Na internet, o contato com o outro se torna muito mais fácil, simples
e cômodo: com um clicar de botões, instantaneamente temos acesso ao
mundo – e o mundo pode ter acesso a nós. E o que era para ser uma
inter-relação – uma ação com o outro –, muitas vezes, acaba desmoronando para uma ação sobre o outro e, facilmente, para uma ação contra o outro.
“Um homem ia descendo de Jerusalém para Jericó e caiu nas mãos de assaltantes, que lhe arrancaram tudo e o espancaram. Depois foram embora e o deixaram quase morto” (Lc 10, 25-37). A parábola contada por Jesus é bastante conhecida e, infelizmente, muito atual em tempos de internet. São muitas as pessoas, especialmente crianças e jovens, que caem nas mãos de “assaltantes digitais”, que lhes arrancam tudo, espancam-nas, vão embora e as deixam quase mortas – em termos pessoais, familiares, comunitários e sociais.
A intolerância, a agressividade, a humilhação e o ódio na internet
(formas de violência também chamadas de ciberbullying) não são uma
novidade e se tornam cada vez mais crescentes e alarmantes. A
organização britânica Ditch the Label, que combate as diversas formas de bullying, realizou em 2013 a maior pesquisa sobre ciberbullying
feita até hoje, com mais de 10 mil jovens. O resultado: 7 em cada 10
entrevistados (ou 69%) são vítimas de agressões na internet. Do total,
37% sofrem as agressões em um nível considerado “altamente frequente”, e
20% experimentam modalidades de “ciberbullying extremo” diariamente. De
acordo com a pesquisa, redes sociais digitais como Facebook e Twitter são as principais fontes de agressões.
Essas agressões envolvem questões de gênero, política, economia,
etnia... e também religião. Até mesmo no interior de sites e páginas
autodenominados católicas, a intolerância e a agressividade se fazem
presentes: o “ser católico” se torna uma propriedade exclusiva de alguns
poucos guardiões ferrenhos da doutrina e da moral, que se arrogam o
direito de apontar “ateus”, “pagãos” e “hereges” por toda a parte,
sempre com um mesmo destino: a excomunhão (ou mesmo o inferno). Pessoas
que só se sentem “católicas” se tiverem um inimigo explícito a combater,
sempre entrincheiradas contra eles. E, assim, a autêntica catolicidade –
a universalidade do ser cristão – dá lugar ao sectarismo mais
canhestro.
Há muitos elementos que colaboram com esse fenômeno, principalmente a
facilidade de acesso e de uso das tecnologias digitais, e sua
abrangência e disseminação como ambientes de interação pessoal e de
comunicação social. Na internet, o contato com o outro se torna muito
mais fácil, simples e cômodo: com um clicar de botões, instantaneamente
temos acesso ao mundo – e o mundo pode ter acesso a nós. Expormo-nos e
expor os outros, para o bem ou para o mal, passa a estar ao alcance das
mãos. A facilidade da interação também pode se somar ao anonimato das
conversas, que esconde o pior de cada um. A tecnologia que nos aproxima,
ao mesmo tempo, nos distancia. Estamos “juntos”, mas às vezes não nos
reconhecemos. E o que era para ser uma inter-relação – uma ação com o outro – acaba desmoronando para uma ação sobre o outro e, facilmente, para uma ação contra o outro.
E não se trata de “coisas do mundo virtual”. Bento XVI
já afirmava que “o ambiente digital não é um mundo paralelo ou
puramente virtual, mas faz parte da realidade cotidiana de muitas
pessoas, especialmente dos mais jovens”. Não existe oposição entre
“mundo real” e “mundo virtual”. Há apenas um ambiente digital
(ou seja, mediado por uma tecnologia específica) dentro de uma mesma
realidade humana. A culpa não é da internet. O ciberbullying é apenas a
versão digital de algo que já existe na vida cotidiana. A dor da ofensa
recebida na internet tem o mesmo peso se fosse dita face a face – ou é
até mais forte, já que na internet ela pode ser pública e acessível por
qualquer pessoa, a qualquer momento, em qualquer lugar.
E aqui voltamos à parábola de Jesus. O homem ferido
foi ignorado pelo sacerdote e pelo legista, que passaram “pelo outro
lado”. Quem o socorreu foi um samaritano (um desconhecido, estranho,
forasteiro, diferente), que “se aproximou dele, viu, e teve compaixão”
(v. 33). O Papa Francisco, em sua mensagem ao 48º Dia Mundial das Comunicações,
chama esse relato evangélico de “parábola do comunicador”. Na
comunicação também, portanto, o desafio é superar a intolerância e a
agressividade dos assaltantes, e a indiferença e o preconceito do
sacerdote e do legista. Para isso, o papa propõe a proximidade: pois
“comunicação é proximidade”, e “quem comunica faz-se próximo”.
Para entender o valor da proximidade, podemos recorrer a uma antiga
parábola da cultura tibetana. Ela conta que um viajante caminhava
sozinho pelo deserto. Lá ao longe, percebeu que algo de confuso se
mexia. Começou a ter medo: na solidão absoluta, esse ser obscuro e
misterioso talvez pudesse ser um animal, uma fera. Porém, o viajante
avançou, se aproximou um pouco mais e entreviu que não se tratava de uma
fera, mas sim de uma pessoa. O medo, contudo, não passou: ao contrário,
aumentou com o pensamento de que aquela pessoa podia ser um ladrão. Mas
o viajante continuou, avançou ainda mais, até estar frente a frente com
o outro. Foi então que o viajante o reconheceu e, com surpresa e
comoção, exclamou: “Meu irmão! Há tantos anos não nos víamos!”.
A distância gera medo. Por medo do desconhecido e do diferente,
preferimos ficar longe, muitas vezes encastelados em indiferença e
preconceito, ou abrindo espaço apenas para a intolerância e a
agressividade. Mas, para superar o temor, é preciso me aproximar do
outro. Reconhecer esse outro que me desafia – e que não era nem
percebido, ou era percebido negativamente. Colocar-me frente a frente
dele para reconhecer nossas semelhanças e diferenças. E também para me
dar conta de que a alteridade e a heteronomia do outro são fundamentais
para a constituição da minha própria identidade e autonomia pessoais.
Proximidade, portanto, não é mera tolerância ao outro. Muitas vezes,
somos tolerantes porque somos indiferentes. Toleramos o diferente porque
todos são indiferentes para mim: “Que façam o que quiserem, contanto que não interfiram na minha vida!”.
Proximidade também não é “ter pena” do outro. Sentir pena é tornar o
outro inferior a mim, vitimizando-o e fragilizando-o ainda mais. “Eu,
que estou ‘ótimo, obrigado’, sinto pena de você, que se encontra na
pior”.
Proximidade não é apenas viver uma comunicação de “conto de fadas”: o
conflito também é uma forma de interação. Comunica-se algo no conflito.
Mas – para que não se esvazie na indiferença ou não exploda no ódio –
ele deve ser superado e vivido como reconhecimento do outro na sua
diferença. Trata-se de dia-logar: permitir que dois saberes diferentes se encontrem. No encontro dialógico, já dizia Paulo Freire,
não há um ignorante absoluto, nem um sábio absoluto: há duas pessoas
que, em comunhão, buscam saber o que ainda não sabem, ou saber mais do
que já sabem. Trata-se de passar do duelo ao dueto: o outro que me
assusta e me questiona se torna desafio positivo para a minha própria
superação, e não obstáculo a ser ignorado ou destruído.
Na parábola evangélica, ao contrário do sacerdote e do legista, o
samaritano viu no homem ferido e jogado pela estrada um ser humano.
Reconheceu um “outro” semelhante a ele e “teve compaixão”. Com-padeceu-se.
Viveu junto com ele aquele padecimento, aquela paixão, aquele
sofrimento. Sentiu na sua própria carne a agressão dos assaltantes. E
assim pôde cuidar do homem ferido, porque se fez semelhante a ele. O
samaritano foi ao encontro, se fez próximo, sentiu compaixão e cuidou
dele, como Jesus, que tinha a condição divina, mas não se apegou a ela.
Ao contrário, esvaziou-se e assumiu a condição de servo, de ser humano,
por puro amor a nós (cf. Fil 2, 6-7).
Com a parábola do bom samaritano, afirma o papa, “Jesus
inverte a perspectiva”. “Não se trata de reconhecer o outro como um
semelhante meu, mas da minha capacidade de me fazer semelhante ao
outro”. Fazer-me próximo é ir além do mero reconhecimento indiferente ou
tolerante do outro. É “fazer-me semelhante ao outro”. O maior
desafio de qualquer processo comunicativo não é apenas reconhecer o
outro na sua diferença – mas sim aceitá-lo e amá-lo nessa diferença. É reconhecer que somos iguais na diferença, e por isso nos “aproximamos”, criamos “proximidade”, nos fazemos próximos e nos comunicamos.
Hoje, embora nos achemos tão “desenvolvidos” tecnologicamente,
precisamos resgatar com urgência alguns aspectos básicos e milenares dos
processos comunicativos, como o encontro e a proximidade. Ainda temos
muito a aprender com as culturas originais. As tribos africanas, nesse
sentido, nos deixaram como legado o valioso princípio ético do ubuntu,
que significa: “Eu sou porque nós somos”. Existo porque existimos
juntos. Coexistimos. Por isso, destruir a existência do outro, na
internet ou não, é destruir a todos nós. Cuidar do outro, como o bom
samaritano, é cuidar de todos nós. Pois, como diz o ditado, “se todos
portarem uma faca, é fácil surgir a violência. Mas, se todos carregarem
violões, é fácil surgir música”.
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A opinião é de Moisés Sbardelotto, jornalista, doutorando em Ciências das Comunicação pela Unisinos e autor do livro E o Verbo se fez bit: A comunicação e a experiência religiosas na internet (Ed. Santuário, 2012). O artigo foi publicado na revista O Mensageiro de Santo Antônio, de abril de 2014.
Fonte: IHU online, 04/04/2014
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