quarta-feira, 1 de maio de 2013

Parábola da vida moderna

 LAWRENCE FLORES PEREIRA*
 
J. M. Coetzee veio a Porto Alegre e nos trouxe também um livro estranho: é o mínimo que se pode dizer acerca de A Infância de Jesus. Depois de anos experimentando com a narrativa neorrealista, Coetzee retornou para sua raízes kafkianas e distópicas. Em A Infância de Jesus, há de novo um país algo imaginário, um admirável mundo novo, talvez um país socialista, talvez uma democracia hiper-regulada.

O livro de Coetzee foi muito esperado. O título criou um frisson. Sugeria que teríamos mais uma versão dos Evangelhos e uma nova querela com o Vaticano. Mas lendo fica claro que, se existem elos com a vida de Cristo, estes são os de um simbolismo distante. Não houve nenhuma rusga com o Vaticano. Há duas semanas, em Porto Alegre, Coetzee nos falou de como seus primeiros romances foram liberados pelos censores do apartheid graças, entre outras coisas, às suas qualidades simbólicas.

O romance é a história de Simon, um homem de meia-idade, e de David, um menino que se perdeu de seu pai e de sua mãe. Carinhoso e bom, Simon assume o encargo de achar os pais do menino. No início da história, os dois estão enredados na máquina burocrática do país ao qual pediram asilo. Há checagens burocráticas em todo o lugar (nada de novo para um brasileiro), e as regras são lidas literalmente pelos burocratas. Não é um pesadelo kafkiano, pois todos ali têm gentileza, boa vontade e senso de dever. É um mundo morno, sem senso de ironia, sátira, nuança na linguagem. Simon, do nada, encontra uma mãe substituta para o filho, Iñes, que, como nas antigas parábolas, aceita adotá-lo. Tudo tem um sabor inverossímil. David, o menino, é, como muitas crianças, pura intuição. Tem uma qualidade indagativa tão profunda que põe em dúvida até mesmo o mais evidente.

Esse traço seu muitos o encaram como um defeito reformável. Após um período na escola, seu professor aconselha sua internação num reformatório. Para o professor, o menino, ainda que inteligente, é incapaz de aprender a ler e contar. Nesse novo mundo, há uma instituição para cada problema e para cada situação, um protocolo. Até para resolver os impulsos sexuais que ainda perturbam Simon (um quarentão que todos chamam de “viejo”) há uma espécie de bordel institucional para produzir o “alívio” geral do cidadão. David não se adequa aos protocolos deste mundo e deve ser “reformado”. A magia da história chega ao seu momento intenso quando Simon, penetrando no pensamento do menino, reflete sobre a arbitrariedade da linguagem e dos números, base do pensamento intuitivo da infância.

O novo livro de Coetzee é uma estranha parábola que reflete sobre os limites das regulações e sobre os perigos que incorremos ao aplicarmos com excessiva convicção as regras e os protocolos que a rotina moderna nos legou e propaga. É também um exercício filosófico sobre as bases de algumas de nossas convicções: o Estado e as formulações simplórias que, de tão onipresentes, tornam-se modos de agir.
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* Professor do programa de pós-graduação em Letras da UFSM
Fonte: ZH on line, 01/05/2013

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