sábado, 11 de maio de 2013

Filiação platônica

 CLÁUDIA LAITANO*
 
Quando viúvos e viúvas decidem casar-se de novo, isso não quer dizer que quem morreu foi esquecido. Pelo contrário. Pode significar apenas que foi tão bom amar da primeira vez, que aquele que ficou teve vontade de sentir tudo aquilo de novo, por outra pessoa.

Órfãos adultos não costumam frequentar clubes da terceira idade em busca de parentes adotivos, mas, em certo sentido, como viúvos e viúvas, mantemos vivo aquele sentimento dedicado a um pai ou mãe que já se foi, independentemente da memória que fica deles. Complicado? Explico. Uma coisa é a saudade que temos das pessoas que perdemos, outra é a nostalgia difusa do sentimento que nos ligava a elas. As pessoas são únicas e insubstituíveis. Já o sentimento, como o membro perdido de uma salamandra, pode se regenerar. Se a fantasia do amor romântico não desaparece junto com a pessoa amada, também os outros amores podem voltar à cena a qualquer momento – como uma atriz que mantém intacto o talento de atuar mesmo muito tempo depois de despedir-se dos palcos.

Por motivos nem sempre muito claros – algum traço físico, um tom de voz, uma natureza generosa na distribuição dos afetos –, certas pessoas despertam em nós, os órfãos adultos, sentimentos de “filiação platônica”. Olhamos para aquele homem ou mulher de quem poderíamos ser filhos com fantasias de almoço de domingo, elogios desmedidos, amor e acolhimento incondicionais.

Na palestra que fez esta semana no Fronteiras do Pensamento, a escritora britânica Karen Armstrong falou sobre sua cruzada mundial em defesa da compaixão, sentimento que para essa historiadora das religiões está na origem de todos os credos – embora nem todos os praticantes lembrem disso. Para os muitos ateus da plateia (eu entre eles), a escritora lembrou que a compaixão aparece também na filosofia moral e está na essência da “regra de ouro” que todos aprendemos dentro ou fora de casa: trate a todos como gostaria de ser tratado. E acrescentou: compaixão é cuidar e responsabilizar-se pelos outros, como uma mãe cuida e se responsabiliza pelos filhos.

Seria possível um mundo de bons sentimentos, solidariedade e tolerância como esse com que Karen Armstrong sonha? Provavelmente, não. Junto à necessidade de transcendência que dá origem às religiões, à arte e à ciência, a natureza humana parece igualmente inclinada ao egoísmo, à destruição, ao caos. Mas ouvir alguém falar de forma tão apaixonada sobre uma utopia tão amorosa quanto essa de um movimento global em torno da compaixão com certeza comoveu a plateia. (E, no meu caso, despertou até mesmo uma pontada de filiação platônica... )

Para todas as mães que generosamente correspondem ao afeto que despertam nos filhos alheios, desejo um domingo cheio de carinho dos filhos de verdade – e dos emprestados também.
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* Escritora. Cronista da ZH
Fonte: ZH on line, 11/05/2013
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