivo, o delírio do qual faço parte e ao qual, ao mesmo tempo, sou
completamente indiferente. Não procuro reconciliar essa oposição; temos
sempre uma moral dupla como dizia Descartes. No plano existencial,
claro, pode haver uma nostalgia do objeto perdido. Teoricamente deve-se
jogar o jogo e ir ao extremo da simulação.
Virtual e pós-modernidade
para muitos analistas caminham juntos. O fato que Nietzsche e Heidegger,
tidos como referências do pensamento pós-moderno, não tenham escapado
às vinculações diretas ou indiretas, postuladas ou não, com concepções
de extrema-direita, e que representem a nostalgia de uma pré-modernidade
mítica, estabelece problema ético para um pensador radical ?
Jean Baudrillard – Não.
O problema só existe em termos da vulgaridade das acusações feitas
quanto às relações de um tipo de pensamento e determinadas escolhas
políticas. Fora do terreno das ideologias não é possível estabelecer
tais laços. Nietzsche e Heidegger para mim nada têm a ver com a
pós-modernidade, se ela existe. Também não a integro. Além disso, não me
ocupo dessa história de um liberalismo frouxo do pensamento
contemporâneo. O processo sumário feito contra Heidegger e
Nietzsche parece-me escandaloso. Existem dois problemas. As pessoas são
metidas na pós-modernidade e em consequências tornam-se culpadas disso e
daquilo. Empurram-me para a pós-modernidade porque tratei do simulacro e
da simulação; não é necessário, entretanto, ser pós-moderno para
descobrir a lógica do virtual. A produção industrial moderna comporta já
algo do simulacro. Nada se pode, enfim, contra a doxa. Quem está no
paradoxo sofre com a redução imposta pela doxa aos seus dogmas. Todas as
críticas, positivas ou negativas, do pós-modernismo são elaboradas sob o
signo da doxa.
Diz-se, por exemplo, que a
pós-modernidade é conservadora. A prova disso seria o recurso a
Heidegger e Nietzsche. Como pode uma época da tecnologia reinante
encontrar sustentação no pensamento que teme a técnica?
Jean Baudrillard – Conheço
bem isso, pois fui tratado de reacionário, fascista e outros insultos. É
idiota, redutor e serve para criar uma luminosidade falsa, uma ilusão
de compreensão. Protesto contra essa falsa inteligibilidade das coisas e
digo que seria melhor então tornar tudo menos inteligível. Quem pensa
compreender algo graças ao conceito de pós-modernidade, sejamos claros,
nada compreende. É importante quebrar essa lógica. Pode-se usar
Heidegger e principalmente Nietzsche para romper com essa mecânica
demagógica.
E a relação de Heidegger, Nietzsche e o universo da tecnologia absoluta?
Jean Baudrillard – É
verdade que a análise do código, do sistema e por aí afora leva
facilmente, o que não data de Heidegger, mas da posição crítica e
nostálgica existente desde o nascimento da técnica, ao problema dos
efeitos perversos da tecnologia. Heidegger examina a questão ontológica.
A análise crítica distanciada, negativa, depressiva da tecnologia
justifica-se, mas eu prefiro tomar a temática de outra maneira, não a
partir de uma perspectiva positiva, mas irônica. Atrás da imensa máquina
da tecnologia existe talvez um duplo jogo: pode ser que o importante
não seja o objeto perdido e sim que os objetos tecnológicos jogam o seu
jogo através da técnica. Nós acreditamos transformar o mundo pela
técnica, o Sujeito crê, e possivelmente ocorra o inverso: o objeto joga
pela técnica e esta torna-se um objeto irônico e paradoxal. Podemos
guardar em relação à técnica as duas visões conhecidas: a que condena a
destruição do real e, de outra parte, a que descobre a perspectiva
irônica.
Aceito melhor a reversibilidade
contida na ideia de que o objeto tecnológico transforma o Sujeito que
imagina dominá-lo. Penso que isso nos libera um pouco da sombra
heideggeriana. As coisas podem continuar verdadeiras e justam e não ser
mais interessantes. Passa-se então a outras hipóteses, mesmo
contraditórias. Heidegger para os heideggerianos representa o fim do
pensamento: depois dele não existiria mais nada. Bobagem.
"Esqueci Nietzsche e não me submeteria
e colocar nos meus textos quatro
notas
por páginas com citações dele."
As sociedades ocidentais
contemporâneas apontadas como pós-modernas ou submetidas ao império da
tecnologia e do liberalismo selvagem são também criticadas em função de
um suposto egoísmo, do narcisismo juvenil, do fechamento tribal de
certos grupos, da vigência da lei do mais forte e da morte do princípio
da solidariedade. O Nietzsche pós-moderno seria esse que prega o
vitalismo da potência contra as estratégias dos fracos?
Jean Baudrillard – Nietzsche transmuta os valores pelo excesso. Além do Bem e do Mal conduz
ao outro lado da distinção entre bem e mal. O pós-moderno, se existe,
não está além mas aquém do bem e do mal. Não estamos nem mesmo ao nível
de uma posição moral, do verdadeiro e do falso, mas no nem verdadeiro e
nem falso, nem bem e nem mal. Não se está, portanto, além como queria
Nietzsche. O pós-moderno é o inverso. A transformação ocorreu: o fim da
oposição de valores aconteceu, mas negativamente, no sentido do aquém.
Depressivamente. Em todo caso, pouco me importa, pois na história do
pensamento pega-se o que se quer. Li Nietzsche, em alemão,
quando tinha entre 20 e 30 anos. Conhecia bem o seu pensamento. Depois,
não mais abri os seus livros. Nietzsche existe, mas não me refiro mais a
ele. Nem mesmo os maiores pensadores merecem ser tomados como
referência. Pode-se, em contrapartida, pensar a partir de situações as
mais diversas: anedotas, acontecimentos, etc. O importante é o modo de
pensar, não as referências. Posso ter preferências secretas por
pensadores, mas no limite a história das ideias não me interessa.
Escolho Nietzsche a Heidegger. O essencial é o pensamento de cada um.
Esqueci Nietzsche e não me submeteria e colocar nos meus textos quatro
notas por páginas com citações dele.
O Ocidente tornou-se, mesmo se não é pós-moderno, mais conservador depois dos anos sessenta?
Jean Baudrillard – Pior:
o Ocidente caiu na metástase. Não é mais o estático, o conservador. A
metástase vai além: trata-se de um processo virulento, catastrófico.
Vivemos um fenômeno extremo, absolutamente não-estático. Nada de fim. Ao
contrário: aceleração extremista. Exterminação. Vivemos o delírio da
velocidade, do caos, em contraposição ao conservadorismo.
Paradoxalmente, talvez como reação ao câncer, tenta-se tudo conservar
enquanto patrimônio. Tudo é transformado em peça de museu, pois quer-se
tudo salvar. O conservador tradicional pretendia guardar os valores
básicos, que não estavam mortos. Hoje, quer-se reabilitar valores que já
morreram. É pior: uma lógica do arrependimento. Deseja-se imortalizar
tudo na medida em que tudo é efêmero.
Salvação arqueológica do presente?
Jean Baudrillard – Sim.
S.O.S. valores. S.O.S. intelectuais. Essa história do patrimônio é
fantástica: uma estratégia radical da salvação. Memoriza-se tudo.
Fixa-se tudo. Antes, alguma coisa acontecia na história e depois
tornava-se eventualmente parte do patrimônio. Agora, vai diretamente ao
reino da conservação.
Ainda sobre Nietzsche. Os
franceses, Foucault, Deleuze, Derrida…, salvaram-no de um certo
esquecimento ou ao menos de uma perspectiva de análise simbolizada pela
crítica do vitalismo feita por Lukács. Por quê?
Jean Baudrillard – Ah,
sim. Os alemães sempre interpretaram-no de uma maneira ambígua. Já os
franceses fizeram dele um autor cult da subversão, quase mais
revolucionário do que Marx. Eu continuo a pensar que o construtivismo do
pensamento de Foucault, mesmo se ele é muito crítico, na sua ligação
com Nietzsche, produziu uma reflexão radical, mas que é ainda um
instrumento de poder intelectual. Ele fez uma excelente análise do
poder, mas terminou por ser a encarnação mesma do poder.
"O Mundo sem o mal seria absurdo e
desinteressante: o paraíso.
Este é uma outra face do aborrecimento e da
morte.
Ou da liquidação de tudo.
A morte é uma qualidade;
o bem sem o
mal é como um sujeito sem objeto.
Não há sabor, é o neutro."
A análise do poder feita por Foucault nunca o convenceu?
Jean Baudrillard – Não.
Eu nunca pensei que se tratasse de uma análise pertinente. Para mim o
fundamento do poder desapareceu pela volatilização do político. Era
inútil, portanto, ir buscá-lo nas manifestações microscópicas do
cotidiano. Ressalva que faço também à microfísica do desejo de Deleuze e
de Guattari. É muito bonito, embora corresponda a uma fase ulterior da
mesma lógica, quando estamos, na minha opinião, além disso tudo, o que
se pode ver observando o desenvolvimento da cena política, uma zona
morta, pela qual ninguém mais se interessa e mesmo as referências a
Berlusconi e o poder audiovisual desintegram-se com facilidade. O
terreno político está liquidado. Lidamos não com a perpetuação do poder
sob uma outra forma e sim com o seu desaparecimento. A leitura de
Foucault era definitiva e demasiado abrangente para ser verdadeira.
Tínhamos que atravessá-la ou tomar um caminho transversal. Tentei
fazê-lo, não contra Foucault, e pensei mesmo em defendê-lo quando o
“politicamente correto” censurou-o a propósito de usa posição no caso do
Irã.
Foucault para o senhor fez
uma crítica da modernidade ou do capitalismo? A questão faz sentido na
medida em que muitos marxistas, após a queda do socialismo soviético,
redescobriram Foucault, antes condenado, e assumiram boa parte de suas
posições.
Jean Baudrillard – Os
arrependidos são muitos. Os pós-modernos reivindicam a herança de
Foucault. Os marxistas em busca de uma nova roupagem também. Tudo isso
faz parte da ordem da recuperação das coisas e das operações
intelectuais fraudulentas. Mas Foucault não construiu uma crítica do
capitalismo; ela é mais interessante. Na medida em que não estamos mais
em uma situação típica do capitalismo falta-nos um instrumento de
reflexão adaptado, não ao pós-capitalismo, mas aos dados novos, pois
saímos de um sistema de produção, de penúria ou de falta e entramos na
extrema realidade. Precisamos descobrir a maneira de pensar os fenômenos
extremos. A estratégia de Foucault era paradoxal e, contudo,
necessitamos de algo ainda mais entranhado no paradoxo. Já o
situacionismo, que era forte, perdeu a validade por ser radical, do
Sujeito crítico, sem explorar o paradoxal. Precisamos de uma
radicalidade objetiva derivada diretamente das coisas. Eis o meu
problema. Foucault não me inspira na atualidade.
O poder dos meios de
comunicação de massa continua a produzir análises que parecem
repetitivas e incapazes de iluminar de fato o fenômeno em questão. A
morte de Guy Débord serviu a multiplicação dos comentários sobre os
efeitos nefastos da sociedade do espetáculo. A televisão é uma
“simulação da consciência”?
Jean Baudrillard – Não
sei. O que é a consciência? No senso comum, em todo caso, a consciência
é um eco e uma representação do real. Para mim, entretanto, se essa
palavra tem um sentido, deve ser outra coisa. Uma forma, talvez, de
desafio à nossa realidade. A televisão é, ao mesmo tempo, a última fase
da representação e a negação da representação. A tela não é um espelho,
não é reflexiva, mas superficial. Nada a ver com a consciência, claro,
que é uma diferença – uma divergência, um desafio, um antagonismo, etc –
enquanto os meios de comunicação de massa, regidos pelo princípio da
simultaneidade, mergulham-nos num mundo em tempo real, oposto ao da
lógica da consciência. Esta implica separação, distância, descolamento,
dissociação, é um pouco esquizofrênica e vem sempre de um outro lugar.
Na realidade teorizada pelo
senhor seria possível levar a fragmentação, o vitalismo e o relativismo
ao extremo sem mergulhar no Mal?
Jean Baudrillard – Vitalismo
nada quer dizer para mim. Sempre pensei o elogio da morte no sentido da
reversibilidade, das trocas simbólicas e que implica a reversão da vida
e da morte. Falar da vida pela vida não me sensibiliza; nem da morte
pela morte. Na reversão proporcionada pelos dois termos é que entro. O
vitalismo enquanto ideologia da vida pela vida é como a arte pela arte:
aberrações. O mal significa a inexistência de
reconciliação possível. O Mundo sem o mal seria absurdo e
desinteressante: o paraíso. Este é uma outra face do aborrecimento e da
morte. Ou da liquidação de tudo. A morte é uma qualidade; o bem sem o
mal é como um sujeito sem objeto. Não há sabor, é o neutro.
O senhor escreveu que Madonna talvez não tenha um corpo, em Madonna Érotisme et Pouvoir, livro organizado por Michel Dion. O indivíduo na era da virtualidade possui um corpo real?
Jean Baudrillard – Não
acredito que cada um se confunda com o próprio corpo. Existe um jogo
com a corporalidade. Há uma forma de sedução de cada sujeito com o seu
corpo. Não quero afirmar que Madonna perdeu o seu corpo enquanto nós
conservamos o nosso. Digo que ela não o possui por tentar ser
inteiramente corpo pela identificação a este enquanto sexo. Trata-se de
um tipo de erro mental. Não é que Madonna seja forçada a construir esse
corpo, mas se ela não o tem suficientemente é por só pensar na sua
construção. Estamos, outra vez, na simulação. Os instrumentos de Madonna
remetem à tortura, à força, ao fórceps. Eu gosto muito dela. É um
emblema ou figura heroica do fracasso relativo à obtenção de um corpo.
Madonna não é um personagem de sedução como Marilyn. Inteligente e
irônica, representa o ponto extremo da técnica e da tecnologia. Talvez
Madonna seja uma versão irônica da era tecnológica. Aspecto que estava
ausente da composição do personagem Marilyn Monroe e mesmo de
Cicciolina, ainda que esta fizesse um uso irônico da pornografia. Ao
extremo corresponde sempre uma variante irônica.
----------------
* Sociólogo. Prof. Universitário. Escritor.
Fonte: http://www.correiodopovo.com.br/blogs/juremirmachado/03/05/2013
Nenhum comentário:
Postar um comentário