segunda-feira, 2 de setembro de 2013

Brasil vive crise de confiança política, diz Rachel Meneguello

Livro coorganizado pela cientista política da Unicamp ajuda a entender antecedentes que desencadearam as manifestações
 de rua ocorridas no país

“A desconfiança política é um fenômeno associado à percepção da ausência de representação, de distância da política, de resposta ineficaz das instituições às demandas básicas da população, constituindo uma lacuna entre os cidadãos e o sistema, uma incongruência forte entre cidadãos e Estado.” A avaliação é da cientista política Rachel Meneguello, docente do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp, coordenadora do Centro de Estudos de Opinião Pública (Cesop) e coorganizadora do livro “A Desconfiança Política e os seus Impactos na Qualidade da Democracia”, que acaba de ser lançado pela Editora da Universidade de São Paulo (Edusp).

Baseado em uma pesquisa realizada no Brasil sobre desconfiança dos brasileiros nas instituições democráticas, em 2006, com recursos da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), o livro reúne textos de oito pesquisadores que escrevem sobre democracia, representatividade, “cidadão crítico”, além da percepção dos brasileiros a respeito da Justiça, polícia e dos serviços públicos.

Se tivesse saído antes das manifestações de rua ocorridas neste ano, teria ajudado a entender um pouco melhor, quase como uma previsão, as origens dos múltiplos protestos que tomaram conta do país.

A crise de confiança política não é de hoje, muito menos é uma exclusividade do Brasil; é mesmo uma questão central para as sociedades democráticas, como destaca a autora, que assina o livro com o professor José Álvaro Moisés, da Universidade de São Paulo (USP), diretor científico do Núcleo de Políticas Públicas (Nupps) da instituição. “Estamos em uma fase de mudança que resulta em uma grande crise de desengajamento cívico; estamos desengajados civicamente”, afirma Meneguello. Leia a entrevista:

Jornal da Unicamp – Como nasceu a ideia do livro?
 Rachel Meneguello – O livro é fruto de um projeto temático da Fapesp, que eu e o professor José Álvaro Moisés [coordenador] desenvolvemos, com a participação do Nupps [Núcleo de Políticas Públicas, da USP) e do Cesop [Centro de Estudos de Opinião Pública, da Unicamp]. Em 2006, fizemos uma pesquisa nacional com dois mil entrevistados e um dos principais temas foi investigar do que se tratava democracia para as pessoas, e quais seriam as bases da confiança política para constituição da legitimidade do sistema político. Nós sabemos que o apoio à democracia é um fenômeno crescente no Brasil, na América Latina, e em vários outros países de democratização recente.

Ao mesmo tempo, as pessoas são muito insatisfeitas com o funcionamento do regime, com a forma como funcionam as instituições, com os serviços em geral do Estado. Assim, no projeto, buscamos, por um lado, entender a natureza das relações que explicariam os determinantes da avaliação predominantemente negativa das instituições encontrada no cenário brasileiro e, por outro, compreender as associações da atitude de desconfiança com um conjunto de outras atitudes, opiniões e comportamentos do público relacionados ao regime democrático.

JU – E o que, de fato, encontraram na pesquisa?
Rachel Meneguello – Para os vários temas analisados e associados com o debate sobre a democratização, encontramos que as atitudes de confiança ou desconfiança política não constituem isoladamente explicações suficientes. Seus determinantes recorrem a múltiplos fatores, como as dimensões socioeconômicas e demográficas, a avaliação do desempenho da economia, da política e de governos específicos, assim como os fatores associados com a cultura política. Esse conjunto de relações explicativas responde à própria natureza do fenômeno estudado: a desconfiança política é estrutural e afeta a grande maioria das instituições.

Além disso, ela não é um fenômeno transitório, associado a uma situação específica, como denúncias de escândalos ou crises políticas. A desconfiança é um fenômeno persistente da relação entre os cidadãos brasileiros e as instituições, tal como já mostravam as pesquisas conduzidas ao longo das últimas duas décadas. [No livro, os autores analisam questões como o fenômeno da adesão ao regime democrático e da legitimidade política; as relações entre corrupção e democracia; o papel da mídia e a confiança política; confiança, cidadania, participação e envolvimento político; confiança na justiça e na polícia e, finalmente, a avaliação do desempenho de ações estatais observadas através dos serviços públicos].

Com relação ao sistema representativo, encontramos que, apesar das inquestionáveis conquistas de procedimentos e mecanismos democráticos e do crescente apoio à democracia no país, esse contexto não foi capaz de desfazer a percepção negativa que se tem do Congresso e das instituições representativas. Foi esse cenário que vimos em junho, nas manifestações de rua no Brasil, quando grupos de manifestantes excluíam os partidos como sujeitos legítimos dos protestos. Mas a crítica aos políticos e ao sistema representativo não é de hoje. Se você toma pesquisas de décadas anteriores, a percepção negativa da política institucional já estava presente. Queríamos saber até que ponto isso poderia estar se transformando no curso da consolidação democrática, e observamos que esse processo não alterou a percepção que se tem da política institucional.

O livro apresenta reflexões que se utilizam de dados de 2006, mas que dão uma ideia de quais são as bases potencialmente explicativas do que hoje estamos vendo no país. No caso dos serviços públicos, em um dos capítulos, aponta-se que os indivíduos mais escolarizados e com maior estímulo para busca de informações políticas são os mais críticos às ações estatais.

JU – Como é possível definir o que é confiança e desconfiança no contexto da democracia?
Rachel Meneguello – A confiabilidade no funcionamento do sistema é fundamental para a credibilidade na democracia. É um fenômeno necessário para que você apoie a maneira como as coisas vêm funcionando. A confiança é uma dimensão que regula a relação entre pessoas, amigos, parentes, e refere-se às expectativas que as pessoas têm a respeito do comportamento dos outros com quem convivem. É preciso confiar nas pessoas para que seu cotidiano tenha parâmetros estáveis de funcionamento e é preciso confiar nas instituições para que o cotidiano tenha bases suficientes para que o sistema seja apoiado. A democracia precisa desse comprometimento do cidadão que, por sua vez, constitui-se com a crença de que o papel dos intermediários, ou instituições, é desempenhado adequadamente. Assim, é com essa expectativa que as pessoas deveriam procurar a justiça, a polícia, deveriam votar e procurar seus representantes.

JU – E quando falamos de perceber o funcionamento das instituições, estamos tratando de um processo de múltiplas influências, não só apenas da mídia?
Rachel Meneguello – No processo de formação de opinião, o papel da mídia é fundamental, mas não é o único. A mídia tem sido vista como responsável por alimentar o cinismo e a desconfiança entre os cidadãos ou, por outro lado, como fonte de informações capaz de estimular o seu engajamento político. Os estudos no âmbito do projeto, nessa direção, apontam que as mensagens da mídia interagem com outras dimensões, como o apoio aos governos e o grau de sofisticação política das pessoas. Há ainda a experiência dos indivíduos com as próprias instituições, como ocorre no caso dos serviços públicos e da justiça.

JU – No cenário brasileiro, há confiança ou desconfiança nas instituições?
Rachel Meneguello – Desconfiança. Esse é o problema. A democracia é um regime que requer altos níveis de confiança pública nos mecanismos institucionais de formação de governos, em razão da delegação de soberania e de poder que os cidadãos fazem aos seus representantes eleitos. Mas essa desconfiança não é acompanhada pela opinião de que é possível o país viver sem Congresso e sem partidos; a grande maioria das pessoas afirma a importância da presença das instituições representativas e esse é o ponto interessante. Nos mais de 25 anos de democracia constituiu-se um significativo apoio normativo à democracia e às instituições representativas.

Os dados obtidos mostram que os cidadãos brasileiros apoiam a presença dos partidos, apoiam a existência do Congresso, mas estão completamente insatisfeitos e desconfiados. São as instituições que acolhem as mais negativas avaliações sobre seu desempenho: apenas 19% do total de entrevistados avaliam positivamente os partidos, e 28% avaliam positivamente o Congresso, contra, por exemplo, a instituição da Igreja, com uma avaliação de mais de 87%. Constituiu-se ao longo desse período uma importante defasagem entre a percepção da necessidade das instituições e a avaliação de sua atuação e desempenho.

JU – Existe ume relação entre confiança política e participação, mobilização?
Rachel Meneguello – Esse cenário é mais complexo, porque as dimensões da participação e mobilização estão ligadas à capacidade de engajamento das pessoas. Isso tem relação direta com os graus de associativismo, que por um lado, encontra hoje baixos níveis no Brasil e no mundo em suas formas mais convencionais, como a participação em sindicatos e associações. Por outro lado, há uma capacidade inovadora nas novas formas de mobilização viabilizadas pelas novas tecnologias.

De toda forma, no caso das recentes mobilizações que testemunhamos, entendo que traduzem, em parte, um contexto de forte desengajamento cívico, que resulta da incapacidade dos partidos, dos políticos e das instituições de intermediar o descontentamento e a crítica. Cabe apontar que esse é um fenômeno amplo, encontrado nos vários países, e relacionado à forma do governo representativo. A desconfiança, o desengajamento cívico e o distanciamento com a política estão interligados. Um não causa o outro, mas estão conectados.

JU – E qual o risco disso?
Rachel Meneguello – Se esse cenário adquire patamares altos, condiciona-se a legitimidade democrática. A legitimidade democrática deve ser entendida como um tipo ideal relacionado às crenças dos cidadãos de que a política democrática e as instituições sobre as quais ela se estabelece são a forma mais apropriada para estruturar-se o sistema político. Dessa forma, ela precisa de bases de sustentação. Mas isso não significa que o regime está em risco de ruptura, não há indicadores que apontem esse cenário. O que está em risco é a qualidade da democracia. No caso do sistema representativo, se não houver confiança das pessoas nos partidos, o risco de cair em sistemas populistas é grande. O populismo é uma vertente que não interessa ao funcionamento democrático. Ele prescinde da relação formal com os cidadãos. A liderança personalista que se sustenta sem partidos é um risco.

JU – Por que é tão importante ter as pessoas confiando nas instituições?
Rachel Meneguello – As instituições políticas são os intermediários entre os cidadãos e o Estado, elas conferem as garantias de direitos e procedimentos e é a percepção de que de fato elas se desempenham nessa direção é o que garante o compromisso de cooperação dos cidadãos com o regime. Se as novas tecnologias e redes sociais agilizam mobilizações e ações políticas, falta-lhes capacidade de integrar e agregar demandas de forma a canalizá-las para o sistema político. São as instituições que têm essa função.

JU – O livro aborda a questão do “cidadão crítico”, um interessante personagem para as sociedades democráticas. Como podemos defini-lo?
Rachel Meneguello – São cidadãos que acreditam na democracia, mas são altamente críticos sobre o seu funcionamento. Não entendem que os partidos os estejam representando adequadamente, não entendem que o governo responda adequadamente às demandas, não entendem que o cotidiano e o bem-estar estejam sendo devidamente providos pelo Estado, e etc. Entendem que há lacunas importantes para esse grau de congruência entre cidadãos e Estado.

JU – Esse cidadão crítico é o mesmo que foi para as ruas brasileiras em junho?
Rachel Meneguello – Não creio que seja possível juntar todos os manifestantes em um único conceito. Com toda certeza, boa parte deles era esse cidadão crítico. Mas entendo que o que observamos ali foi um quadro de insatisfação generalizada baseado em múltiplas demandas expressa a partir de formas distintas de organização. Ainda é preciso maior clareza sobre as mobilizações.

JU – Podemos dizer que o desafio para as sociedades democráticas é aprender a conviver com esse cidadão crítico?
Rachel Meneguello – A democracia representativa é um sistema que originalmente distancia o indivíduo da política, porque ele confere a sua soberania de escolha e decisão ao representante eleito. A cobrança pelo desempenho de seus agentes e mecanismos é consequência das suas bases de funcionamento. Esse movimento crítico pela qualidade da democracia é parte integrante do funcionamento democrático.

“A democracia é um regime
que requer altos níveis de
confiança pública nos
mecanismos institucionais de
formação de governos”

“Os cidadãos apoiam a presença
dos partidos, apoiam a existência do Congresso, mas estão
completamente insatisfeitos e
desconfiados”

“Se as novas tecnologias
e redes sociais agilizam
mobilizações e ações políticas,
falta-lhes capacidade de integrar
e agregar demandas”

Destaque

“CONFIANÇA em linguagem comum designa segurança de procedimentos diante de diferentes circunstâncias que afetam a vida das pessoas. Ela se refere às expectativas que as pessoas alimentam a respeito do comportamento dos outros com quem convivem e interagem; e diz respeito à ação desses outros quanto aos seus interesses, aspirações ou preferências. Nas ciências sociais, o interesse pelo conceito está associado à preocupação com os processos informais por meio dos quais as pessoas enfrentam incertezas e as imprevisibilidades que decorrem da crescente complexificação da vida, no contexto de um mundo crescentemente globalizado, interdependente e fortemente condicionado por avanços tecnológicos que afetaram profundamente a comunicação social [...]” José Álvaro Moisés e Rachel Meneguello




SERVIÇO
Livro: “A Desconfiança Política e os seus Impactos na Qualidade da Democracia”
Autores: José Álvaro Moisés e Rachel Meneguello (orgs)
Editora: Edusp
Preço: R$ 56,00
Saiba mais: www.edusp.com.br


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