"Transformando-nos
em frenéticos, o cristianismo nos preparava, apesar de si mesmo, a
engendrar uma civilização da qual ele mesmo é a vítima: por acaso não
criou em nós demasiadas necessidades, demasiadas exigências?
Necessidades e exigências interiores a princípio, que se degradariam e
se tornariam exteriores, assim como o fervor de que emanavam tantas
orações suspendidas bruscamente, um fervor que, não podendo desvanecer
nem ficar sem emprego, pôs-se a serviço de deuses de reposição, forjando
símbolos à medida de nossa nulidade.
Estamos entregues a uma
falsificação de infinito, a um absoluto sem dimensão metafísica,
submersos na velocidade por não podermos está-lo no êxtase. Essa sucata
ofegante, réplica de nossa inquietude, e esses espectros que as
conduzem, esse desfile de autômatos, essa procissão de alucinados, aonde
vão, que buscam? Que espírito de demência os impulsiona? Cada vez que
estou a ponto de absolver os homens civilizados, cada vez que tenho
dúvidas sobre a legitimidade da aversão ou do terror que me inspiram,
basta que eu pense nas estradas do campo em um dia de domingo para que
esse larvário motorizado me reafirme no meu asco ou em meus temores.
Em
meio a esses paralíticos ao volante que aboliram o uso das pernas, o
pedestre parece um excêntrico ou um proscrito: logo será visto como um
monstro. Nenhum contato mais com o solo: tudo o que nele se afunda se
tornou estranho e incompreensível para nós.
Desenraizados, incapazes de
nos identificar com o pó e com o lodo, conseguimos a façanha de romper
não apenas com a intimidade das coisas, mas também com sua superfície.
Neste ponto a civilização apareceria como um pacto com o diabo, se é que
o homem ainda teria alguma alma para vender."
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CIORAN, Emil. "Retrato do homem civilizado", in: La Chute dans le Temps
Fonte: http://emcioranbr.wordpress.com/2014/04/05/anti-prometeu/
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