Delfim Netto*
Nunca a solidez fiscal foi tão necessária para nos livrar dos efeitos dessa crise mundial que não dá sinais de terminar
A ideia que muitos economistas e políticos
insistem em sustentar de que a instituição chamada “mercado” tem a
capacidade de autocorrigir-se e os resultados da distribuição de seus
benefícios são “justos ou merecidos”, dispensando por isso a
interferência do Estado é tão absurda quanto é falsa a afirmação de que
os problemas dessa terrível crise na economia mundial foram produzidos
pelo mau comportamento dos “mercados” sem a cumplicidade dos Estados
“soberanos”.
A economia de “mercado” não foi inventada. Há claras
evidências que os “mercados” existem desde a velha Mesopotâmia, 500 anos
antes de Cristo. Ela foi sendo “descoberta” pelos próprios homens na
sua atividade prática de buscar instituições que lhes permitissem
facilitar a sobrevivência material e a possibilidade de combiná-la com
sua eterna busca de liberdade de iniciativa. Ela não é nem perfeita nem
imortal. A grande esperança é que a ação do Estado, garantidora da sua
funcionalidade, possa minorar seus defeitos com as políticas econômica
(a flutuação) e social (a desigualdade).
Já passou da hora de os economistas se
livrarem de algumas ingenuidades. A primeira é de que Deus foi bom com
eles deixando-lhes como objeto de estudo um mundo cuja ordem poderia ser
descoberta como é, por exemplo, o movimento dos astros. A segunda é o
reconhecimento que, por mais importante que seja o papel do Estado, o
poder incumbente está longe de ser onisciente e, logo, não precisa ser
onipresente e muito menos pretender a onipotência! A história nos
ensinou e a experiência atual confirma que o Estado precisa ser
fiscalmente responsável!
Não é preciso
ser economista para entender que a despesa pública não pode ser,
permanentemente, maior do que a receita pública, não importa a
“qualidade” ou a “necessidade” do gasto. Se ele é imperioso e
permanente, só há três formas de atendê-lo:
1. Aumentando a eficiência do governo.
2. Cortando despesa menos prioritária.
3.
Aumentando os impostos.
É uma maldição aritmética desagradável que a
relação Dívida Pública/PIB só pode ser estabilizada num nível cujo
financiamento possa ser feito, permanentemente, com uma taxa de juros
real menor do que a taxa de crescimento real do PIB.
Parece razoável concluir, portanto, que o
que precisa ser superado é a irresponsabilidade fiscal dos Estados e a
sua incompetência regulatória. Uma década (ou mais) antes de 2007-2008 a
economia mundial viveu subjugada ao comportamento de Estados pouco
cuidadosos fiscalmente e impotentes diante do poder econômico dos
interesses financeiros. A crise que deflagrou a Grande Recessão é a
testemunha da tendência do setor financeiro de servir-se do setor real e
de sua capacidade de apropriar-se do poder incumbente. Os “indignados”
que ocuparam as praças públicas nos centros financeiros passaram a
sugerir a volta de ideias de cérebros peregrinos que “inventaram” outros
mecanismos de organização social. Os mesmos que rechearam de tragédias o
século XX. É preciso insistir que, pelos menos até agora, o “mercado”
como instrumento alocativo relativamente eficiente não encontrou nenhum
substituto, como mostram o fracasso soviético e o sucesso chinês.
A crise americana é menos grave, mas a
recuperação tem sido quase tão penosa quanto a dos países da Eurolândia.
Os EUA tinham tudo para sair mais depressa da crise, mas falta-lhes uma
liderança que reconstrua a confiança da sociedade.
Na Eurolândia, a questão
é mais complicada por causa do desalinhamento das moedas dentro do Euro
que causa resultados assimétricos nos balanços de pagamentos. O jogo
dialético civilizatório (apoiado no sufrágio universal) entre o
“mercado” e a “urna” não é uma linha reta: pode sofrer graves e custosos
desvios. O fato fundamental é que ele não resiste à irresponsabilidade
fiscal. Quando esta leva as lideranças políticas à completa
predominância do curto prazo sobre o longo, aproveitando-se de situações
econômicas passageiras favoráveis para permanecer no poder, o “mercado”
(isto é, a realidade fática) acaba cobrando o seu preço.
O Brasil pagou tal preço no passado.
Nunca a solidez fiscal foi tão necessária para nos livrar dos efeitos
dessa crise mundial que não dá sinais de terminar.
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* Formado pela USP, é professor de Economia, foi ministro e deputado federal.
Fonte: Carta Capital online, acesso 23/04/2014
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