segunda-feira, 28 de abril de 2014

Mistérios e extremos

Daniel Galera*

O escritor japonês Yukio Mishima e a relação entre a leitura e os exercícios físicos

O japonês Yukio Mishima é um dos meus escritores favoritos. Finalmente assisti ao filme “Mishima — Uma vida em quatro tempos”, dirigido por Paul Schrader em 1985. É uma biografia cinematográfica das mais estranhas, no bom sentido. Com produção de Francis Ford Coppola e George Lucas, tem trilha sonora de Philip Glass e uma produção de arte excêntrica. Trechos sobre a vida do escritor, filmados em preto e branco, se alternam com encenações coloridas e quase bregas de algumas de suas principais obras, tais como “O pavilhão dourado” e “Cavalo selvagem”. A narrativa é excêntrica, porém eficiente, e dá conta dos principais elementos da vida de Mishima: a avó possessiva que o criou na infância, a homossexualidade e o culto ao corpo, a devoção às tradições imperiais, o ritual solitário de escrita de sua prolífica obra, o exército particular que criou e liderou para, no auge de sua trajetória, invadir uma instalação militar e cometer suicídio ritual.

O texto do filme é em grande parte extraído de “Sol e aço”, um ensaio poético e autobiográfico que, se não me engano, foi a última coisa que ele escreveu. Nele, Mishima diz que é preciso investigar o significado da morte ao mesmo tempo com o espírito — a investigação intelectual — e com a carne — a investigação física. Em primeiro lugar, o exercício talha o corpo para exercer um contraste com a morte e, assim, ressaltá-la como objeto da busca intelectual. “O que salva a carne de ser ridícula é a presença da morte que reside num corpo vigoroso e saudável”. À época da leitura, associei suas palavras à minha própria relação com os exercícios físicos e com a leitura. Sempre tive a sensação de que são mundos complementares. Nunca achei que a mente habitasse o corpo. Mente e corpo são a mesma coisa, e a sensação de que uma habita o outro é apenas uma piada não intencional da consciência. 

Desse ponto em diante, Mishima afirma sua ambição de alcançar uma combinação entre a arte e a ação. “Agora entendo que o tipo de tarefa de polir a imaginação para a morte e o perigo acaba tendo o mesmo significado de afiar a espada. (...) Manter a morte na alma dia a dia, focalizar cada momento à luz da morte inevitável, colocar em um mesmo lugar nossos mais sinistros presságios e nossos sonhos de glória... se isso era tudo, então era suficiente transferir ao mundo da carne o que há muito tempo eu vinha fazendo no mundo do espírito”. 

Homem e artista radical que era, Mishima levou a ideia a um patamar de ação extremo, que incluía lutas marciais, glorificação do militarismo e da coragem física et cetera. Não tenho a mesma disposição. Essas coisas só me interessam num plano estético. Mas entendo bem do que ele fala nesse outro trecho: “Minha paz estava mais do que em qualquer lugar — só ali, aliás — nos pequenos renascimentos que ocorriam imediatamente após o exercício. Agitação contínua, mortes contínuas sem parar, fuga incessante da fria objetividade — nesse momento, eu não podia mais viver sem esses mistérios. Nem é preciso dizer: dentro de cada mistério, uma minúscula imitação da morte”. 

Os movimentos repetidos da natação, a concentração na respiração e no desenho das braçadas, a visão limitada, o ruído da água agitada, o deslizamento eficiente de um nado vigoroso e bem coordenado podem levar a um autoabandono que nos põe em contato com os mesmos mistérios que estimulam o intelecto. Essa experiência física é ao tempo antagônica e complementar ao espírito. A face antagônica é bastante clara, como Mishima exemplifica: “Suponha que eu agite os braços. Ao fazê-lo, perco parte do sangue intelectual. Suponha que eu me permita, mesmo que por um instante, a pensar antes de dar um golpe. Nesse momento, meu movimento está condenado ao fracasso”. A face complementar parece mais insondável. Mishima sonha com o lugar onde as duas coisas devem se encontrar, “um território afim àquele reino supremo onde movimento torna-se repouso e repouso, movimento”. Ele conclui que esse princípio maior onde arte e ação se encontram só pode ser a própria morte.

Parte do perfil de Hermano, protagonista do meu romance “Mãos de Cavalo”, é inspirada na leitura de “Sol e aço” — sua relação meio masoquista com os exercícios, o esforço de sobrepujar por meio do intelecto a obsessão com o sangue e a covardia. Mishima fez de si mesmo um personagem heroico, encarnou sua visão de mundo radical. Hermano é uma encarnação mais banal, ambígua e hesitante das mesmas ideias. E nisso sou como ele. Não sou um homem de extremos intelectuais ou físicos. Me contento com — ou estou limitado a — uma faixa média de pensamento e experiência. Tenho certeza de que isso está claro no meu comportamento e também no que escrevo. E tudo bem. Tenho um segredo, não espalhem: não se encontra o mistério somente nos extremos.

Do Blog: Para quem quer ler mais:  Marguerite Yourcenar escreve sobre Yukio Mishima

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* Colunista do jornal O Globo.
Fonte: Globo online, 28/04/2014
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