Valesca
Popozuda é filósofa? Não! E ninguém disse isso. Ninguém. Valesca
Popozuda é “grande pensadora contemporânea”? Ela declinou o título, e
lembrou que era uma brincadeira, como o próprio professor de Taguatinga,
o Antônio Kubistchek, disse mesmo.
O
intuito dele, no meu jargão, pode se posto da seguinte forma: vou criar
um estranhamento! Como sabemos o estranhamento e a ironia estão na base
da filosofia, já lá no seu início, nos gregos. Tudo isso já está certo e
sabido, não temos mais que explicar e não há razão para lembrarmos o
quanto os jornalistas mais afoitos e menos reflexivos se lambuzaram no
episódio. Vamos agora para outra parte do caso: a sociedade.
Passado o primeiro momento, algumas
pessoas perceberam que pisaram na bola e que o intuito do professor
podia muito bem ser visto de modo inteligente, como de fato foi.
Todavia, mesmo assim, resolveram continuar malhando a educação
brasileira como um todo e, de certo modo, o professor. A educação
brasileira deve ser malhada, quem não concorda? Basta que a crítica seja
feita com a atenção para a desatenção da própria sociedade e dos
governos para com o salário do professor. Sem isso, não acho que a
crítica pode ter alguma legitimidade. Não há educação com a hora-aula em
nove reais. Mas a crítica não tem ido por aí!
A crítica em forma de falso humor veio pela via indireta. E nisso o professor Antônio acertou
em
cheio: uma boa parte das pessoas não só não entendeu a ironia como veio
com asnice para a via raivosa: “se Valesca Popozuda é pensadora então
eu sou um símio” – disseram vários. Sim, quem pensa assim é um símio. No
bolo todo da conversa, surgiu o que tinha de surgir: a indisposição
diante de quem usa o corpo seja lá quem for.
O funk e o uso do corpo, como Valesca
faz, não a qualifica como quem intervém na sociedade, paralelo ao que
nós filósofos fazemos? Todos que intervém na sociedade pela performance
corporal são ou conservadores ou inúteis? A chamada linguagem corporal é
essencialmente algo de segundo plano? Como entretenimento e apenas como
entretenimento ela não vale nada? A linguagem corporal só é válida se
estiver no plano da cultura erudita ou cultura acadêmica? A linguagem
corporal no âmbito da cultura popular e da cultura de massas não são
elementos sociais de respeito e de análise? (estou usando aqui a
conceituação quádrupla de cultura do professor Alfredo Bosi).
Aviso
para os tolinhos, antes que seja tarde: não estou dizendo que a
linguagem corporal, seja a de uma dançarina clássica seja a da Valesca,
ou a do Pelé, passando por Elvis, Michel Jackson, Cassius Clay,
“Carlitos”, Clodovil e o Robocop, são todas iguais, ou que seus
realizadores podem receber um título do tipo “grande pensador
contemporâneo”. Nada disso. Estou dizendo que Valesca Popozuda é
proprietária de uma linguagem corporal que tem o seu lugar na sociedade
brasileira e que diz alguma coisa interessante – é efetivamente
uma linguagem. O bordão “beijinho no ombro” é um bordão falado pela boca
e pelo resto do corpo. Criar isso e fazer isso “pegar” é algo
interessante de se estudar, de entender. Tanto quanto entender a razão
pela qual Elvis, ao começar mexer os quadris de um modo esquisito, não
muito “másculo”, conquistou a todos e mudou o padrão da dança americana e
do mundo. Mudou o padrão do andar, inclusive.
Por esses dias a imprensa comemorou um
gesto do recém-falecido Belini, o eterno capitão da Seleção Brasileira
de Futebol. Ele havia levantado a Taça e, com isso, implantou um padrão
gestual de vitória, que se consagrou. Ele disse que não foi intencional.
Mas, devemos notar que depois dele o gesto tornou-se “obrigatório”.
Pelé inaugurou a comemoração de gol dando murro no ar em salto. Foi
padrão durante muitos anos. Quando jogadores e artistas se confundiram
na tela, vieram as “dancinhas” para comemorar gol. Virou moda durante um
tempo.
Somos seres miméticos. Todos na
superfície da Terra são miméticos. Tanto é verdade que os cachorros e os
seus donos (pais humanos, na nova linguagem) se tornam parecidos. Desde
o tempo que éramos apenas um grupo de aminoácidos começamos isso, o
mimetismo. Entender o que um padrão corporal comportamental faz no mundo
é entender o mundo.
Valesca
Popozuda ocupa hoje um lugar de outros. Sim! Claro. Mas ela o faz de um
modo não tão simplório quanto o que se pensa à primeira vista. E o funk
não é uma bobagem do mesmo modo que Odair José não foi uma bobagem. Do
mesmo modo que Diamante Negro com a “bicicleta” não foi uma bobagem, nem
o braço semidobrado com as costas da mão voltada para o povo, em
saudação leve, feita por Vargas, foi uma bobagem. Durante anos as
pessoas no Brasil ficavam esperando esse gesto em outros políticos, para
ver se podiam chama-los ou não de “chefe”. O sorriso de Obama e o de
Kennedy não são uma bobagem, são intervenções que se fazem necessárias
na América, em especial para o eleitor democrata (para além do que Pondé
pensa, uma vez que ele reduz Obama a um simples marqueteiro, sem
entender muito dos Estados Unidos).
A compreensão do funk como um elemento
que tem um pé na cultura popular e um pé na cultura de massas, como algo
que Valesca Popozuda põe no palco de um modo distinto, é fundamental
para continuarmos a entender o Brasil. Quando escravos dançavam capoeira
e o senhor, lá na Casa Grande, tremia de medo, ele não pensava que
poderia ser atacado. Ele tinha armas e estava seguro. Seu tremor e temor
vinham de outro canto de seu cérebro. De certo modo ele percebia o que
hoje nos é claro, e mais ou menos intuía: um dia esses gestos dessa
dança macabra podem estar sendo os gestos de meus filhos, e então todos
nós já não seremos brancos! Dito e feito.
Muita gente no Brasil pensa que os
livros devem falar da alma, não do corpo, como se todos nos andássemos
por aí como anjos ou zumbis. É incrível que ainda pensemos assim, mesmo
em uma época que a saúde e o corpo dominaram de vez nossa identidade,
nossa pessoalidade.
Valesca é “pensadora”. Faz pensar.
“Pensa” com sua fisiologia. Compreender isso é ampliar o campo semântico
de um modo que só o filósofo alemão Peter Sloterdijk, munido de
antropologia (Ah! Levi Strauss, e saber que você viveu aqui heim?) tem
conseguido fazer no campo propriamente filosófico. Faz tempo que tenho,
eu mesmo, tentado essa via de não esquecimento do corpo.
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* Paulo Ghiraldelli, 56, filósofo. Autor de A filosofia como crítica da cultura (Cortez)
Fonte: http://ghiraldelli.pro.br/valesca-pensadora/
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