Daniel Galera*
O escritor japonês Yukio Mishima e a relação entre a leitura e os exercícios físicos
O japonês Yukio Mishima é um dos meus escritores favoritos.
Finalmente assisti ao filme “Mishima —
Uma vida em quatro tempos”, dirigido por Paul Schrader em 1985. É uma biografia cinematográfica
das mais estranhas, no bom sentido. Com produção de Francis Ford Coppola e
George Lucas, tem trilha sonora de Philip Glass e uma produção de arte excêntrica. Trechos
sobre a vida do escritor, filmados em preto e branco, se alternam com encenações
coloridas e quase bregas de algumas de suas principais obras, tais como “O
pavilhão dourado” e “Cavalo selvagem”. A narrativa é excêntrica, porém
eficiente, e dá conta dos principais elementos da vida de Mishima: a avó possessiva que o criou na infância,
a homossexualidade e o culto ao corpo, a devoção às tradições imperiais, o
ritual solitário de escrita de sua prolífica obra, o exército particular que
criou e liderou para, no auge de sua trajetória, invadir uma instalação militar
e cometer suicídio ritual.
O texto do filme é em grande parte extraído de “Sol e aço”, um ensaio poético
e autobiográfico que, se não me engano, foi a última coisa que ele escreveu.
Nele, Mishima diz que é preciso
investigar o significado da morte ao mesmo tempo com o espírito — a investigação
intelectual — e com a carne — a investigação física. Em primeiro lugar, o
exercício talha o corpo para exercer um contraste com a morte e, assim,
ressaltá-la como objeto da busca intelectual. “O que salva a carne de ser
ridícula é a presença da morte que reside num corpo vigoroso e saudável”. À
época da leitura, associei suas palavras à minha própria relação com os
exercícios físicos e com a leitura. Sempre tive a sensação de que são mundos
complementares. Nunca achei que a mente habitasse o corpo. Mente e corpo são a
mesma coisa, e a sensação de que uma habita o outro é apenas uma piada não
intencional da consciência.
Desse ponto em diante, Mishima
afirma sua ambição de alcançar uma combinação entre a arte e a ação. “Agora
entendo que o tipo de tarefa de polir a imaginação para a morte e o perigo acaba
tendo o mesmo significado de afiar a espada. (...) Manter a morte na alma dia a
dia, focalizar cada momento à luz da morte inevitável, colocar em um mesmo lugar
nossos mais sinistros presságios e nossos sonhos de glória... se isso era tudo,
então era suficiente transferir ao mundo da carne o que há muito tempo eu vinha
fazendo no mundo do espírito”.
Homem e artista radical que era, Mishima
levou a ideia a um patamar de ação extremo, que incluía lutas marciais,
glorificação do militarismo e da coragem física et cetera. Não
tenho a mesma disposição. Essas coisas só me interessam num plano estético. Mas
entendo bem do que ele fala nesse outro trecho: “Minha paz estava mais do que em
qualquer lugar — só ali, aliás — nos pequenos renascimentos que ocorriam
imediatamente após o exercício. Agitação contínua, mortes contínuas sem parar,
fuga incessante da fria objetividade — nesse momento, eu não podia mais viver
sem esses mistérios. Nem é preciso dizer: dentro de cada mistério, uma minúscula
imitação da morte”.
Os movimentos repetidos da natação, a concentração na
respiração e no desenho das braçadas, a visão limitada, o ruído da água agitada,
o deslizamento eficiente de um nado vigoroso e bem coordenado podem levar a um
autoabandono que nos põe em
contato com os mesmos mistérios que estimulam o intelecto. Essa experiência
física é ao tempo antagônica e complementar ao espírito. A face antagônica é
bastante clara, como Mishima
exemplifica: “Suponha que eu agite os braços. Ao fazê-lo, perco parte do sangue
intelectual. Suponha que eu me permita, mesmo que por um instante, a pensar
antes de dar um golpe. Nesse momento, meu movimento está condenado ao fracasso”.
A face complementar parece mais insondável. Mishima sonha com o lugar onde as duas coisas
devem se encontrar, “um território afim àquele reino supremo onde movimento
torna-se repouso e repouso, movimento”. Ele conclui que esse princípio maior
onde arte e ação se encontram só pode ser a própria morte.
Parte do perfil de Hermano, protagonista do meu romance “Mãos de Cavalo”, é
inspirada na leitura de “Sol e aço” — sua relação meio masoquista com os
exercícios, o esforço de sobrepujar por meio do intelecto a obsessão com o
sangue e a covardia. Mishima fez
de si mesmo um personagem heroico, encarnou sua visão de mundo radical. Hermano
é uma encarnação mais banal, ambígua e hesitante das mesmas ideias. E nisso sou
como ele. Não sou um homem de extremos intelectuais ou físicos. Me contento com
— ou estou limitado a — uma faixa média de pensamento e experiência. Tenho
certeza de que isso está claro no meu comportamento e também no que escrevo. E
tudo bem. Tenho um segredo, não espalhem: não se encontra o mistério somente nos
extremos.
Do Blog: Para quem quer ler mais: Marguerite Yourcenar escreve sobre Yukio Mishima
Do Blog: Para quem quer ler mais: Marguerite Yourcenar escreve sobre Yukio Mishima
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