Ganhador do prêmio Off-Flip na categoria Contos e aposta da editora
Cosac Naify, o gerente de uma grande loja de departamentos virou
romancista elogiado e está às voltas
com novo livro e peça de teatro
Todo mundo já ouviu a história de alguém que, cansado da rotina
de trabalho, resolve largar tudo e mudar radicalmente de vida. Há um
sem-número de livros, filmes, peças de teatro, músicas e novelas a
explorar o plot da virada do personagem. Difícil é conhecer alguém que
tenha feito isso de verdade. Conhecer mesmo, ter o telefone salvo no
celular, saber quanto calça, ou se prefere o feijão em cima do arroz.
São raras as pessoas com a história do carioca Flavio Cafiero, executivo
de uma grande rede de departamento, que, no auge da carreira — tinha
entrado na empresa como trainee, aos 22 anos, e já contava 14 lá dentro —
decidiu devolver o crachá e vestir uma bermuda larga.
Flávio
decidiu ser escritor. O que não significa menos trabalho, mas muito
menos certezas. Em menos de cinco anos de dedicação no novo ofício,
outra virada: ganhou o prêmio Off-Flip na categoria Contos e tornou-se a
grande aposta da editora Cosac Naify. Seu primeiro romance, “O frio
aqui fora”, lançado no fim do ano passado, foi para a segunda
reimpressão nesta semana, um feito raro para novos romancistas
nacionais.
A obra conta a história de Luna, um executivo que perde
a promoção de cargo na empresa em que trabalha há 13 anos ao mesmo
tempo em que descobre que será pai. E que decide virar escritor. Uma
autoficção tão cortante quanto o título.
— O primeiro romance não
tinha como não ser tão autorreferencial. Era uma necessidade grande
colocar no papel o que eu vivi. Essa mudança é a história que definiu
minha vida. Foram 14 anos numa empresa. Sair disso é muito forte, eu
precisava contar, me livrar — desabafa Flavio, de passagem pelo Rio de
Janeiro, cidade que deixou também em nome da carreira engravatada. — Saí
daqui para trabalhar numa filial da loja em Vitória, depois fui para
São Paulo e não voltei mais. É também por isso que a trama do livro, sem
querer estragar a surpresa, vai se encaminhando em direção ao mar. É
como um movimento de retorno.
Nascido no Leme, crescido no Leblon,
o escritor encheu de Rio de Janeiro as páginas do próximo livro, mas de
contos, que sai pela Cosac ainda este ano. Também se passa no Rio o
romance seguinte, cuja trama já tem na cabeça.
A produtividade vem
de uma das características que mantém do planeta que abandonou: o tal
do compromisso. Ainda que tenha perdido as palavras “meta” e “foco” do
vocabulário, Flavio não consegue deixar de cumprir um prazo, mesmo os
impostos por si mesmo:
— Havia um slogan na empresa com a
expressão “senso de urgência”. E há um modus operandi executivo que não
consigo abandonar. Se eu me propus ser um escritor, passo as 12 horas do
meu dia útil sentado, escrevendo.
Se trouxe do mundo corporativo o
hábito de cumprir o que promete, Flavio deixou lá, espera que para
sempre, o que chama de “neura do cargo”.
— Acontece o seguinte:
você começa a ser promovido, o nome do cargo muda no crachá, e você vai
incorporando o novo personagem. Muda o padrão de consumo, o estilo de
vida, o cenário, o figurino, e quando você vê está trabalhando muito
mais para manter a ficção — explica Flavio, que assim que pediu demissão
do cargo de “gerente de produto” fez o mesmo que seu protagonista:
vestiu uma bermuda larga.
Depois de se despedir dos amigos e tomar
uma lufada de ar, Flavio sacou seu FGTS e reduziu drasticamente o
padrão de vida. Trocou o carro por um “bilhete único” e restaurantes
badalados pela cozinha de casa. Não à toa, a virada do personagem — e “o
cansaço que dá estranhar o mundo”, como descreve — é dos momentos mais
perturbadores da narrativa.
A habilidade é observada pela crítica
literária Noemi Jaffe, a primeira professora de Flávio quando se
inscreveu em cursos de escrita criativa, tentando começar do começo.
—
Ele já veio com um talento absurdo, as oficinas só serviram para apurar
seu estilo. Ele já tinha muita bagagem de leitura, fiquei
impressionada. Quando ele me mostrou o esboço do romance, vi que não
havia mais o que ensinar — elogia Noemi, que, pela primeira vez em sete
anos dando aulas, procurou uma editora para indicar Flavio. — Ele tem
uma escrita muito íntima e densa, impregnada de filosofia. Me faz
lembrar alguns novos romancistas americanos, como o Jonathan Franzen.
Abaixo, leia trecho do primeiro romance de Flavio, “O frio aqui fora”.
“Reduzido
a um recurso humano inútil para o momento, deixou a sala da presidência
com a melhor expressão de resignação disponível em acervo, e mal
olharia para os olhos pretos da secretária de peitos grandes. Os afetos
machucados subiam à tona, e foi um susto vê-los boiar na superfície,
atestando que tudo havia sido puro acaso, diluído em treze anos de
escolhas que já não percebia como sendo totalmente suas. Como chegara
até ali? Treze anos entre as paredes do escritório, com direito a longas
sequências de espirros alérgicos sobre o carpete de ácaros. Ácaros,
ácaros, zilhões de ácaros, seres invisíveis aos quais gostaria de se
juntar num passe de mágica, e camuflar-se, como seria bom sair dali!
Precisava esfriar o corpo e a cabeça: conselho do presidente, com crachá
de ordem. Daí as férias, que estavam mesmo vencidas. (Saia de férias,
Luna, esfrie a cabeça e, na volta, redesenhamos sua carreira), um
adiamento. (Você receberá aconselhamento, é o que chamamos de coaching),
um adiamento em inglês. Coaching. (Até a volta), e foi.
Passando
pela mesa de todos os dias, adotou um foco que não se sabia capaz de
adotar: a técnica do olhar feiticeiro. Disse pouco, que resolvera sair
de férias, e conversamos na volta, e até já, ou coisa equivalente,
tentando despistar o óbvio. Abraçou os poucos colegas que ainda não
haviam partido para o almoço, especialmente sua assistente, a favorita,
que emitiu sinais de saber de tudo. A fofoca, em ambientes corporativos,
supera a velocidade das pernas. E partiu para as férias, se embrenharia
no mato, jogaria a cabeça nas cachoeiras.
Empurrou as catracas,
cruzou a cancela, e os quilômetros reversos da estrada, estacionou o
carro cor de chumbo na garagem do prédio, subiu pelo elevador e, antes
mesmo de comer alguma besteira, enfurnou em uma bolsa as camisetas, as
bermudas e o short impermeável”.
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