sexta-feira, 10 de maio de 2013

Nã há atalho para ser feliz

Divulgação
Jude Law, que interpreta um psiquiatra: "Os remédios são benéficos em muitos casos. 
O problema está na tendência atual da sociedade de buscar um atalho para tudo"

Mulher comete crime e culpa o antidepressivo, com sérios efeitos colaterais, que o seu psiquiatra prescreveu. Esse foi o argumento que Scott Z. Burns encontrou para levar às telas do cinema o abuso na prescrição de remédios contra doenças que afetam o estado emocional das pessoas. "Há uma proliferação de antidepressivos nos EUA, com muita publicidade dos medicamentos na TV. Adotando produtos químicos, declaramos uma guerra contra a tristeza, mas sem diferenciar o que é um estágio passageiro, provocado por um infortúnio, e a doença persistente, que precisa ser tratada'', afirma Burns, roteirista de "Terapia de Risco", thriller assinado pelo diretor americano Steven Soderbergh.

Em cartaz a partir do dia 17 nos cinemas brasileiros, o longa-metragem é resultado de extensa pesquisa realizada por Burns no hospital Bellevue, de Nova York, há mais de dez anos. Na época, o roteirista colhia material para um programa de televisão da rede NBC, "Wonderland'', criado por Peter Berg, acompanhando de perto o trabalho do psiquiatra Sasha Bardey, coprodutor e consultor de "Terapia de Risco''. "Aprendi muito sobre a interseção entre psiquiatria, legislação, farmacologia e comportamento humano, percebendo que o tema renderia um bom roteiro de filme'', diz Burns, aos jornalistas, em Berlim.

Soderbergh viu no universo das drogas ("onde existe remédio para tudo'') a chance de fazer a sua homenagem a Alfred Hitchcock - ainda que a temática não seja explorada tão a fundo. O foco do filme não cai necessariamente nas maquinações da indústria farmacêutica - o que aproximaria o título de "Traffic'' (2000), em que Soderbergh abordou a questão do tráfico de drogas de várias perspectivas. A ênfase está na mente manipuladora de certos personagens, que se aproveitam do culto aos medicamentos do gênero e do acesso fácil aos mesmos.

Quando se trata de antidepressivos, 
a medicação dispensável é tão grave 
quanto a negação da sua necessidade, 
segundo Carlos Neumann

Interpretada por Rooney Mara (de "Millennium - Os Homens Que Não Amavam as Mulheres''), a protagonista é uma mulher que sofre de ansiedade e depressão. A situação se agrava quando ela precisa lidar com as expectativas do marido (Channing Tatum), recém-saído da prisão, após quatro anos de confinamento. Depois da prescrição de seu psiquiatra (Jude Law), com o aval de sua psiquiatra anterior (Catherine Zeta-Jones), ela passa a tomar uma medicação nova no mercado, anunciada constantemente na TV. É sobre a influência desse remédio, com muitos efeitos ainda desconhecidos, que ela perde o controle e comete um crime, do qual a mulher jura não se lembrar. Ela alega inocência e joga a responsabilidade sobre o psiquiatra, que vê a sua reputação desmoronar.

"Se o cinema de Hitchcock é relevante até hoje, não é por mérito apenas dos aspectos técnicos e das inovações dos seus filmes. Mas sim porque quase todos tratam da culpa, algo interessante e que nunca nos deixa em paz. Nosso filme explora algo recorrente na obra de Hitchcock: a transferência da culpa de um personagem a outro'', conta o diretor, no encontro em Berlim.

Embora Burns, filho de psicólogos, tenha usado um remédio fictício no filme, chamado Ablixa, o roteirista se baseou em remédios disponíveis no mercado americano. "Com a ajuda de Bardey, selecionamos os produtos e reproduzimos no filme a maneira como eles se vendem em seus anúncios publicitários e nas suas páginas na internet'', comenta Burns. Ele lembra que a ideia das campanhas é sempre transmitir que o paciente pode "alcançar a felicidade apenas com um comprimido''.

Em sua preparação para encarnar o psiquiatra da história, Jude Law conheceu vários médicos e pacientes. "Obviamente os remédios são benéficos em muitos casos. O problema está na tendência atual da sociedade de buscar um atalho para tudo. Em vez de tratar do que nos incomoda, parece mais fácil tomar um comprimido e fazer o desconforto sumir, como em passe de mágica'', diz o ator. "Muitas vezes, esquecemos que, tomando essas drogas, nós só reforçamos o sistema. Por trás do médico, há toda uma indústria que o encoraja a prescrevê-las. E quem movimenta essa indústria são os investidores'', completa.

A busca por medicamentos é uma forma de se desconectar da realidade, na visão de Ivonise Fernandes da Motta, psicoterapeuta, psicanalista e professora de psicologia da USP. "O remédio pode ajudar no tratamento psicoterápico, principalmente para diminuir a angústia e a ansiedade. Mas o ideal é sempre caminhar para não precisar mais da medicação'', afirma.

Ivonise diz acreditar ser pouco provável o álibi apresentado pela protagonista de "Terapia de Risco'', que culpa o Ablixa pelo comportamento imprevisível. "O remédio poderia influenciar, mas o esquecimento total de um fato geralmente tem outra razão. Há casos em que o paciente suprime da memória experiências muito dolorosas. A mente humana é capaz de fazer isso.''

Só o abuso do álcool pode gerar uma espécie de amnésia, segundo Carlos Neumann, psiquiatra, psicanalista, psicoterapeuta e professor do curso de especialização do Departamento de Psicologia Clínica do Instituto de Psicologia da USP. "Há casos em que a pessoa bebe muito e não se lembre de nada no dia seguinte, independentemente da ingestão de antidepressivos'', afirma.

Embora reconheça a prescrição indiscriminada de remédios do gênero ("quando o psiquiatra não vê a pessoa mais globalmente"), Neumann destaca a sua importância em tratamentos específicos. O primeiro passo é separar os casos de depressão. "Um paciente que passa por luto ou situação pessoal grave não pode ser tratado como o melancólico, que muitas vezes é assim desde criança.'' Feita a avaliação, o antidepressivo é recomendável quando o paciente tem transtornos ansiosos graves, ataques de pânico, compulsões ou ideias suicidas. "Ou seja, sintomas que realmente atrapalham a sua vida.''

Para Neumann, quando se trata de antidepressivos, a medicação dispensável é tão grave quanto a negação da sua necessidade. "Por um lado, temos o paciente que quer tomar o comprimido por qualquer coisa, só para se ver livre de uma tristeza momentânea. Mas, por outro, há os que precisam de medicação, mas preferem fingir que não." Neste caso, o paciente pode alegar justamente que não quer fazer parte dessa febre pelos "remédios da felicidade'', para não aumentar ainda mais os lucros da indústria farmacêutica. "O discurso sobre a ganância do setor tanto pode ser usado para o bem quanto para o mal", comenta Neumann.
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Por Elaine Guerini | Para o Valor, de Berlim

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