domingo, 6 de abril de 2014

Flavio Cafiero, o executivo que largou 14 anos de carreira para se dedicar à literatura

 
O escritor Flavio Cafieiro, no Arpoador: seu primeiro romance, “O frio aqui fora”, lançado no fim do ano passado, terá uma segunda reimpressão
Foto: Daniela Hallack Dacorso / Agência O Globo
 Ganhador do prêmio Off-Flip na categoria Contos e aposta da editora Cosac Naify, o gerente de uma grande loja de departamentos virou romancista elogiado e está às voltas 
com novo livro e peça de teatro

Todo mundo já ouviu a história de alguém que, cansado da rotina de trabalho, resolve largar tudo e mudar radicalmente de vida. Há um sem-número de livros, filmes, peças de teatro, músicas e novelas a explorar o plot da virada do personagem. Difícil é conhecer alguém que tenha feito isso de verdade. Conhecer mesmo, ter o telefone salvo no celular, saber quanto calça, ou se prefere o feijão em cima do arroz. São raras as pessoas com a história do carioca Flavio Cafiero, executivo de uma grande rede de departamento, que, no auge da carreira — tinha entrado na empresa como trainee, aos 22 anos, e já contava 14 lá dentro — decidiu devolver o crachá e vestir uma bermuda larga.

Flávio decidiu ser escritor. O que não significa menos trabalho, mas muito menos certezas. Em menos de cinco anos de dedicação no novo ofício, outra virada: ganhou o prêmio Off-Flip na categoria Contos e tornou-se a grande aposta da editora Cosac Naify. Seu primeiro romance, “O frio aqui fora”, lançado no fim do ano passado, foi para a segunda reimpressão nesta semana, um feito raro para novos romancistas nacionais.

A obra conta a história de Luna, um executivo que perde a promoção de cargo na empresa em que trabalha há 13 anos ao mesmo tempo em que descobre que será pai. E que decide virar escritor. Uma autoficção tão cortante quanto o título.

— O primeiro romance não tinha como não ser tão autorreferencial. Era uma necessidade grande colocar no papel o que eu vivi. Essa mudança é a história que definiu minha vida. Foram 14 anos numa empresa. Sair disso é muito forte, eu precisava contar, me livrar — desabafa Flavio, de passagem pelo Rio de Janeiro, cidade que deixou também em nome da carreira engravatada. — Saí daqui para trabalhar numa filial da loja em Vitória, depois fui para São Paulo e não voltei mais. É também por isso que a trama do livro, sem querer estragar a surpresa, vai se encaminhando em direção ao mar. É como um movimento de retorno.

Nascido no Leme, crescido no Leblon, o escritor encheu de Rio de Janeiro as páginas do próximo livro, mas de contos, que sai pela Cosac ainda este ano. Também se passa no Rio o romance seguinte, cuja trama já tem na cabeça.

A produtividade vem de uma das características que mantém do planeta que abandonou: o tal do compromisso. Ainda que tenha perdido as palavras “meta” e “foco” do vocabulário, Flavio não consegue deixar de cumprir um prazo, mesmo os impostos por si mesmo:

— Havia um slogan na empresa com a expressão “senso de urgência”. E há um modus operandi executivo que não consigo abandonar. Se eu me propus ser um escritor, passo as 12 horas do meu dia útil sentado, escrevendo.

Se trouxe do mundo corporativo o hábito de cumprir o que promete, Flavio deixou lá, espera que para sempre, o que chama de “neura do cargo”.

— Acontece o seguinte: você começa a ser promovido, o nome do cargo muda no crachá, e você vai incorporando o novo personagem. Muda o padrão de consumo, o estilo de vida, o cenário, o figurino, e quando você vê está trabalhando muito mais para manter a ficção — explica Flavio, que assim que pediu demissão do cargo de “gerente de produto” fez o mesmo que seu protagonista: vestiu uma bermuda larga.

Depois de se despedir dos amigos e tomar uma lufada de ar, Flavio sacou seu FGTS e reduziu drasticamente o padrão de vida. Trocou o carro por um “bilhete único” e restaurantes badalados pela cozinha de casa. Não à toa, a virada do personagem — e “o cansaço que dá estranhar o mundo”, como descreve — é dos momentos mais perturbadores da narrativa.

A habilidade é observada pela crítica literária Noemi Jaffe, a primeira professora de Flávio quando se inscreveu em cursos de escrita criativa, tentando começar do começo.

— Ele já veio com um talento absurdo, as oficinas só serviram para apurar seu estilo. Ele já tinha muita bagagem de leitura, fiquei impressionada. Quando ele me mostrou o esboço do romance, vi que não havia mais o que ensinar — elogia Noemi, que, pela primeira vez em sete anos dando aulas, procurou uma editora para indicar Flavio. — Ele tem uma escrita muito íntima e densa, impregnada de filosofia. Me faz lembrar alguns novos romancistas americanos, como o Jonathan Franzen.

Abaixo, leia trecho do primeiro romance de Flavio, “O frio aqui fora”.

“Reduzido a um recurso humano inútil para o momento, deixou a sala da presidência com a melhor expressão de resignação disponível em acervo, e mal olharia para os olhos pretos da secretária de peitos grandes. Os afetos machucados subiam à tona, e foi um susto vê-los boiar na superfície, atestando que tudo havia sido puro acaso, diluído em treze anos de escolhas que já não percebia como sendo totalmente suas. Como chegara até ali? Treze anos entre as paredes do escritório, com direito a longas sequências de espirros alérgicos sobre o carpete de ácaros. Ácaros, ácaros, zilhões de ácaros, seres invisíveis aos quais gostaria de se juntar num passe de mágica, e camuflar-se, como seria bom sair dali! Precisava esfriar o corpo e a cabeça: conselho do presidente, com crachá de ordem. Daí as férias, que estavam mesmo vencidas. (Saia de férias, Luna, esfrie a cabeça e, na volta, redesenhamos sua carreira), um adiamento. (Você receberá aconselhamento, é o que chamamos de coaching), um adiamento em inglês. Coaching. (Até a volta), e foi. 

Passando pela mesa de todos os dias, adotou um foco que não se sabia capaz de adotar: a técnica do olhar feiticeiro. Disse pouco, que resolvera sair de férias, e conversamos na volta, e até já, ou coisa equivalente, tentando despistar o óbvio. Abraçou os poucos colegas que ainda não haviam partido para o almoço, especialmente sua assistente, a favorita, que emitiu sinais de saber de tudo. A fofoca, em ambientes corporativos, supera a velocidade das pernas. E partiu para as férias, se embrenharia no mato, jogaria a cabeça nas cachoeiras. 

Empurrou as catracas, cruzou a cancela, e os quilômetros reversos da estrada, estacionou o carro cor de chumbo na garagem do prédio, subiu pelo elevador e, antes mesmo de comer alguma besteira, enfurnou em uma bolsa as camisetas, as bermudas e o short impermeável”.
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Reportagem por MARIANA FILGUEIRAS
Fonte: Jornal O Globo online, 06/04/2014
Foto Daniela Hallack Dacorso - Agência Globo

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