Lya Luft*
Este é talvez um dos fatos mais assustadores e tristes do nosso
momento: falta de segurança generalizada, o medo, pois aqui se mata e se
morre como quem come um pãozinho.
Bala perdida, traficante, bandido graúdo ou pequeno, e o menor de
idade, que é o mais complicado: pelas nossas leis absurdas, sendo menor
ele não é de verdade punido. É levado para um estabelecimento
hipoteticamente educativo e socializador, de onde deveria sair
regenerado, com profissão, com vergonha na cara, sair gente. Não sai.
Não, salvo raríssimas exceções, e todo mundo sabe disso.
Todo mundo sabe que é urgente e essencial reduzir para menos de 18
anos a idade em que se pode prender, julgar, condenar um
assassino feroz, reincidente, cruel e confesso. Mas aí vem quem defenda,
quem tenha pena, ah! os direitos humanos, ah! são crianças.
São assassinos apavorantes: torturam e matam com frieza de animais,
tantas vezes, e vão para a reeducação ou a ressocialização certamente
achando graça: logo, logo estarão de volta. Basta ver os casos em que,
checando-se a ficha do “menino”, ele é reincidente contumaz.
Outro ponto dessa nossa insegurança é a rala presença de policiais em
muitas cidades brasileiras. Posso rodar quarteirões intermináveis de
carro, e não vejo um só policial. Culpa deles? Certamente não.
Os policiais ganham mal, arriscam a vida, são mortos
frequentemente, são mais heróis do que vilões, embora muitos os queiram
enxergar assim. Onde não temos policiamento, mais insegurança.
Na verdade, a violência é tão alta e tão geral no país que mesmo
porteiros treinados de bons edifícios ou condomínios pouco adiantam:
facilmente são rendidos, ou mortos, e estamos à mercê da bandidagem.
Banalizamos a vida também nessas manifestações de toda sorte, em que
paus, barras de ferro, bombas caseiras, até armas de fogo, não
apenas assustam, não só ameaçam, mas aqui e ali matam alguém.
Incendeiam-se ônibus não apenas em protesto, mas por pura maldade, com
gente dentro, mesmo crianças: que civilização estamos nos tornando?
Morrer assassinado, mesmo sem estar no circuito perigoso dos
bandidos, dos marginais, começa a se tornar, não ainda banal, mas já
frequente: nas ruas, às 10 da manhã, matam-se pais de família ou jovens
estudantes ou operários. Não falo em becos onde a violência impera e a
mortandade é comum, mas em ruas abertas de bairros de classe média.
Não se passa semana sem que se noticie criança morta por bala
perdida. Agora uma mulher foi morta com um tiro na cabeça quando ia
comprar pão para as oito crianças que estava criando: levada no
porta-malas do carro da polícia, caiu na rua, ficou presa pela roupa e
assim foi arrastada no asfalto por um longo trecho.
Vemos esse horror na televisão, e vamos tomar calmamente o café da
manhã. Nada, quase nada mais nos espanta: estamos ficando calejados, não
nas mãos por trabalho duro, mas na alma pelo horror que nos assola
tanto que a cada vez nos horrorizamos menos.
Que humanidade estamos nos tornando, nós os abandonados, os
expostos, os indefesos, sem proteção nem de uma Justiça confusa,
anacrônica, irreal, e, quando a lei é boa, tão mal cumprida?
Quero escrever uma coluna otimista. Quero escrever poemas
delicados, romances intensos, crônicas de amor pela cidade, pelas
pessoas, pela natureza, quero tudo isso. Mas se tenho voz, e vez, não
posso falar de flores enquanto o asfalto mostra manchas de sangue,
famílias são destroçadas, ruas acossadas, casas ameaçadas, seres humanos
feito coelhos amedrontados sem ter para onde correr, nem a quem
recorrer, e não se vê nem uma luz no fim desse túnel.
Pouca esperança real temos. Nós nos desinteressamos para sobreviver
emocionalmente diante da horrenda banalização da vida representada não
só pela quantidade e violência dos crimes cometidos e impunes como pela
punição incrivelmente pequena para quem mata com seu automóvel por
correr demais ou dirigir bêbado, por exemplo.
O descaso, ou a incompetência, com que tudo isso é administrado nos
faz temer outra ameaça ainda: a banalização da vida é o outro lado da
banalização da morte.
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* Escritora.
Fonte: http://veja.abril.com.br/blog/ricardo-setti/politica-cia/lya-luft-a-banalizacao-da-vida/29/03/2014
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