Marcelo Miterhof*
Não vale a pena sufocar o crescimento no presente em nome de uma idealização de mecanismos econômicos
Esta coluna frequentemente tenta mostrar que as disputas entre os cânones do pensamento econômico não costumam ser resolvidas.
Distintamente das ciências naturais, a complexidade e o caráter aberto
do seu objeto fazem com que, em geral, as hipóteses econômicas não
possam ser submetidas a testes laboratoriais.
Com isso, nos últimos séculos, o debate econômico pouco mudou. E assim
deve continuar, já que suas fundamentações remontam à uma disputa de
milênios, desde o florescimento da filosofia grega.
Na Grécia Antiga, havia uma oposição entre quem enxergava como marca
fundamental da realidade a fluidez do "eterno devir" --expressa na bela
metáfora de Heráclito, "ninguém se banha duas vezes no mesmo rio"-- e os
que enfatizavam a busca pelo que há de permanente no mundo.
Platão foi o expoente da última corrente, que se tornou predominante,
pregando que as coisas deste mundo são imperfeitas e distorcidas pelas
contingências. Para conhecê-lo, é melhor olhar para um outro mundo, onde
estão as formas perfeitas (ideias), que correspondem a cada uma dessas
coisas.
Esse expediente foi útil. A ideia platônica é o que entendemos por
conceito. Além disso, Platão talvez só quisesse enfatizar algo bem
sensato, que não há experiência separada do uso da razão.
Contudo, no Ocidente, intérpretes de Platão acabaram levando a um
afastamento entre razão e dados sensoriais, o que está na raiz das
abordagens econômicas ortodoxas, como: a noção de que o crescimento é
uma consequência quase automática de estabelecer suas ditas condições
(infraestrutura eficiente, inflação baixa etc.) ou a de que programas de
renda mínima desincentivariam o trabalho. Pouco importa se o Bolsa
Família é um sucesso: os sentidos nos enganam.
Numa visão empirista, não é que racionalizações sejam sem serventia.
Elas destacam mecanismos coerentes e exercitam bem as deduções.
Contudo, deduções não produzem conhecimento, garantindo apenas que, se
suas hipóteses forem corretas, suas consequências também o serão. Mais
importante, as idealizações tendem a tornar o pensamento artificial e
pouco útil. É como no amor platônico, que é de uma perfeição tal que não
o vivemos, só o contemplamos.
Outro exemplo desse artificialismo é o modelo de concorrência perfeita e
equilíbrio geral, que fundamenta o pensamento e recomendações da
ortodoxia.
Entre seus pressupostos, estão a presença de firmas pequenas, que
produzem bens homogêneos, em mercados com ampla mobilidade de capital e
trabalho. Isso destaca algo importante para entender a economia, que é o
papel da competição na alocação dos fatores produtivos.
Porém, são neutralizados outros ingredientes cruciais da competição
capitalista: a busca pela diferenciação e o poder de mercado. Assim, em
vez de mostrar o papel das inovações, a concorrência "perfeita" destaca
algo contraintuitivo, que a longo prazo preços e salários se fixariam
nos níveis de seus custos de produção.
Além disso, como tais hipóteses não correspondem à realidade, as
recomendações de política são adaptar a última às primeiras: as
"reformas", como a flexibilização do mercado de trabalho, são exemplo
disso. Os economistas teriam a tarefa de mostrar às pessoas a essência
dos mecanismos econômicos. Esse aprendizado permitiria estabelecer as
condições que garantiriam o crescimento equilibrado.
O empirismo não afasta a razão e admite que as percepções da realidade
podem ser enganosas. Porém, não há como escapar delas. Na economia, isso
significa, por exemplo, que no caminho do desenvolvimento há, sim,
desequilíbrios.
Por exemplo: é preciso que a renda per capita cresça para que existam
recursos para investir em infraestrutura. Mas, num primeiro momento, as
pessoas, tendo mais recursos, enchem as ruas de carros. De forma
parecida, se os juros caem e o câmbio se deprecia, é esperado que a
inflação fique mais alta por um tempo.
O jeito é buscar corrigir os contratempos, com mais investimento e
crescimento. É certo que tolerar desequilíbrios não garante que o
crescimento será sustentado, mas não vale a pena sufocá-lo no presente
em nome de uma idealização dos mecanismos econômicos, que, no futuro,
supostamente garantiria sua retomada.
O problema é que, se o pragmatismo predomina no cotidiano humano, no
pensamento ocidental é grande a força da idealização. Felizmente, a
política é uma boa forma de mediar essa oposição.
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